Quer andar ou ficar parado?
Como fazer para conquistar o bem mais valioso da vida
Qual o bem precioso que não pode ser dado, nem tirado, nem comprado, alugado, emprestado, oferecido ou distribuído? O tempo! Hoje as pessoas se desdobram para articular suas vidas de forma a aproveitar ao máximo as 16 horas do dia em que ficam acordados. Nesse período precisam administrar o tempo para se alimentar, trabalhar, estudar, se divertir, se exercitar, ficar com a família de forma a sobrar oito horas para dormir. Nem todo mundo consegue.
Lilian*, 24 anos, tinha um sonho: ser enfermeira. Mas para conseguir era preciso fazer um cursinho pré-vestibular, o que a estava torturando porque para pagar o cursinho era preciso trabalhar duro. Ela mora na zona leste, trabalha na zona sul e estuda no centro de São Paulo. São 32 quilômetros de distância que ela percorre para ir de casa para trabalho. E mais 32 para voltar, com a parada no cursinho. Para fazer esse percurso de ônibus Lilian precisava de duas horas e quinze minutos em média apenas em um sentido. Ou seja, quatro horas e meia para se deslocar de casa para o trabalho, estudo e voltar.
- Sobrava menos de quatro horas para dormir e estudar!
Até que Lilian percebeu que a saúde estava prejudicada porque simplesmente não conseguia se alimentar direito, se exercitar e muito menos dormir. O estresse a fez engordar quase dez quilos em apenas um ano e a perspectiva era piorar esse quadro, até que viu uma saída bem debaixo dos seus olhos.
- Quando eu estava no ônibus, vi uma moça passando com uma motoneta entre os carros e ela foi embora, enquanto eu fiquei ali, parada um tempão!
Depois de convencer a família, Lilian decidiu comprar um scooter usado, fez a moto-escola, tirou habilitação e fez a experiência de atravessar a cidade em duas rodas.
- Sempre tive bicicleta a vida toda, adoro a sensação de liberdade que dá, mas nunca tinha pensado numa moto. Foi uma mudança radical na minha vida. Na primeira vez que fui para o trabalho com a ‘motoquinha’ cheguei tão cedo que fiquei esperando a empresa abrir!
Mais acostumada com a dinâmica da scooter e com o trânsito, Lilian passou a fazer aquele mesmo percurso em 45 minutos! Ela ganhou três horas por dia, todos os cinco dias da semana, usando o scooter em vez de ônibus.
- Minha vida mudou muito! Consigo dormir mais, estudar e ainda tomo café com a minha família, que não conseguia há mais de seis anos!
E se alguém perguntar qual foi a maior conquista que a “motoquinha” lhe deu?
- Qualidade de vida! Entrei na faculdade e ainda consigo fazer academia!!!
Os carros param, as motos circulam, sem pressa...
Como comercializar o tempo?
Esta personagem é real, como ela existem centenas de milhares de Lilians, Marias, Antônios, Josés que convivem com o drama da “falta de tempo”. São pessoas que deixam de estudar, de crescer profissionalmente, cuidar da saúde, ficar com os filhos porque passam muito tempo se deslocando no trânsito. Se pudessem comprariam mais tempo. Mas o tempo é uma grandeza que não é comercializada, quer dizer, em vez de comprar mais tempo, pode-se perder menos tempo.
O deslocamento nas grandes cidades é o grande desafio para administrar o tempo. Hoje já se detectou que essa necessidade é tão importante que os jovens não se preocupam mais com automóveis ou casa própria. Descobriram que o maior benefício do aluguel é a possibilidade de morar perto do local de trabalho. E desprezam o automóvel porque as grandes cidades não estão mais comportando tanto carro nas mesmas vias. Reduzindo o percurso casa-trabalho pode-se até mesmo abrir mão de veículos motorizados e partir para meios como bicicleta ou mesmo taxi.
Neste contexto a moto ganhou uma nova abordagem. Para alguns ela é essencial para melhorar a qualidade de vida. Passam menos tempo se deslocando e usam o tempo para atividades mais nobres. Ou enxergam a moto como um veículo de fim de semana, só pelo prazer de viajar em duas rodas. Assim como os barcos, alguns tratam a moto como um bem essencialmente voltado ao lazer.
Mas quando olhamos para os números recentemente anunciados pela ABRACICLO – associação que reúne fabricantes de motos e bicicletas – vemos algo que não combina com essa realidade: as vendas de moto estão despencando em um ritmo assustador. Segundo dados da entidade, nos seis primeiros meses de 2016 houve uma queda de 33,4% nas vendas em relação a igual período de 2015, que já foi ruim!
Como explicar que um veículo que pode promover a qualidade de vida está vivendo um período de queda nas vendas que é quase 50% a menos do que quatro anos atrás? Bom, parte está na conjuntura econômica que tirou não só os empregos (e dinheiro) dos brasileiros, mas também a confiança no futuro. Quem tem dinheiro guardado simplesmente não gasta porque não sabe o dia de amanhã. Mas acredito que também falta mostrar aos brasileiros o quanto a moto pode melhorar suas vidas.
Basta ver como são feitas hoje as propagandas de motocicletas. São voltadas para a venda ao varejo, com anúncio de descontos, maior garantia, revisões grátis, troca de óleo grátis, parcelamento sem juros, troca com troco etc. A indústria e o varejo focam toda a publicidade apenas em cima de custo x benefício, mas esquecem de mostrar o real benefício.
O que a indústria precisa vender não é moto, mas tempo!
Quer mais tempo para passar com os filhos? Perca menos tempo no trânsito.
Trauma x ensino
Nos cursos da ABTRANS – Academia Brasileira de Trânsito – tem aparecido uma quantidade muito grande de novos usuários de motos, especialmente mulheres. O perfil do novo consumidor de moto mudou e parece que só a indústria não percebeu.
Uma dessas alunas contou uma história chocante. Marisa* é dona de um buffet que presta serviços para eventos como festas de casamento, aniversários, cerimônias de empresa etc. Apesar da crise em todo o País, os negócios prosperaram e ela precisava visitar vários endereços por dia para apresentar a empresa, acompanhar a montagem, visitar fornecedores e prospectar novos clientes. Mas numa cidade como São Paulo, esse trabalho de carro limitava sua operação, por isso também decidiu comprar um scooter e quando foi se habilitar veio o choque.
