Segunda-feira, 15 de Junho de 2020

A História da Foto: mergulho na Mantiqueira

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Tchibum: mergulhei dentro de um rio congelado e ainda tinha 400 km pela frente (foto: Mario Bock)

O dia que fiquei pelado no meio do mato no inverno de 1987

Confesso que sou apaixonado pela serra da Mantiqueira. Sempre que tenho algum teste de moto que inclui viagem nem penso duas vezes e coloco a proa rumo à Mantiqueira. Lá tem tudo que gosto: estradas de terra, trilhas para caminhar, o complexo da Pedra do Baú, Campos do Jordão, São Bento do Sapucaí, pinhão, lareira e frio, muito frio!

Por isso toda vez que um teste incluísse estradas de terra, intercaladas com asfalto, eu já preparava os mapas da Mantiqueira e nem precisava muito esforço pra convencer a equipe, porque todo paulistano que se preze gosta daquela região.

Na revista Duas Rodas tínhamos uma editoria batizada de Aventura-Teste, era a melhor parte da revista, tanto para nós que produzíamos quanto para quem lia. Era a chance de viajar de moto sem gastar, nada luxuoso, mas super divertido e aprazível. E foi num dia qualquer de agosto de 1987 que surgiu a pauta de fazer uma Aventura-Teste com as três maiores motos trail vendidas na época: a Honda XLX 350R, a Agrale Dakar 30.0 e a Yamaha DT 180N. Imagine que nossa maior trail era uma 350cc.

Como de costume o fotógrafo escalado foi o super competente e companheiro de roubadas Mário Bock. O terceiro elemento foi nosso “Kowalski”, o faz-tudo, Gilson Gomes, conhecido no mundo fora de estrada como Cuém-Cuém (não me pergunte porquê). Vale a pena abrir um parágrafo para explicar quem era (e ainda é, porque tá vivo) Gilson Gomes.

O cara entrou na editora para ser nosso motoboy. Mas em pouco tempo descobrimos que por trás daquele disfarce de menino inocente estava um super-piloto com super poderes mesmo. Gilson, a quem eu chamava de “Loco y Pazzo”, foi piloto de bicicross, de motocross e se especializou em manobras radicais muito antes de isso virar moda. Reza a lenda que ele ajudou a treinar o AC Farias, o primeiro brasileiro campeão mundial de wheeling. Bom, não precisou muito para que ele fosse alçado à condição de nosso piloto de teste radical. Ele empinava qualquer moto: de CG 125 à Gold Wing. As melhores fotos de wheeling naquela época era com o Gilson ao guidão. Além disso nós dois tínhamos uma sintonia perfeita nas fotos em dupla. Fizemos fotos saltando juntos, empinando, nose wheeling etc. A gente nem precisava olhar um pro outro, fazia tudo na mais perfeita combinação.

Eu, na XLX e o Gilson, na XT 600, uma dupla sintonizada nos saltos. (foto: Mario Bock)

Então tínhamos três motos de uso misto, três motociclistas, sendo dois com experiência em fora de estrada e um fotógrafo que nunca tinha viajado por trilhas. Coube a mim o roteiro e fui nos meus arquivos buscar mapas e referências. Eu sempre guardava as planilhas de enduro e consegui juntar uma planilha do Enduro das Montanhas com uma do Enduro da Independência para criar um roteiro de São Paulo ao Rio de Janeiro usando mais de 80% de estradas de terra. Sim, você já viu isso antes. Minha obsessão compulsiva era fazer uma viagem de SP ao Rio, de moto, só por estradas de terra. Tentei várias vezes ao longo da vida mas só consegui uma vez... de carro 4x4! E lá fomos nós tentar mais uma vez. Agora tinha de dar certo!

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Combinamos de sair bem cedo de SP porque nosso plano era começar na trilha em Mairiporã (SP), passar por Campos do Jordão (SP) e pernoitar em Visconde de Mauá (RJ). Como nenhuma aventura tem graça sem um componente natural comprometedor, depois de semanas de um “veranico” em SP, chegou uma frente fria bem na noite anterior. A temperatura caiu uns 20 graus de um dia pro outro e marcamos a partida pontualmente às cinco da manhã, devidamente pasteurizados pela diferença de temperatura.

Para chegar em Mairiporã pela estrada Fernão Dias, temos de passar por um túnel batizado de Túnel da Mata Fria. Pensa num nome adequado! O sol até saiu, mas parecia lâmpada de geladeira porque só iluminava, mas não esquentava nada. Foi assim que chegamos no primeiro trecho de trilha. Como nada é tão ruim que não possa piorar – como você já está cansado de ler – choveu na véspera e o que era uma trilha fácil se transformou num mar de lama.

