Terça-feira, 17 de Novembro de 2009

Umbigocentrismo

(Esse umbigo todo mundo quer cuidar...)

 

Às vezes, quando vejo a forma como algumas pessoas dirigem fico pensando “como a humanidade conseguiu chegar até aqui?”. Nós sobrevivemos a várias hecatombes, guerras, genocídios, aos Trapalhões e chegamos ao século 21. Como isso foi possível?

 

Não sou historiador, nem cientista político, muito menos antropólogo, mas sou “transitólogo” um observador do trânsito e da sociedade que gira em torno e dentro do trânsito. E não consigo imaginar como chegamos aos dias de hoje nos comportando da forma como se faz no trânsito: cada um cuidando do próprio umbigo.

 

Não acredito que as primeiras organizações sociais na época do homem de cro-magnon sobreviveriam se eles não obedecessem alguma ordem. Não teríamos alcançado a fase do homem moderno se nossos vovôs vivessem isoladamente, cada um cuidando dos próprios piolhos.

 

O sociólogos a antropólogos dos anos 50 apostavam que a humanidade chegaria ao século 21 de forma muito mais organizada, partindo sobretudo de uma visão até romanceada do avanço da comunicação. E olha que eles nem conheciam a Internet! Os meios de comunicação daquela época, principalmente rádio e TV eram cotados como os maiores inventos no sentido de transformar o mundo em uma imensa aldeia global (Marshal McLuhan). Segundo McLuhan, se um pintor de parede na Sicília assobiava a nona sinfonia de Beethoven isso só era possível graças à globalização do mundo obtida graças aos meios de comunicação. E ele morreu sem conhecer o MSN, Orkut, facebook, Youtube e myspace...

 

E por que não chegamos na evolução? Por que não atingimos a sociedade asséptica e totalitária imaginada por George Orwell no clássico romance 1984 (escrito em 1949)? Do trabalho visionário de Orwell temos efetivamente a implantação do Grande Irmão (Big Brother), a total ingerência do Estado na vida das pessoas por meio de métodos eletrônicos de fiscalização. As câmeras que flagram se você pagou o IPVA em dia, o projeto de implantar chip transmissor nos carros para controlar a velocidade (y otras cositas más) de cada motorista são a concretização do 1984 imaginado por Orwell.

 

E o que essa papagaida toda tem a ver com o trânsito que mencionei lá em cima? De um lado temos as teorias da evolução do homem-social que deveria viver harmonicamente em sociedade.  Do outro temos as teorias sobre o Estado oligárquico que deve ingerir e cuidar dos cidadãos como um grande pai (sim, porque irmão não cuida direito). Mesmo assim o desgraçado continua cortando caminho por dentro de um posto de gasolina só para não ficar 30 segundos parado no semáforo. Isso porque entra em cena outro conceito antigo, de cinco séculos antes de Cristo, quando Protágoras lascou “O Homem é a medida de todas as coisas”. Algo assim como se tudo de bom ou ruim no mundo fosse obra do Homem. Como carros, semáforos e marronzinhos são criação do Homem, o trânsito só é essa baderna irremediável porque o que circula são máquinas, mas conduzidas por pessoas.

 

Toda teoria científica sobre evolução do homem e da sociedade pode ser jogadas na lata do lixo porque evolução traz intrínseco o conceito de melhoria. E quem disse que as pessoas estão melhorando? Poderia gastar quilômetros de texto para conceituar o que é “ser melhor”, mas isso torrar-lhe-ia a paciência e ninguém chegaria ao segundo parágrafo (e meus leitores preferem o Tite versão comédia). Porque todas as teorias científicas não levam em consideração o nivelamento por baixo do Homem. E quando McLuhan imaginava que os meios de comunicação serviriam para criar uma humanidade melhor só esqueceu de levar em conta o conteúdo que esse meio traria ao público. Não consigo imaginar um programa como Pânico ser algo capaz de melhorar um cidadão. Ou como o pretenso humor-chic do sem graça CQC pode construir um mundo melhor. Como acreditar na evolução de uma sociedade diante de um apresentador de TV com gigantesca audiência que chama personalidades efêmeras sem um grama de cérebro aproveitável de “nossos heróis”? Herói de quem, cara pálida? Pobre McLuhan...

 

É, a ingenuidade científica dos anos 50/60 não foi capaz de prever o umbigocentrismo, conceito cada vez mais difundido pelo qual cada um cuida de si e danem-se os outros. Não confundir com Antropocentrismo, que é outra coisa. Estou falando de umbigo mesmo, aquele buraco na barriga cheio de flunflas. O umbigocentrismo define programação de TV com o propósito de ser algo vendável aos patrocinadores. É o umbigocentrismo que cria monstros como Galvão Bueno que se colocam muito acima do fato. Graças ao umbigocentrismo temos tantas ex-modelos apresentando programas de TV ou, pior: pessoas de caráter rasteiro apresentando programa infantil. É assim que teremos uma sociedade melhor? A categoria política adota o umbigocentrismo para trabalhar cada vez menos e ganhar cada vez mais. Porque precisam manter limpos e perfumados os próprios umbigos, danem-se os outros.   

Quando a NSK rolamentos me pediu para fazer uma palestra sobre segurança no trânsito passei dias analisando o público para criar algo que fosse direcionado ao público deles e não algo pronto sem identidade. Na primeira tela aparecia um filme bem conhecido do Youtube com o texto “O trânsito nada mais é do que um conjunto de regras para permitir a organização social. E como tal exige atitudes como educação, respeito ao próximo e amor à vida”.

 

Olhe à sua volta, não agora, mas quando estiver no meio do trânsito e responda sinceramente: você vê educação, respeito ao próximo e amor à vida? O que vemos é a prática do umbigocentrismo. Se existe o Grande Irmão, serve apenas para fiscalizar se ninguém está lesando o Estado, porque o Estado também cuida muito bem do seu umbigo. Mas na hora de saber quem respeita e quem desobedece a vida em sociedade essas câmeras estão sempre sem foco. Se você sair de carro com o IPVA atrasado as câmeras te pegarão, mas se na mesma rua, sob a mesma lente, você estiver falando no celular, pode ficar sossegado porque isso não é da conta do umbigo estatal.      

 

publicado por motite às 20:03
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