- O instrutor me perguntou se eu sabia andar de bicicleta e dirigir carro. Depois me colocou numa moto 250cc, mostrou a embreagem, o câmbio, mandou ligar e sair. A moto empinou, foi em linha reta e bateu em mais duas. Ele me xingou de tudo que foi nome e saí chorando, constrangida. Nunca mais voltei
Aí está outro gargalo para a indústria: como vender algo tão precioso como o tempo se não for capaz de ensinar a ferramenta do jeito certo? Um instrutor de moto-escola mal treinado pode acabar com horas de trabalho de um bom vendedor de moto. Como vencer o desafio de vender algo se não ensinar como manusear?
Felizmente a Marisa fez um curso ABTRANS, tirou a habilitação, comprou um scooter pequeno e hoje consegue visitar o dobro de endereços no mesmo tempo e ainda sobra tempo para ficar com a família. O que a fez perder o trauma foi um paciente e didático método de aprendizado que só foi possível em uma estrutura feita 100% para atender o novo motociclista. Porque a “formação” promovida pelas moto-escolas limita-se a um adestramento para passar na prova de habilitação e algumas leis de trânsito. O resto, o novo motociclista aprenderá na rua, se der tempo.
Curso de pilotagem ajuda a entender que moto se pilota sem pressa.
Tem um tempo aí?
Outro equívoco promovido não só pela indústria como pela mídia especializada (e eu me incluo nela) foi vender a ideia de que moto serve para ganhar tempo, por ser um veículo ágil no trânsito.
Esta proposta, que aparentemente parece lógica e inofensiva, trouxe na garupa um componente perigoso, porque a agilidade é um conceito primo-irmão da velocidade. Além disso, o conceito de ganhar pressupõe que também pode-se perder. Colocando esses dois conceitos lado a lado temos aí sim a perigosa mensagem que moto é feita para ganhar tempo, por isso você precisa correr. Mas não é verdade.
Ninguém ganha tempo, porque além de ser uma medida abstrata, o relógio tem um limite físico que são os 60 segundos. O máximo que podemos fazer é não perder tempo. Por isso o conceito a ser trabalhado precisa mudar de foco: a moto não é um veículo feito para ganhar tempo, porque com ela nós não perdemos tempo!
O cérebro é uma meleca cinzenta totalmente programável. Assim como um computador, ele precisa que sejam fornecidos dados certos para administrar e gerenciar as ações. Dependendo da forma como esses dados são imputados o resultado pode ser o benefício ou a – literal – dor de cabeça. Daí a importância vital de apresentar a moto de forma que o cérebro assimile o que ela tem de bom a oferecer e não a possibilidade de visitar o pronto-socorro.
É por isso que fico visceralmente enraivecido quando vejo “profissionais” de segurança exibindo acidentes com motociclistas, na crença ingênua de que a imagem servirá de lição. Eles se esquecem que o cérebro é programável e assimilar o acidente (o lado ruim da moto) pode não apenas servir para absolutamente nada em termos de ensino, como causar um trauma que irá tirar a naturalidade de pilotar.
Sim, vender moto não é fácil, sobretudo em um período de recessão econômico. Talvez se fábricas e entidades ligadas a ela mostrassem o maior benefício das motos as coisas poderiam mudar. Pense na Lilian. Ela só conseguiu melhorar de vida depois que aprendeu a valorizar o tempo e isso foi obtido graças a moto. Quem, nesse mundo, tem CINCO horas para usar apenas em deslocamento? As três horas a menos que ela conquistou foram vitais para estudar e entrar na faculdade. Hoje ela é enfermeira, bem sucedida, graças apenas a uma mudança de postura.
Engana-se quem vende a moto como um veículo feito para ganhar tempo, porque com ela a gente simplesmente não perde tempo. Esse é o conceito que o cérebro precisa assimilar para traduzir em uma pilotagem segura sem necessidade de correr. As pessoas que você vê correndo e se acidentando no trânsito são pessoas que correriam e se acidentariam com qualquer veículo, ou até a pé. Porque o cérebro delas foi programado para ganhar tempo a qualquer custo, mesmo que o preço a pagar seja a vida.
Em mais de 40 anos pilotando moto em São Paulo posso dizer que já devo acumulado tempo correspondente a alguns anos. Pena que não posso dar esse tempo para ninguém.
* Os nomes foram alterados para preservar a identidade.
Eu estaciono onde quiser, vocês não me importam...
Qual a relação entre esses três elementos
Já começo pedindo desculpas pelo tema, porque falar de cocô é um tabu, apesar de ele fazer parte de nossas vidas do nascimento até a morte. Mas não se costuma falar em cocô a menos que seja em livros de medicina. E um dos motivos é por ser um assunto muito pessoal: cada um cuida do seu! Ou melhor, do seu e dos animais de estimação.
Moro no mesmo endereço há 45 anos. No começo era um bairro tranqüilo, afastado do centro de São Paulo e com poucos moradores. Hoje faz parte da super populosa zona sul, que cresceu de forma exponencial, sem planejamento. Continua um bairro de classe média, Z1 (só para casas), mas não existem mais áreas verdes, parques, campos de futebol. Virou tudo casa, calçada e asfalto.
Quase todos os dias encontro cocô de cachorro na calçada bem em frente ao portão. Ou cocô de gato na minha garagem, no carpete ou no jardim. Só que eu não tenho gato, nem cachorro!
Quem picha uma obra de arte respeita a sociedade?
O mundo mudou muito em 45 anos, algumas coisas para melhor, como a medicina, a eletrônica e a tecnologia; mas outras para pior, como a educação do ser social. E aqui começa a relação entre cocô, política e trânsito.
Em pleno século 21, ano de Olimpíadas, ainda tem gente que vive como se estivesse na Idade Média. Naquela época não havia banheiro nas casas. Usava-se penico, onde os moradores faziam as necessidades, iam até a janela e jogavam aquela sujeira na calçada, bem na frente das casas. Imagine cidades grandes como Paris e Roma com montanhas de fezes e urina nas ruas. Isso provocava um mal cheiro, chamado na época de mal aire, palavra que deu origem ao nome da doença malária.
Passaram-se 1.100 anos e as grandes cidades ganharam redes de esgoto, mas ainda tem gente que joga cocô nas ruas como se vivessem no século 10.
Olha como era o banheiro na Idade Média!