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Sem experiência no fora-de-estrada o Mario Bock caiu duas vezes em 200 metros. (Foto: Tite)

Não precisou mais do que 200 metros para o Mário cair duas vezes e mostrar que nossa pretensão de rodar 450 km naquele dia estava seriamente ameaçada. Sem experiência em fora-de-estrada o Mário estava com muita dificuldade e decidimos que ele deveria pilotar a DT 180 por ser mais leve e ter pneus melhores na terra. Não melhorou muito e nosso rendimento quilométrico estava tão baixo que optamos por cortar esse trecho de trilha e voltar pra estrada de terra.

Melhorou muito até chegarmos à barragem da represa de Mairiporã. Vimos que dava para colocar as motos numa passarela para fazer a foto que foi a abertura da matéria. Foi um baita sufoco porque tivemos de subir e descer um lance de escada com as motos, mas o Gilson subia até parede. Pra ele tudo parecia muito fácil.

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A gente fazia qualquer coisa por uma boa foto, até subir escada! (foto: Mario Bock)

Vi que dava para cortar caminho e chegar numa estrada asfaltada, mas no meio do caminho tinha um riozinho bem estreito. Poderia dar uma bela foto com a moto espirrando água. Fizemos as fotos e eu tive a péssima ideia de colocar a DT 180 numa ilhota no meio do rio. Só não imaginava que naquele trecho o córrego tinha quase 1,5m de profundidade e a DT naufragou solenemente, comigo junto! E a gente tinha ainda mais 400 km pela frente!

Afogador

Se você nunca mergulhou num rio de moto e tudo saiba que é bem desconfortável. Mas pode piorar se a temperatura ambiente for de 60C e a água parecer vir diretamente da Sibéria para a sua cueca. Eu não conseguia me levantar, mas ouvia o Gilson rolando de rir ao longe enquanto o Mário continuava fotografando tudo aquilo. Quando finalmente consegui empurrar a DT pra fora do rio, como um crocodilo gordo e congelado, veio a má notícia: não era só a minha cueca que estava encharcada, mas também o filtro de ar da moto, o carburador, o sistema elétrico, embreagem, cárter, tanque de gasolina e tudo mais que podia entrar água. E fazia apenas uma hora e meia que estávamos viajando.

Decidimos nos dividir em duas tarefas: o Gilson e o Mário cuidariam da moto e eu cuidaria de não morrer de frio. Tirei toda roupa (mesmo!) para colocar roupas secas. Lembra que colocamos o Mário na DT 180? Pois então, foi a mala dele que afundou comigo e com isso salvei minhas roupas que estavam no bagageiro da XLX 350. Antes de vestir minhas roupas secas tentei fazer xixi, mas com a água naquela temperatura eu precisava de uma pinça.

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Motorzinho travado e freios inundados: essa DT deu trabalho. (fotos: Mario Bock)

O Gilson colocou a DT na vertical até sair água pelo escapamento. Drenou a água do filtro de ar, retirou a vela, acionou o pedal de partida e saía água por todo lado. Trocamos a gasolina do tanque e adicionamos um pouquinho de óleo 2T direto para evitar eventual travamento. Terminada toda essa operação a DT pegou na primeira pedalada! Eita moto imparável! O motor da DT é impressionante de resistente. Mas calma, leia até o fim.

Revi o roteiro e decidimos evitar as trilhas – e os rios – optando por estradas de terra. Meu capacete, minhas botas e luvas estavam molhados e a sensação térmica era que eu estava com blocos de gelo em cada membro do corpo. À medida que subíamos para Campos do Jordão a temperatura caía (mais!!!) e comecei a tremer descontroladamente. De tempos em tempos tínhamos de parar para fazer fotos e eu aproveitava para colocar as luvas no motor da moto pra tentar secar. Mesmo assim senti que estava ficando perigoso ter uma hipotermia porque meu queixo batia que nem uma castanhola.

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Era só o Gilson olhar pra mim pra começar o rally de velocidade. (Foto: Mario Bock)

Mesmo evitando as trilhas a média horária era muito baixa porque enquanto eu e o Gilson conseguíamos pilotar a 70 até 80 km/h na terra, o Mário não passava de 40 km/h. Tomei a decisão de pernoitar em Campos do Jordão, que representava 1/3 do percurso para aquele dia, mas eu não queria passar uma noite na estrada com aquele frio. Para completar o quadro de desespero, a Agrale começava a dar sinais de superaquecimento sem nenhum motivo aparente.

Quebradeira

Na época pré-celular não tinha como simplesmente sentar num banco de praça e reservar um hotel. Ou usávamos o orelhão (telefone público para os millennials) ou tínhamos de bater de porta em porta perguntando se havia vaga. Para nossa sorte eu tinha (e ainda tenho) um amigo dono de hotel em Campos do Jordão e fomos direto em busca de banho quente e lareira.

Na manhã seguinte nossas motos estavam cobertas de gelo. Isso mesmo: gelo! Mesmo sendo apaixonado por montanha, acho que gelo combina muito bem com uísque. Não gosto de gelo no banco da moto e muito menos na minha bunda. Passar a noite ao relento sob temperatura abaixo de zero não fez bem para a Honda XLX 350R que resistiu a todas as nossas tentativas de ligar no pedal de partida. Para quem nunca ligou uma XLX 350 não faz ideia de como aquele pedal de partida é traiçoeiro. Representa uma ameaça real à canela e muitas sucumbiram à essa missão.

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Pra fazer essa foto o Mario se enfiou dentro de um buraco. (foto dele mesmo)

Por ter as pernas mais longas coube ao Gilson tentar milhares de pedaladas e... nada! Até que partimos para a solução técnica mais profissional do momento e soltamos ela na ladeira para enfim pegar no tranco. Mas aquela dificuldade era um mau presságio.

Se o primeiro dia foi um sufoco e rodamos apenas 250 km sendo que menos de 50 km por asfalto, no segundo tudo foi bem melhor. A começar pelo sol um pouco mais generoso. Talvez até demais, porque perto do meio dia o motor da Agrale começou a literalmente nos encher o saco. A temperatura ficava acima de 90 graus, às vezes passava de 100 até 120, mas não achávamos onde estava o problema. Para completar o freio dianteiro da DT 180 simplesmente baixou tanto que não dava mais regulagem.

Mesmo assim seguimos o roteiro passando por trilhas com lindas paisagens, fotos belíssimas que, infelizmente foram publicadas em preto e branco e até o Mário já estava mais à vontade nas estradas de terra.

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Dos quase 1.000 km rodados cerca de 700 foi por estradas de terra. (Foto: Mario Bock)

Todas as motos em teste apresentaram algum problema. As três ficaram sem carga de bateria. Além disso, a DT 180 começou a “bater saia” e não sabíamos avaliar se o problemas foi decorrente do mergulho ou porque exageramos no período de amaciamento. Eu retirei a moto na Yamaha com apenas 7 km rodados e no dia seguinte já estava fritando nas trilhas. O freio dianteiro dela ficou péssimo provavelmente por ter enchido de água, mas segundo a fábrica o sistema a tambor era “resistente a água e poeira”, hum, sei. E a Agrale foi um festival de problemas: ficou sem bateria, o motor esquentava demais e o freio dianteiro também era apenas uma referência simbólica. A XLX 350 só era difícil de ligar, especialmente pela manhã, mas tínhamos o Gilson pra pedalar.

Neste percurso de Campos a Mauá eu e o Gilson, sem combinar nada, começamos a apertar o ritmo. Ele pilota muito mais que eu, mas eu não queria ficar na poeira dele. Fizemos um raid de velocidade que nem dois malucos, parando só nas encruzilhadas para esperar o Mário Bock. Como a viagem foi durante a semana não passava nenhum carro por horas seguidas e isso foi um estímulo pra esse “pega” saudável. O Gilson descobriu que conseguia manter o motor da Agrale em 80 graus se mantivesse a 6.000 RPM o que era fácil para a experiência dele, mas somente depois de muito tempo percebemos a origem do problema: uma pedrada tinha causado um pequeno furo no radiador.

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Foto da capa em Visconde de Mauá (Foto: Mario Bock)

Chegamos em Visconde de Mauá ainda com luz do sol, fizemos uma bela foto que foi pra capa e nos hospedamos numa pousada. O plano no dia seguinte era descer até Angra dos Reis e de lá voltar para São Paulo pela Rio-Santos, completando o itinerário de montanha-mar. Na teoria o plano era perfeito e até tranquilo, se o destino não tivesse mais uma vez se colocado no nosso caminho na forma de um Monza!