Doença social
Tem nome: chama-se sociopatia. O sociopata é um doente, mas como a maioria dos doentes comportamentais ele não sabe, ou acha que doentes são os outros. O cara que sai de casa com o propósito de pichar uma parede, monumento ou fachada de prédio quer dar o seguinte recado para a sociedade: vocês são tudo um monte de cocô. O sujeito que deixa o cocô do cachorro na porta da casa de alguém acha que esse alguém é menos importante do que meio quilo de cocô.
Se ele age assim com as fezes do seu cachorro, pode até ser que no ambiente de trabalho seja um chefe exemplar, um funcionário dedicado, mas duvido. Essa falta de educação social se reflete em todo relacionamento. Provavelmente são pessoas que se comportam como bons cidadãos até o garçom demorar para trazer seu pedido.
Essa dupla personalidade fica muito evidente no trânsito. O pai, ou mãe, que para em fila dupla na porta da escola para deixar ou buscar o filho está pouco se lixando para os outros motoristas e pedestres. É uma pessoa para a qual os outros valem menos que o cocô de cachorro. O motociclista (ou motoqueiro, que é a mesma coisa) que roda a 90 km/h no corredor entre os carros, tocando a buzina ou acelerando um escape aberto é outro que coloca nos outros a mesmo importância que dá ao cocô do cachorro. Idem o pedestre que decide atravessar por baixo de uma passarela (construída para salvar a vida dele), ou o ciclista que ignora todas as regras de trânsito, que estão nem aí para os outros, quer apenas andar como e onde bem entende.
Aí está a grande dificuldade em trabalhar com mobilidade urbana: cada um quer fazer apenas o que é melhor para si, sem dar a mínima para os outros. Ora os outros, pra eles deixam o cocô do cachorro. Por isso é tão difícil tratar do assunto “educação de trânsito”, quando se tem um público que já não tem nem a educação mais elementar.
E a política?
Uma organização social é pautada em leis. E quanto mais insensata for uma população mais leis serão necessárias. Porque onde impera a sociopatia quem faz o papel de educador social é o poder executivo. Em uma sociedade avançada o papel de educador social é feito pela família, que passa os conceitos como generosidade, respeito e altruísmo de pai para filho como se fosse uma carga genética.
Aqui começa o descontrole quando se trata de países socialmente atrasados. Quem cria e aprova as leis são os políticos eleitos pela população (em uma democracia). São vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores e até o presidente da república. E quem são essas pessoas? São pessoas comuns, que pode ser um cientista político, com curso superior, pós-graduação, escritor de teses sobre sociedade ou... um cidadão que leva o cachorro para passear e deixa o cocô na porta da casa do vizinho.
Políticos não vem de Marte, não são entidades sobrenaturais, não nascem com super poderes, são pessoas comuns que podem ser talhadas para a vida pública ou apenas o ex-participante de um Big Brother da vida. Porque quem elege também pode ser alguém engajado com as questões sociais ou um sociopata que estaciona em fila dupla.
Como se vê, tudo gira em torno do ser social e quando esse ser está doente toda a sociedade adoece junto. E é por isso que às vezes a gente acorda e descobre que foi aprovado um projeto de lei completamente maluco, que dificultará muito a sua vida. Quem criou e quem aprovou são pessoas comuns, doentes, que pensam primeiro em si ou na sua corporação e não na maioria.
O mais estranho é que as relações pessoais regrediram na medida direta da evolução tecnológica. Quanto mais as pessoas se comunicam e se expõem pela internet nas redes sociais, tentando passar uma imagem de descolado e antenado, mais vemos casos de pancadões madrugada a dentro, motos com escape direto e motoristas que simplesmente desprezam os sinais de trânsito.
Existe uma preocupação evidente de se mostrar um caráter publicamente, mas praticar outro tipo de comportamento – geralmente pior – no mundo social. Talvez o ser humano tenha desaprendido a viver em sociedade. Enquanto os povos primitivos precisavam viver em sociedade como forma de sobrevivência, hoje parece que as pessoas vivem em sociedade como forma de penitência. “Eu sou obrigado a agüentar esse meu vizinho, mas minha vontade era matar esse desgraçado”. Ou, “esse miserável me impediu de andar mais três metros com meu carro, desgraçado, vou buzinar até ele se sentir atacado”...
Nossa pena maior é saber que essa tendência de incentivar e valorizar o indivíduo acima do social não tem perspectiva de regressão e também não é regional. Ela atinge as sociedades modernas de forma endêmica, sem distinguir religião, etnia, posição social, localização geográfica. OK, tem sociedades onde essa tendência é menos evidente, mas faça uma pesquisa no Youtube e repare que os filmes que trazem situações constrangedoras ou de acidentes superam em muito as visualizações quando comparados com filmes que mostram qualidades humanas dignificantes.
Como melhorar os índices de acidente de trânsito se o principal agente modificador está piorando? Participei de uma palestra com o espanhol Jesus Gonzalez, da Fundación Mapfre, que mostrou um dado estatístico já conhecido de qualquer especialista: o fator contribuinte para o acidente de trânsito é o comportamento, com 75%.
Segundo o especialista, o que ajudou a reduzir enormemente o número de acidentes na Espanha foi uma soma de medidas, sendo que em primeiro lugar veio a educação e mais 144 medidas de ordem técnica e comportamental. Em suma, não existe UMA medida milagrosa, como a redução pura e simples da velocidade nas vias, por exemplo, mas uma enorme quantidade de medidas que sejam criadas em conjunto com vários setores da sociedade. Uma delas, (que por sinal defendo há 15 anos), foi incentivar as empresas a incluírem no desenvolvimento do profissional, como ferramenta de recurso humano, a disciplina “Comportamento no Trânsito”, que inclui todos os atores, desde pedestre, passando por ciclistas, até motociclistas, motoristas e caminhoneiros.
Mas quando vou a uma empresa propor uma ação de conscientização de segurança no trânsito sou recebido como um marginal vendedor de droga a fim de tomar uma grana deles!
Para que isso dê resultado o elemento chave ainda é o ser humano. Mas enquanto tivermos na sociedade um número cada vez maior de gente que trata o outro como se fosse apenas uma calçada suja de cocô não há esperança.
* Nota: Os números de acidentes com vítimas caiu nos últimos dois anos, aqui no Brasil, especialmente em São Paulo. Alguém poderia acreditar que foi reflexo de algumas medidas técnicas incluindo a redução da velocidade. Mas na verdade é um efeito colateral da crise financeira: a venda de veículos novos caiu em média 30% no período e muitos brasileiros trocaram o carro pelo transporte público ou simplesmente não tem grana pra comprar um carro ou uma moto. Quando mal interpretada, a estatística é uma ficção matemática
O desafio de se mover em uma cidade com 12 milhões de pessoas
O tema está na pauta de qualquer conversa e dominou as redes sociais: as ciclovias e ciclofaixas em São Paulo. Se para você é uma novidade, isso sim é o primeiro grande erro ao tratar do assunto mobilidade urbana.
Só para lembrar da minha velha teoria do caos, acredito fielmente que as decisões na administração pública em São Paulo são tomadas sempre quando o caos já está implantado. Não existe o menor vestígio de planejamento. Primeiro a cidade precisa chegar no limite para depois tomarem medidas desesperadas e que geram resultados insatisfatórios.
Para comprovar o que estou afirmando, em 1981 - nada menos que 33 anos atrás - trabalhei em um projeto da Comgás, junto com a Prefeitura que tinha como objetivo nada menos do que implantar uma rede de ciclovias que ligaria as principais avenidas e - veja você - aproveitando as margens do rio Pinheiros. Esse projeto - com centenas de páginas, desenhos, plantas etc - foi solenemente arquivado e deu no que deu: o caos!
A pergunta que fica é: por que demorou tanto para essa ideia ser desengavetada? A única resposta que consigo vislumbrar é a mais pura falta de interesse. Na mentalidade dos administradores públicos as boas ideias só são válidas se vierem atreladas a algum interesse político. Tenho pena de quem acha que essas polêmicas ciclovias criadas às pressas em São Paulo foram resultado de uma ação planejada e estudada. Que nada, foi a velha correria para tirar proveito político.
Naquele projeto de 1981 o alvo era o usuário da Caloi Barra Forte ou Monark Barra Circular, que usa a bicicleta porque precisa e não aquele que usa por ativismo ideológico. Por isso o projeto começava na zona leste e era interligado com transporte coletivo (antes do metrô). Previa a criação de bicicletários com armários, banheiros e segurança.
Barraforte, essa é de respeito!
Menos carro, mais problemas
Hoje a consciência ecológica elegeu o carro como o inimigo público número um, a ponto de criar o Dia Nacional Sem Carro, embora jamais eu tenha ouvido falar em Dia Nacional Sem Corrupção, Dia Nacional Sem Criança Fora da Escola etc. Depois de incentivar, produzir e gerar a necessidade por automóvel por mais de 50 anos, a administração pública de São Paulo decidiu demonizar o automóvel e desviar a verdadeira incapacidade de gerenciar o sistema viário.
A mais nova sugestão é aumentar para dois dias por semana o rodízio municipal de veículos. Essa medida tem o mesmo efeito que aumentar o tamanho do balde para resolver o problema de goteira! Não cura a doença, só elimina o sintoma! E a Prefeitura aproveita a onda ativista contra os automóveis para promover uma falsa ideia de "antenada com a consciência ecológica". Mentira da grossa! Se houvesse mesmo essa preocupação já não teríamos mais nenhum ônibus movido a óleo diesel rodando pela cidade. Essa medida é essencialmente política e não técnica e baseada em uma pesquisa fajuta com 700 munícipes num universo de 11 milhões de pessoas! Beira o ridículo!
Outra teoria que defendo desde o longínquo 1981 é que não se pode importar soluções holandesas para implantar em uma realidade paulistana. As cidades europeias existem há mais de 2.000 anos e o cidadão aprende a viver em sociedade de forma organizada desde que nasce. São Paulo existe como sociedade organizada há pouco mais de 150 anos e o resultado é o que se viu logo nos primeiros dias de implantação das ciclovias nos bairros: carros estacionados nas ciclovias vazias e comerciantes furiosos!
Bicicleta popular, solução inteligente
Ficou evidente para qualquer pessoa que essas ciclovias foram implantadas às pressas, sem um estudo de impacto na região não só do ponto de vista de mobilidade, mas também de como iriam afetar os comerciantes, profissionais e moradores. Foi no melhor estilo do "faz e depois a gente vê como fica"... o que comprova o caráter mais eleitoreiro do que prático.
Evidentemente os ativistas são a favor da teoria do caos, tipo "uma hora teria de ser feito, não podia mais adiar". Adiar??? O primeiro projeto data de 1981, como assim adiar? Se fosse respeitado o primeiro projeto essas ciclovias já estariam todas implantadas há décadas, funcionando e operando sem causar o menor furor.
A cegueira ativista não enxerga o óbvio: São Paulo (e o Brasil) é dependente da indústria automobilística desde os anos 1950. Foi nos pátios das indústrias da região do ABC que nasceu o partido político que comanda o Brasil e a cidade de São Paulo. A indústria tem um peso fundamental nas decisões políticas e econômicas, dizem quando e quanto querem pagar de impostos e usam como poder de barganha a eterna ameaça de demissões em massa. O medo de mexer com esse poder econômico foi que impediu por décadas que se investisse em melhoria no transporte público, ou na implantação das ciclovias.
Agora, como um tratamento de choque, o prefeito quer demonizar o automóvel por meio de canetadas desqualificadas e inofensivas. Percebe o tamanho do buraco?
E as motos?
Tratar de mobilidade urbana não se limita a atender reivindicações de ativistas, vai muito além disso. Por exemplo, cansei de escrever que em uma cidade com 11 milhões de habitantes quanto menos as pessoas se deslocarem melhor. Não há milagre que faça seis milhões de veículos circularem harmoniosamente. Portanto nessa batalha por mais mobilidade não se mover, ou mover-se o mínimo possível, é uma opção. Aqui entram os profissionais de recursos humanos que devem olhar com especial atenção para o endereço dos candidatos à vaga. Se puder fazer essa pessoa se deslocar menos, melhor.
Outro papel dos profissionais de recursos humanos é garantir a segurança e saúde dos funcionários. Não dá para aceitar como normal que um trabalhador gaste quatro horas por dia só para se deslocar ida e volta para o trabalho. Reduzir esse tempo pela metade permitiria que essa pessoa investisse em qualificação profissional, saúde e até lazer.
É nessa hora que entra a motocicleta como opção de mobilidade. Mas falar em moto para um gerente de RH é quase um palavrão. Porque o peso - inclusive financeiro - por um afastamento de trabalho por acidente de trânsito soa como pesadelo. Não passa pela cabeça desse profissional de recursos humanos (que, acredite, cursou uma faculdade) investir no treinamento e qualificação do motociclista. Ele prefere proibir, isso mesmo, proíbe ou desqualifica o candidato que usa moto para se deslocar.