Acordamos cedo e as motos estavam novamente cobertas de gelo e de problemas. Além da nossa bagagem tínhamos de levar uma garrafa de água para completar o radiador da Agrale. Aquela moto já estava dando nos meus nervos! O trecho entre Mauá e Penedo é uma serra deliciosa. Naquela época ainda era de terra (hoje é asfaltada) e o engenheiro que construiu deve ter cobrado a empreitada por curva. Tipo “me paga um conto de Réis por curva que tudo bem”. Ficou milionário! Tem mais curva que um intestino delgado!

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Decidi pilotar a Agrale nesse trecho, mantendo um olho na estrada e outro no termômetro do radiador. Quando chegou a parte sinuosa olhei pro Gilson, que olhou pra mim e começou outro rally dos desesperados. Sem poder passar de 6.000 RPM eu trocava tanto de marcha que perdia a conta. Fomos assim até que numa curva fechada, tipo das que não tem fim, o motorista de um Monza ficou olhando pra paisagem, entrou na contramão e me acertou em cheio. Ou melhor, eu acertei! Consegui frear um pouco, a moto ficou de lado, foi em direção ao logotipo da gravatinha e quando percebi que ia bater soltei tudo e me joguei no capô do carro, parando com o capacete a um palmo do para-brisa.

Na hora senti que algo de errado não estava certo com meu pé esquerdo. O motorista desceu pedindo desculpa, uma mulher gritava achando que “matamos o motoqueiro” e, mais uma vez quando tudo parecia que não podia piorar chegou o Mário Bock pagando esporro geral achando que eu era o culpado e pedindo desculpas ao motorista.

O relatório de danos não apontava nada de errado com a Agrale, um amassado no capô do Monza e um pé esquerdo dolorido. Nas minhas andanças (e tombaços) no fora-de-estrada aprendi uma coisa: se perceber que machucou o pé não tire a bota! Porque se tirar e o pé inchar nunca mais vai conseguir vestir. Além disso a bota de trilha funciona como um imobilizador muito eficiente.

Analisando a situação decidi abortar o trecho de litoral – que prometia altas fotos – e retornar direto pela Via Dutra. Depois do acidente virei pro Gilson e implorei:

– Nada de correr, tá! Vai começar o trecho de descida da serra até Penedo, vamos descer com as motos desligadas pra não fritar o motor da Agrale. Não pode ligar o motor, OK?

O Gilson concordou, começamos a descer a serra com os motores deligados e não precisou nem de cinco minutos pra começar o racha mais louco do mundo porque nenhum dos dois queria frear pra não perder velocidade. Sem poder contar com o motor pra controlar as saídas das curvas quase passamos reto em várias curvas. Ou seja, quem pega o vírus da velocidade nunca se cura!

Chegamos milagrosamente vivos na Via Dutra e dei graças por estar com a XLX 350, porque o motor quatro tempos tinha mais retomada e não precisava trocar tanto de marchas. Fiquei rodando em última marcha a maior parte do tempo. Tudo caminhava para um final feliz quando do nada a DT parou de funcionar. Diagnóstico: travou o motor! Mesmo acrescentando óleo 2T direto no tanque ela não aguentou nosso ritmo ralizeiro.

Deixamos a moto numa praça de pedágio e conseguimos chegar em nossas casas quase inteiros.

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XLX 350R, obviamente a melhor das três no asfalto. (Foto: Mario Bock)

No dia seguinte fui no hospital pra conferir os danos e constatou-se uma fratura no dedão, mais uma pra coleção! O lado bom da fratura de dedo é que não precisa fazer nada além de mancar e esperar.

A reportagem completa foi publicada com todos esses detalhes que contei aqui. Pior: no fim do texto eu escrevi: “Voltamos pra casa e fizemos as considerações gerais sobre as três fora-de-estrada. Começando pela Honda XLX 350R, que batizamos de ‘Rainha do Asfalto e dos Estradões’... da Agrale 30.0, batizada de ‘Rainha das Oficinas’ (todo mecânico acha linda e adora mexer)... a DT 180, batizada de ‘Rainha das Trilhas’”.

Nenhum fabricante contestou, a Yamaha foi buscar a DT 180 na praça de pedágio e não me jurou de morte. A Agrale não suspendeu a publicidade na revista e a Honda não nos chamou para uma reunião de “ajuste editorial”. Hoje em dia as consequências de um relato desses seria equivalente a uma crise ministerial. Naquela época as motos davam problemas mesmo, era normal e nossos testes serviam para os fabricantes melhorarem seu produtos. Logo depois a Yamaha lançou a DT 180 com freio dianteiro a disco. A Honda substituiu a XLX 350R pela Sahara com partida elétrica e a Agrale, bem, a Agrale pararia a produção de motos dois tempos.