Mas o pesadelo dele vai piorar. Hoje o ativismo está incentivando o uso da bicicleta como meio de transporte com propostas como redução de impostos às empresas que conseguirem uma diminuição das emissões de carbono. É a receita certa para desandar a maionese de vez, porque estou só lendo, ouvindo e vendo medidas como criação de bicicletários, vestiários, para estimular o uso na magrela mas até agora não vi uma só medida no sentido de ENSINAR essas pessoas a como se comportarem no trânsito!
Preparem-se para um crescimento na acidentalidade semelhante ao que aconteceu com as motos nos últimos 20 anos. Vamos incentivar o uso da bike mas não vamos ensinar como atravessar a rua, em qual lado da via se colocar, respeitar a calçada e os pedestres e em breve os mesmos profissionais de RH que estimularam o uso da bike estarão propondo a desativação dos bicicletários e vestiários. É o mesmo filme que vimos acontecer com as motos. De solução para o trânsito, hoje a moto é a vilã que ainda causa mais engarrafamento a cada acidente.
Tudo consequência de uma doentia incapacidade de executar a tarefa mais primordial de qualquer projeto urbano: PLANEJAMENTO! Esse conceito é tão abandonado que estou aqui escrevendo sobre uma "novidade" sugerida 33 anos atrás! Ao contrário do que os ativistas adoram alardear, ciclovia não é uma necessidade urgente, porque a urgência é a mãe de todo esse caos. Na verdade ela tem nada de urgente, a ciclovia em São Paulo está três décadas ATRASADA. Não se corrige um erro de 30 anos pintando um pedaço de rua.
Preste atenção nesta foto: a moto está estacionada na calçada e pode ser multada pelo agente do CET que está parado na calçada impedindo a passagem de pedestre. Quem quiser respeito precisa se dar ao respeito...
A falta de autoridade é o primeiro sintoma de descontrole
Lembra da escola? Quando a professora saía da sala e a criançada fazia a maior bagunça? No meu tempo a professora era a autoridade máxima e a simples presença dela era suficiente para a classe silenciar. Hoje essa autoridade está meio abalada.
É mais ou menos essa a sensação com relação ao trânsito. Parece que a professora saiu da sala e a criançada virou tudo de pernas pro ar. Não existe mais respeito às autoridades de trânsito, simplesmente porque essa figura há muito tempo não se dá ao respeito.
Quem é, hoje em dia, a autoridade de trânsito? É um mecanismo que filma, fotografa, processa e te envia uma multa? Ou é uma pessoa fardada, portando um bloco de anotação que também produz e envia multas. Essa é a única autoridade de trânsito que atua nas ruas.
Por isso as pessoas dirigem, andam e rodam do jeito que querem como se a professora tivesse saído da sala de aula. Sem a figura da autoridade não existe a quem respeitar.
Já houve um tempo em que o policial de trânsito era respeitado, talvez porque tivesse sim o papel mais educador do que punitivo. Lembro de várias vezes ver a figura de um desses agentes nos cruzamentos, com um apito, organizando um tumultuado cruzamento. Também ajudava os pedestres na travessia das ruas e havia um enorme senso de respeito. O guarda que ficava na porta da minha escola era nosso herói e de uma incrível simpatia.
Lembro claramente de um esquadrão batizado de Bem-Te-Vi, de policiais que usavam motos Suzuki 500, patrulheiros com casaco de couro e impunham um tremendo respeito pelas ruas. Eu já era louco por motos e queria ser um Bem-Te-Vi. Já pensou? ser pago pra andar de moto o dia todo?
Pode-se respeitar uma autoridade de duas formas: por admiração, no caso da família; ou por medo, no caso dos policiais. O respeito por admiração vem dentro de casa, com o comportamento exemplar do adulto diante das crianças. Crianças respeitam pais que exigem respeito. Sempre foi assim e assim deveria ser. Os ídolos são admirados - e respeitados - pelo que representam, por isso exige-se um comportamento exemplar. Ídolos que não se dão ao respeito perdem a idolatria ou a admiração. Pelo menos deveria ser assim.
Na época da Alemanha nazista as pesquisas mostraram que 98% dos alemães eram simpáticos ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), berço do nazismo. Mas será que algum cidadão alemão que abrisse a porta de casa e desse de cara com dois ou três paramilitares fardados e assustadores teria coragem de dizer que era contra o partido? Ainda se confunde muito os conceitos de admiração e respeito com o do medo. O respeito baseado puramente no medo é típico dos regimes ditadores autoritários. Existem crianças que respeitam os pais e outras que sentem medo.
Não sou sociólogo nem historiador, muito menos psicólogo para analisar o que aconteceu no Brasil nos últimos 30 anos para que a nossa autoridade de trânsito desaparecesse por completo. Pode ser a necessidade vital e urgente em dissociar o papel fiscalizador do trânsito da farda militar, após um logo período de regime militar. Mas calma aí, antes de perder seu tempo me escrevendo afirmando "então você apóia a volta dos militares?". Não é e se alguém entender assim recomendo que volte à escola. Só que hoje em dia as autoridades de trânsito perderam o status de autoridade para ser apenas o bedel da escola, aquele que dedura quem mata aula, ou quem briga no intervalo. O agente de trânsito não passa de um dedo-duro!
Para ser sincero, acho que existe uma enorme bagunça administrativa no papel fiscalizador do trânsito. Para começar deram poder de multa aos policiais militares, mas sem o devido treinamento. Em São Paulo a polícia de trânsito já foi extinta, agora voltou, mas com uma quantidade insuficiente de agentes para uma cidade com seis milhões de veículos circulando.
O resultado é essa impressão de que a professora saiu da sala sem prazo pra voltar.
Dentro da visão de quem vive e trabalha com trânsito há mais de 40 anos, diria que se as autoridades querem mesmo reduzir essa enorme catástrofe sob o eufemismo de "acidentes de trânsito" o primeiro passo é colocar de volta a professora na classe. Criar uma polícia de trânsito capaz não apenas de multar (e por apenas algumas horas do dia), mas também de disciplinar os atores do trânsito. Talvez até criar mais delegacias de trânsito e humanizar a relação entre o agente fiscalizador e o cidadão. Criar o papel de auditor de trânsito, que existe em algumas cidades do mundo.
Não é possível que toda vez que coloco o nariz na rua seja capaz de ver verdadeiras atrocidades cometidas por motoristas, motociclistas, ciclistas e pedestres e só eu esteja vendo! Ninguém vê que os semáforos perderam qualquer função e que motoristas e motociclistas passam no farol vermelho com a maior naturalidade?
Será realmente verdade que depois do escurecer motoristas tirem rachas nas avenidas, são flagrados por câmeras de vigilância, são vistos por moradores e dezenas de testemunhas menos por um agente de trânsito?
Quando foi a última vez que você, leitor, viu um agente do CET às duas horas da madrugada? Claro, que aparecem na região dos Jardins e Vila Madalena para multar os carros estacionados irregularmente, mas onde estão quando um carro importado, blindado, passa a 160 km/h por uma avenida?
O trânsito nas grandes cidades caminha para o caos generalizado, como aquela sala de aula sem a professora e qualquer tentativa de recuperar a organização parece tão inócua quanto a entrada da professora substituta na classe. Fala verdade, quem parava de fazer bagunça diante da professorinha substituta? uma jovem e inocente estagiária jogada na jaula dos leõzinhos!
A auto-regulamentação
Não gosto de comparar com outros países, mas uma das reações mais comuns em alguns países europeus e nos Estados Unidos é a auto-regulamentação em vários setores. Nos EUA chega a ser até uma invasão quando um vizinho reclama que o outro não corta a grama e deixa a rua parecendo uma "selva"!
No trânsito é comum os motoristas chamarem atenção se alguém para em local proibido, se invade a faixa de pedestre, se desrespeita um sinal de trânsito etc. E a reação do motorista infrator é de vergonha e não de raiva.
Aqui no Brasil os motoristas (e motociclistas, ciclistas e pedestres) atingiram um nível tão bizarro de desrespeito que recentemente um ciclista filmou um carro parado em cima da ciclo-faixa e foi ameaçado de agressão pelo motorista infrator! Aqui a auto-regulamentação não funciona porque a ausência de autoridade por tanto tempo criou a sensação de que todo mundo pode fazer o que quer sem dar satisfação a ninguém, nem aos outros cidadãos ao lado.
Só para encerrar. Cansado de todo dia encontrar um "presente" de cachorro na porta da minha casa, decidi fazer uma faixa com uma simples mensagem: "por educação, recolha as fezes do seu cão". Simples e direta. Funcionou por um bom tempo, até que a faixa ficou gasta, decidi tirar (acreditando no efeito educador) e, adivinha: voltaram os presentes!
Uma comunidade que deixa o cocô do cachorro na porta da casa do vizinho está simplesmente dizendo: "pra mim você vale menos do que essa porcaria que deixei na sua porta".
Sociedade assim só funciona com a professora o tempo todo na sala de aula... e armada!
(Multar é fácil, difícil é ensinar! Foto: André Duek/Facebook)
Chega de tratar os crimes de trânsito como se fossem menos grave
Um sujeito visivelmente apressado entra em um cinema, saca uma arma e disparar a esmo. Instala-se o tumulto, correria, gritaria e o saldo são algumas pessoas baleadas e outras mortas.
Do outro lado da cidade um sujeito visivelmente apressado, dentro de um automóvel, ignora os avisos visuais de PARE colocados em uma placa e pintado no asfalto e atinge outro carro na altura da porta. O motorista atingido bate violentamente a cabeça na coluna da porta, sofre traumatismo crânio encefálico, entra em choque, parada respiratória e morre.
Qual a diferença entre os dois crimes? Para a Justiça, o primeiro foi um crime chamado de doloso, quando há intenção de matar. Já no acidente de trânsito, será considerado culposo, quando não há a intenção de matar. Será? No meu ponto de vista de cidadão, ambos os crimes foram cometidos com a intenção de ferir alguém.
O automóvel existe em escala industrial há mais de 100 anos. É o veículo que faz parte da civilização moderna a ponto de ser objeto de desejo praticamente desde o nascimento.
As leis de trânsito também são seculares. Umas mais antigas que outras, mas é fato que não existe um motorista letrado que desconheça os sinais básicos de trânsito. Até porque a maioria é simplesmente uma palavra na língua nativa, como a referida placa de PARE. Se, teoricamente, os analfabetos não podem dirigir, supõe-se que uma placa com um aviso de apenas quatro letras seria totalmente compreensível por 100% das pessoas habilitadas.
Portanto, não deveria haver um juiz de direito neste país que desse a sentença de "culposo" para quem ignora todos os sinais de trânsito e causa um acidente fatal, que na verdade não deveria ser qualificado como "acidente", mas crime.
Quem ignora os sinais de trânsito intencionalmente sabe que pode provocar um acidente e que alguém pode se ferir gravemente e até morrer. Da mesma forma que disparar tiros dentro de um cinema. O mesmo serve para quem bebe e sai dirigindo sem noção de distância, equilíbrio, foco e precisão.
A legislação de trânsito brasileira vive uma crise de personalidade. Mostra-se severa com atitudes leves, mas condescendente com as ações realmente graves. Não dá mais para tolerar o avanço de um sinal fechado como "acidente", porque é um crime. No qual o transgressor é assumidamente responsável por todo ferimento decorrente do ato. Inclusive dos próprios ferimentos.
Todos os dias eu vejo motoristas de carros, ônibus, caminhões, motociclistas e outros atores do trânsito cometendo todo tipo de infração. Que resultam em multas, eventualmente a apreensão da habilitação e até a exigência de comparecer a um cursinho de boas maneiras. Mas não vejo ninguém se apresentar diante de um Juiz para justificar o que levou a desrespeitar uma regra tão elementar.
Dá medo do futuro. Porque na tentativa desesperada de reduzir os acidentes as autoridades de trânsito (e todo séquito de especialistas) inventam regras ridículas, que geram multas, mas não são capazes de imputar de forma exemplar os verdadeiros criminosos do trânsito.
Independentemente do que propagam os órgãos de trânsito, as entidades de classes de motoristas, motociclistas, associações de fabricantes e de concessionárias, nenhuma ação para redução de acidente de trânsito terá o menor efeito enquanto vivermos o clima de terra sem lei. Enquanto a municipalidade enxergar o trânsito como fonte de arrecadação, que faz instalar um radar em uma grande avenida no período das 8:00 às 18:00 horas, mas retira à noite, quando acontecem os mais graves acidentes.