Nenhum jornalista perdeu o emprego, nenhum assessor de imprensa convocou um comitê de gerenciamento de crise, nada disso. Não sei como o jornalismo especializado chegou nesse ponto quando comentar que não gostou do som da buzina parece uma enorme grosseria e falta de empatia com os fabricantes. As motos melhoraram muito, certamente. Acho que é quase impossível uma moto apresentar problemas numa viagem de 1.000 km. Até brinco que ficou chato testar motos hoje em dia porque dá tudo certo! Os tempos de Aventura-Teste ficaram no passado, hoje o mais honesto seria chamar de “passeio-teste”.          

publicado por motite às 02:22
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Terça-feira, 14 de Abril de 2020

A história da foto: perdidos em Minas

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Eu e Mário Bock, uma dupla com milhares de kms rodados e histórias!

Uma aventura-teste com a Agrale SXT 16.5 e Yamaha DT 180

Fotos: Mário Bock

Nos meus primeiros anos como jornalista especializado o mercado de motos ainda estava bem embrionário. Poucas marcas, poucos produtos, já dominado pela Honda, mas com boa participação da Yamaha. Até que uma empresa de Caxias do Sul, criada por filhos de imigrantes italianos apaixonados por motores, lançou-se nessa briga com uma marca já conhecida no universo agrícola: Agrale!

Foram buscar tecnologia na Itália e bateram na porta da Cagiva, nome adorado por todo mundo que tinha sangue de verdade nas veias. Dessa parceria nasceu a Agrale SXT 16.5, uma trail de 125cc, motor dois tempos, arrefecido a líquido que mexeu com a minha testosterona logo à primeira vista. Uma 125cc naquela época tinha 12,5 CV e esta chegou com 16,5 CV e o radiador.

Nunca escondi minha paixão pela marca, pela família Stedile* (donos da Agrale), especialmente a filha Dolaimes Stedile Angeli, linda, loira, olhos azuis, inteligente, elegantérrima, simpaticíssima e de uma gentileza rara. Não tinha homem na face da Terra que não se apaixonasse por este pacote completo. Mas ela mantinha o distanciamento digno de uma rainha diante do séquito. Inacessível aos mortais. Infelizmente nos deixou de forma precoce em 1995.

Daria para escrever um livro inteiro sobre a família Stedile – se não foi feito ainda – e essa admiração fazia de nós, jornalistas, fãs de carteirinha da marca Agrale. Era uma fábrica nacional, feita com a coragem dos imigrantes italianos, com a paixão de quem ama o que faz e a gentileza de verdadeiros lordes. Nunca, nos meus quase 40 anos de jornalismo, fui tão bem tratado e respeitado, quanto pela família Stedile, incluindo o patriarca, Francisco, os filhos Carlos e Franco (que apoiavam todas as minhas loucuras) e até os netos! Contrastava demais com a frieza dos executivos japoneses e alemães que convivíamos até então.

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A foto da capa foi num raros momentos de sol já no final da viagem.

Logo nos primeiros testes com a Agrale SXT 16.5 percebi que era uma moto com grande potencial, mas tinha muito o que melhorar em vários pontos, principalmente o sistema elétrico que dava paus inexplicáveis. Mas era uma moto pra quem gostava de esportividade e batia de frente com a Yamaha DT 180, ícone off-road, dominadora das trilhas e responsável por romper o hímen de muita gente no fora-de-estrada. No meu caso era hímen complacente porque precisei de duas DT 180 até aprender!

Nada mais natural que fizéssemos um teste comparativo entre a recém chegada Agrale e a já dominatrix Yamaha. O ano era 1985 e o mês de dezembro, claro, com todos os implicativos das datas festivas. Mas não era um teste qualquer, feito no quarteirão, queríamos algo mais marcante. O editor na época era o Roberto Araújo que permitia todo tipo de insanidade, desde que voltássemos com uma história boa. Levávamos muito a sério o conceito de “Aventura-Teste” e tinha de reunir todos os ingredientes para uma narrativa que prendesse leitor logo no primeiro parágrafo. Tudo decorado com fotos de situações dramáticas, coisa que nem precisava esforço quando tinha a parceria do Mário Bock.

Eu tinha acabado de voltar do Enduro da Independência (em setembro) e, como sempre, preservei uma cópia da planilha (mapa roteirizado) dos quase 1.000 km de trilhas. E tive a ideia insana do mês, do ano, da década: repetir parte do roteiro do Enduro da Independência, começando por asfalto em São Paulo, entrando na trilha em Três Corações (MG), terminando o trecho de terra em Lavras, (MG) e retornando pela rodovia para São Paulo. Daria mais de 1.500 km por todo tipo de situação, em dois dias, com pernoite em Lavras.

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Choveu durante quase todo o teste.

Valeu, São Pedro!

Pegamos as motos absolutamente zero km e teríamos de amaciar os motores na estrada até Três Corações, mantendo os limites de rotação e velocidade indicados pelos fabricantes. Teríamos 320 km para “soltar” os motores dois tempos. Nesse torturante trecho de asfalto com motos pequenas nossa média horária era ridícula e, claro, saímos bem atrasados, o que já projetava o primeiro problema de programação: chegar em Lavras durante o dia.

Se a média horária era baixa na rodovia tudo ficou pior quando chegamos em Três Corações para enfrentar cerca de 50 km de estradas de terra até São Tomé das Letras, cidade mística de duendes, fadas e outros seres esquisitos. A estrada estava “pesada” porque tinha chovido muito na véspera e o Mário não tinha muita experiência com fora-de-estrada, mesmo assim conseguimos chegar em São Tomé ainda no meio da tarde.

Fizemos a sessão de fotos em frente às tradicionais casas de pedra, lanchamos no único boteco aberto e quando olhei de relance pro céu vi que a coisa tinha ficado literalmente preta. Nuvens escuras, raios e um vento forte davam toda certeza do mundo que viria uma tempestade típica de verão.

Pior: era justamente em São Tomé que começaria o trecho de trilha de cerca de 90 km até Lavras. Eu tinha feito esse trecho no Enduro da Independência, mas a moto era uma Honda XL 250R, preparada, com pneus bem melhores e eu estava em uma competição, correndo contra o relógio. Na minha memória, a distância entre São Tomé e Lavras era um “tirico de espingarda”, coisa de poucas léguas, seja lá quanto tem uma légua.

No bar alguns poucos moradores e turista aconselharam a pernoitar e só continuar no dia seguinte. O que seria a decisão mais sensata. Só que justamente o que mais faltava a uma equipe de testes naquela época era um mínimo vestígio de sensatez. Entre os que tentavam nos demover da ideia de sair na iminência de uma tempestade estava uma mocinha muito simpática, de olhos verdes e trança no cabelo que ofereceu um quarto no casa dela.

– Vamos ficar – aconselhou o Mário Bock – a gente sai amanhã cedo e nem vai fazer tanta diferença no fim.

Só que tinha mais um componente complicativo: eu estava prestes a ser pai da minha primeira filha (que nasceria em janeiro). E isso deixava tudo mais tenso porque eu tinha de ficar colado a um telefone. E em São Tomé das Letras, no ano santo de 1984, só tinha UM telefone na praça principal. Além disso, de Lavras eu poderia pegar a rodovia e chegar em SP mais fácil e rápido do que saindo de São Tomé.

– Vamos pra Lavras, são só 80 km até lá, se a gente fizer média de 40 km/h chegamos em duas horas – insisti, numa inocência quase pueril.

Infelizmente o Mário concordou. Trocamos a companhia da mocinha dos olhos verdes, um quarto confortável, a segurança de uma noite tranquila por uma aventura que se tornaria uma grande, fedorenta, desesperadora, assustadora e interminável CAGADA!

Abduzido?

Já saímos do boteco vestindo as capas de chuva. Instalei uma prancheta na Agrale, coloquei a planilha – de papel!!! – com o nosso roteiro e assim que chegamos na primeira trilha o céu caiu sobre nossos capacetes!

Pensa numa chuva forte, fria e escura! Era perto de 17:00 horas, se fizéssemos esse trecho em duas horas, como eu havia previsto, chegaríamos em Lavras às 19:00 ainda com luz do dia porque era verão. Mas nos primeiros quilômetros percebi o tamanho da encrenca. Sem experiência em fora-de-estrada o Mário pilotava muito devagar.

Os pneus originais de motos de uso misto são feitos para rodar no piso asfalto/terra, mas sem lama. Em baixa velocidade a lama gruda no pneu, que fica totalmente liso, escorregadio e começam as quedas. Nada grave, só que a cada queda perdíamos muito tempo para levantar, montar na moto, esperar a gasolina da cuba do carburador “desafogar”, dar a partida no pedal várias vezes, até finalmente o motor pegar, engatar a primeira, rodar uns 500 metros e... cair de novo!