Eu nunca vi um guarda de trânsito depois das 18:00 horas que não estivesse preocupado apenas em multar quem estaciona em local proibido. Enquanto um carro é rebocado da frente de uma guia rebaixada 30 tiram racha nas avenidas da periferia.
O gerenciamento de trânsito é preguiçoso, não quer fiscalizar onde dá trabalho. Não quer diferenciar os grandes dos pequenos delitos. E o cara que ignora um sinal de PARE nunca será multado, porque tem um motociclista de viseira aberta que está ali, mais fácil de ser flagrado.
Enquanto quebramos a cabeça na busca por soluções que diminuam o sofrimento de quem se acidenta no trânsito, os legisladores passam a mão na cabeça de quem causa acidente.
Se mundo acabar num grande sinal de PARE só sobra o Brasil!
Todos os dias eu abro a porta de casa e dou de cara com cocô de cachorro na calçada. O bairro é residencial, de classe média-alta, zona sul de São Paulo. Cheio de casas acima de um milhão de reais e condomínios de luxo. Mas o cocô é a mais eficiente forma de nivelar qualquer sociedade, porque é sempre igual seja qual for o padrão.
Cansado de recolher essa porcaria decidi montar campana e ficar à espreita do cachorro sujão e consegui! Abri a porta e jamais esperava por tamanha surpresa. Imaginei de tudo, cachorro solto, esses “dogwalker” (nome afrescalhado de quem cobra pra levar os cachorros dos outros pra passear), criança, empregada doméstica, pensei em várias possibilidades, menos na real: uma dupla de pai e filho, cada um com seu cachorro, passeando e literalmente c**** e andando para o mundo.
Até pensei em chamar a atenção, levar um saco plástico de presente, fazer alguma coisa, mas os dois eram tão descaradamente brutamontes que pensei na possibilidade de ainda apanhar deles por querer que não sujassem minha calçada (sim, minha porque está no IPTU).
Essa cena explica muita coisa. Quando um pai dá este tipo de exemplo, ele está dizendo para o filho: “olha, meu filho, as outras pessoas são menos importantes para nós do que esse cocô de cachorro!”.
O que isso tem a ver com segurança de motociclista? Tudo! Hoje existe uma discussão interminável e inconclusiva sobre as atitudes que podem resultar na redução das vítimas de trânsito. Já se pensou de tudo: recrudescimento das leis de trânsito, aumento da fiscalização, alteração das vias etc. Mas pouco se faz no sentido de mudar o comportamento das pessoas.
Não é novidade e já publicamos várias vezes que a educação tem um papel fundamental e isto só o Estado não consegue perceber. Mas a educação como ferramenta de formação de motoristas e motociclistas mais bem preparados não é uma unanimidade. Hoje especialistas em educação de trânsito já derrubaram essa tese com a argumentação de que a escola fundamental mal consegue dar conta do currículo regular.
A grande esperança por uma mudança de comportamento estaria na família. Os pais deveriam ser os primeiros professores dos novos cidadãos. Especialistas apontam a cidade de Amsterdã, na Holanda, como o maior exemplo de educação de trânsito. Os pais dedicam horas a levar seus filhos em passeios de bicicleta, devidamente equipados e ensinando todos os detalhes como os limites de cada veículo, como funcionam os semáforos, as cores das faixas conforme o sentido de direção etc.
Aí deparamos com um pai que ensina ao filho que deixar sujeira de cachorro na calçada é o padrão certo de comportamento e recolher com saco plástico é para trouxas. Que tipo de convivência social podemos esperar dessa família?
O papel multiplicador da família ainda é o caminho mais reto e curto para a educação formal. Se estamos vivendo uma crise moral sem precedentes não podemos jogar a responsabilidade na escola, como querem os administradores de trânsito, mas na formação individual do caráter, papel estritamente do convívio familiar.
Moto, não!
Periodicamente são divulgadas estatísticas sobre acidentes envolvendo motociclistas. Uma delas mostra que nos últimos 15 anos aumentou em 800% o número de vítimas em motocicletas. Já vi todo tipo de manipulação de dados, mas este foi campeão! Aposto que em 1930 o aumento no número de acidentes de trânsito deve ter crescido em uma progressão geométrica muito maior! Afinal, foi em 1929 que os automóveis começaram a ser produzidos em escala industrial.
Já ouvimos todo tipo de bobagem envolvendo segurança de motociclista. Algumas preconceituosas e tendenciosas como a proibição de transportar passageiro e recentemente a idéia absurda de colar o número da placa da moto no capacete do motociclista. Em todo o Brasil a preocupação (atrasada) com estas vítimas tem resultado em medidas das mais absurdas – como simplesmente fazer de conta que não existe – até sugestões como a proibição de circulação das motos entre os carros.
Como a administração pública precisa correr atrás da cura para uma doença que ela mesma deixou se espalhar, o sonho de cada prefeito seria pura e simplesmente proibir a venda e circulação de motos. Imagine a felicidade que um prefeito, vereador ou deputado teria em anunciar que foi o responsável pelo fim dos acidentes envolvendo motociclistas.
O trânsito é uma competência municipal, baseado no Código Brasileiro de Trânsito. Prefeituras têm poder de criar ou vetar leis que regulamentam o trânsito de forma a garantir a segurança dos seus cidadãos ou aumentar a arrecadação. A grande imprensa já mostrou várias reportagens denunciando a indústria da multa. Já gravaram conversas entre as empresas fornecedoras dos radares com prefeitos e secretários nas quais eram revelados os dados estatísticos que garantiam o aumento na arrecadação em mais de 30% da noite pro dia.
Hoje temos uma situação bem clara de busca de arrecadação por meio das multas. Dinheiro que tem livre aplicação e pode servir até mesmo para sustentar campanhas políticas, já que em mais uma distorção típica do Brasil o trânsito é uma atribuição administrada por políticos. Diretores de detrans e ciretrans são nomeados por políticos e isso já exclui qualquer possibilidade de uma administração honesta e competente.
Veja, por exemplo, as enormes dificuldades que um cidadão comum tem para transferir um documento. Tudo para evitar fraudes, embora a cada ano cresça o número de veículos roubados.
Portanto estamos diante de uma realidade de difícil gerenciamento. De um lado temos os dados de acidentes envolvendo motociclistas. Do outro lado temos a incapacidade de gerenciamento do trânsito por ser uma atribuição política e não técnica. Junto a isso tudo temos pessoas com comportamento cada vez menos social e mais individual, tratando o bem público como privada. E a pressão da União pela redução das vítimas que oneram o sistema de saúde pública.