O único jeito de a lama não grudar nos pneus era correr. A centrifugação natural retira a lama e os pneus voltam a aderir. Mas o Mário não conseguia correr na lama e fiz uma continha básica para descobrir que nossa média horária era de mais ou menos 10 km/h! E ainda faltavam uns 60 km pra chegar em Lavras.

Fui olhar no mapa para ver se tinha uma forma de cortar caminho e pegar a rodovia. Mas depois de toda aquela chuva e lama o mapa tinha virado uma bola marrom de papier maché.  

Escureceu e chovia muito. A chuva só não era maior do que meu arrependimento. Sem mapa, naquelas motos com faróis tão miseravelmente fracos que pareciam lampiões de carbureto me dei conta do tamanho da burrada, mas não podia fraquejar. Expliquei pro Mário que numa situação dessas tínhamos de fazer que nem os mineiros: seguir o caminho mais batido que termina num bairro, vilarejo, cidade, alguma civilização.

Só que nós somos paulistanos. E foi assim que nos perdemos!

Já passava das 19:00 horas, não tínhamos rodado nem 30 km, sem a menor ideia de onde estávamos, cheios de lama, as motos derrapando tanto que num dado momento minha moto deu um giro de 1800 e fiquei de frente pro Mário! Minha vontade era sentar na beira da estrada e esperar, catatônico, até nascer o sol. Só queria chegar a algum lugar e quando achei que nada podia piorar queimou o farol da Agrale! Lembra lá no começo que comentei que o sistema elétrico das Agrale era um lixo? Pois foi minha primeira experiência com esse problema congênito da marca.

Sem o meu farol tínhamos de andar um do lado do outro pra eu aproveitar o fraco farol da Yamaha. Isso fez a média horária cair ainda mais. A maior preocupação era não cair num dos terríveis mata-burros pela estrada. Para evitar que o gado e os cavalos fujam das propriedades, as estradas eram cortadas por porteiras com diferentes tipos de mata-burro. Normalmente eles são projetados para passar carros e caminhões, não previram que um dia passariam motos a 90 km/h. Os pneus das motos encaixavam no vão do mata-burro e o piloto era arremessado longe, não sem antes quebrar braços e pernas. No Enduro da Independência eu vi muito piloto literalmente quebrado pelo caminho por conta dessas armadilhas.

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ISTO é um mata-burro, se vacilar o piloto se quebra todo. Vi muita gente se arrebentar nessas armadilhas.

No meio de toda essa tensão eu implorava o tempo todo, gritando pro Mário nunca andar no meio da estrada e tomar maior cuidado pra não cair num mata-burro até que tudo ficou escuro e silencioso. O Mário sumiu!

Olhei em volta e... nada! Tirei os óculos e... nada! Ele simplesmente tinha sumido bem do meu lado. E estávamos em São Tomé das Letras, terra de discos voadores, duendes, portais que levam a Macchu Picchu, civilizações escondidas em cavernas e o Mário tinha sumido. Pensei “pronto, o Mário foi abduzido, como vou explicar isso pro Roberto Araújo?”. Desliguei a barulhenta Agrale na esperança de que ele tivesse caído num mata-burro e ouvi um grito:

– Titeeeeeeee volta aqui!!!

O Mário tinha entrado com moto e tudo numa vala cheia de água e adivinhe: o farol da Yamaha pifou!!!

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Preto velho existe

Estávamos, literalmente, numa encruzilhada. Bem num entroncamento de duas estradinhas, em qualquer ponto dos 586.528 km2 do Estado de Minas Gerais, sem luz nem a menor ideia de qual estrada pegar. Foi quando bem longe eu vi uma luz bruxuleante, fraca, típica de lampião e o cheiro típico de lenha queimando. Era uma casinha de taipa, bem simples, no sopé de um morro.

Já com a vista acostumada com a escuridão empurramos as motos até a cerca da casinha e comecei a bater palma. Nada. Mas eu sabia que tinha gente lá dentro porque estava ouvindo vozes. Bom, mas como expliquei, estávamos perto de São Tomé das Letras e ouvir vozes era algo até contumaz naquelas paragens. Bati palma de novo e o Mário sugeriu:

– Tira o capacete!

Ah, mesmo se tratando de São Tomé não deve ser normal alguém bater na sua porta, numa noite de chuva, usando uma bola branca na cabeça, todo coberto de lama e folhas.

Tirei o capacete, bati palmas e a porta se abriu bem devagar. Vimos só a silhueta de um homem. Gritei que estávamos indo pra Lavras e nos perdemos. A porta se abriu mais e o homem veio em nossa direção segurando algo que eu imaginei um rifle, mas era uma bengala. Ele chegou perto e vi que era um senhor bem preto, com cabelos bem brancos, como aqueles quadros de preto velho das casas do interior.

– Boa noite – comecei o discurso – somos de São Paulo, estamos indo pra Lavras, mas escureceu e nos perdemos.

Ele olhou daquele jeito desconfiado que todo mineiro tem desde que nasce.

– Mas vocês estão longe demais – respondeu o velho, já com um ar mais amigável. Entrem, vamos tomar um café que e eu explico – completou.

Entramos. A casa era bem simples, mas toda arrumadinha. Na cozinha, com piso de cimento queimado, estava a mulher dele, idosa também, branca velha, sentada ao lado do fogão a lenha, de onde saía a fumaça que eu farejei como um perdigueiro cego e faminto.

Olhei aquilo tudo, me vi pisando com as botas cheias de lama naquele piso, morri de vergonha, mas aceitamos o café. O rastro de lama atrás da gente. E o preto velho explicou:

– Vocês vão seguir essa estrada pra lá (n.d.r.: mineiro não se entende bem com esse negócio complicado de “esquerda e direita”). Lá no alto você vai ver uma mangueira bem no meio de um capão de mato. Nessa mangueira o senhor vira pra cá.

Enquanto ele explicava eu olhava para as mãos para saber se o “cá” e o “lá” era esquerda ou direita.

Quando terminou a explicação ele perguntou:

– Por que vocês não dormem aqui e vão amanhã? Nessa escuridão, com chuva, vocês vão se perder de novo,

Confesso que fiquei tentado. Olhei pro Mário e ele também parecia gostar da ideia. Mas tinha aquele problema de ficar longe de um telefone, a minha mulher grávida em São Paulo, podendo dar a luz a qualquer momento e no exato instante que pensei em dar a luz o velho disse:

– Se vocês acertarem o caminho vão chegar em Luminárias!

Luz, Luminárias, aquilo só podia ser um sinal.

E era mesmo, porque decidimos seguir em frente e, misteriosamente, o farol da Agrale voltou a funcionar! Perguntei pro Mário:

– E aí, entendeu o caminho?

– Só não entendi a parte da mangueira, é arvore ou daquela de regar jardim?

Agradeci muito ao velho, montamos nas motos, demos a partida e quando me virei pra me despedir, o susto: não tinha ninguém! Olhei de novo e nada. Nem sinal. Ele tinha sumido do nada! A casa estava escura. Me arrepiei todo, engatei a primeira marcha e gritei pro Mário:

– PUTAQUIPARIU, coooooorre daqui!!!

Naquele pavor eu não conseguia identificar mangueira, jaqueira, goiabeira, nem um pé de pau sequer. Seguimos pela estrada mais batida como bons mineiros e depois de algum tempo começamos a avistar luzes de uma cidade. Era Luminárias, a apenas 50 km de São Tomé. Chegamos às 22 horas, totalmente ensopados, enlameados e fomos direto pra primeira placa escrito HOTEL. De lá até Lavras era mais 45 km, mas eu simplesmente cancelei o resto da viagem em troca de um banho quente, jantar, telefone e cama!

Liguei para São Paulo e estava tudo dentro do previsto para o nascimento da minha filha um mês depois. Nunca fui muito bom em contas...

Agrale_DT180_capa_teaser.jpg

A chamada de capa já trazia o aviso: teste-emoção!

Na manhã seguinte, mais calmo, encontramos com os enduristas da região que nos levaram para uma sessão de fotos no meio de um lamaçal, de novo!!! Olhei pro Mário, visivelmente de saco na lua e propus:

– Vamos voltar?

– Agora!

Pegamos a Fernão Dias para mais de 350 km de asfalto limpo, delicioso, macio e seco. Quase chegando em Mairiporã fomos premiados com uma luz perfeita, num belíssimo pôr do sol que rendeu a foto da capa.

Até hoje não sei se o preto velho foi uma alucinação depressiva depois de tanto estresse naquelas estradas de terra, se aconteceu mesmo ou se eu simplesmente inventei tudo isso. Só o Mário pode confirmar, ou não. Acho que na hora que me virei não vi nada porque o senhor era mesmo muito preto e nossas motos estavam sem as lanternas traseiras. Quando eu olhava pelo espelho só via escuridão. Mas, sabe-se lá, era São Tomé das Letras, terra de histórias extraordinárias.

Para saber mais sobre a família Stedile clique AQUI.

 

 

publicado por motite às 22:46
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