Você acredita mesmo que tem solução? Aquela idéia estapafúrdia de proibir a produção, venda e circulação de motos começa a não ser tão absurda assim! Aposto que este é o sonho do ministro da Saúde e de muito prefeito!
(Indy Muñoz e Vanessa Daya)
Sempre fui meio refratário a escrever sobre mulheres motociclistas porque enaltecer este tipo de atividade funciona para alimentar ainda mais certos preconceitos. Pilotar moto nunca foi exclusivo da condição masculina, minha mãe era motociclista nos anos 40, assim como minhas tias e tios e isso não fez delas melhor nem pior que suas colegas.
Não gosto de desenvolver essa tipo de pauta “mulher-que-faz-coisas-de-homem”, porque como pai de duas mulheres, não acredito nem nunca acreditei que mulher não possa fazer as atividades consideradas “masculinas”. E esse tipo de artigo serve para estimular atitudes como “puxa, ela é fera mesmo, joga futebol como um homem”! Com certeza seria capaz de encontrar centenas de mulheres que jogam futebol muito melhor que eu! E com moto não é diferente.
Vanessa Daya: Não sei porque você se foi... Leia os comentários no final desse artigo
Felizmente os tempos mudaram, passamos por grandes transformações no comportamento social e hoje as mulheres já representam cerca de 50% das compras de motos em algumas cidades. Esse número pode ser maior, porque ainda são comuns homens comprando motos para esposas ou filhas.
E não é só nas ruas! Atualmente é comum a presença de mulheres competindo em motovelocidade, MotoCross, enduro, free-style etc. E no mesmo nível de competitividade que os homens, porque à exceção das atividades fora-de-estrada, nas demais não há necessidade de maior força muscular nem resistência física.
(Mulher no guidão, tudo de bão!)
Já faz alguns anos que recebo constantes inscrições de alunas em meu curso de pilotagem SpeedMaster e observei que até o tipo de moto mudou. Antes as mulheres escolhiam motos custom, scooters ou trail. Hoje vejo uma quantidade muito grande de mulheres pilotando motos esportivas de 250, 600 e até 1.000cc com a maior desenvoltura do mundo. Já surgiram até grupos de motociclistas exclusivamente feminino (mas que aceita nós, estranhos de sexo masculino) que se reúnem para competir ou simplesmente viajar.
Do ponto de vista estritamente técnico não existe nada que possa diferenciar homens e mulheres no que diz respeito à pilotagem de moto. Alguns especialistas em comportamento apontam até uma vantagem das mulheres. Por serem capazes de separar os comandos dos dois hemisférios do cérebro, a mulher – teoricamente – teria condições de, por exemplo, conversar sem perder a orientação do caminho, coisa que eu me atrapalho até sem falar nada. A bem da verdade, sabemos que as mulheres são capazes de falar e fazer qualquer coisa ao mesmo tempo.
Chega até a ser charmoso (e fetichista) encontrar mulheres vestindo macacões de couro, pilotando motos esportivas de 120 a 200 cavalos. E como as motos são praticamente monopostos, não tem nem como levar o namorado na garupa.
O mercado já percebeu esse crescimento do público feminino sobre duas rodas e começou a oferecer linhas de equipamentos especialmente for ladies. É evidente que a anatomia de homens e mulheres é diferente. Por isso capacetes, luvas, botas e conjuntos de couro e poliéster são feitos já prevendo o uso por mulheres. Podemos encontrar capacetes em cores exclusivas, jaquetas com caimento respeitando a cintura mais fina e numeração especial.
E não é diferente com as motos! No segmento de scooters e motonetas é comum os fabricantes oferecerem uma versão especial para público feminino com cores e acabamento especiais. Difícil é vender depois...
Outro dado interessante deste público é que estão cada vez mais bem informado. Com a facilidade da Internet, as mulheres pesquisam muito antes de comprar, desde equipamentos até a moto. E também se preocupam mais com a segurança do que os homens. Talvez até por vaidade é mais comum ver mulheres de luvas, botas e capacete fechado.
Só espero que as motociclistas não comecem a adotar o comportamento masculino no trânsito. Pela própria natureza, as mulheres costumam ser mais cuidadosas e gentis, mas já é possível encontrar mulheres motociclistas adotando o modelo masculino truculento de pilotagem e até violento. Vamos torcer para que as mulheres, motociclistas ou não, continuem sendo mulheres!
Vem aí novas regras
Em recente fórum internacional sobre trânsito foram apresentadas algumas propostas para aumentar a segurança dos motociclistas. Voltou à pauta a velha questão das motos circulando nos corredores entre os carros e 20 Estados apresentaram proposta de proibir o tráfego de motos nestes espaços. Porém com uma ressalva: que as motos possam circular quando o trânsito estiver parado. Uma decisão tacanha, porque em alguns horários em São Paulo os carros circulam a uma velocidade abaixo de 5 km/h, ou seja: quase parado. Como fiscalizar isso?
Além disso, pelas estatísticas oficiais a maioria absoluta dos acidentes envolvendo motos acontecem nos cruzamentos e não nos corredores. E mais, estudos mostram que uma moto colocada atrás do carro representa mais risco ao motociclista em caso de abalroamento.
No corredor é mais seguro, porque motoristas se distraem!
Mas continuam deixando fora da fiscalização as películas escuras dos carros e o uso de telefone celular por motoristas!
A boa notícia é que foi apresentada proposta para melhorar a formação dos motociclistas. Agora as moto-escolas deverão fazer aulas em vias públicas e não apenas em local fechado e espremido. Finalmente acordaram que um dos problemas enfrentados pelos novos motociclistas é o baixíssimo nível de instrução na formação básica.
Pelo menos é um passo, porque vivemos uma condição totalmente inversa do resto do mundo. O Estado não dá formação, não fiscaliza, mas cobra um comportamento exemplar e se não obedecer... multa!
Motorista "profissional" estaciona o caminhão em local proibido: contra este tipo de cidadão não adianta multar, precisa mandar de volta pra escola!
Um desafio: reduzir 50% em 10 anos*
Tentar achar um responsável pela carnificina que ocorre todos os dias no trânsito é fácil. Todo mundo tem sempre um culpado na ponta da língua: é o Estado, as vias mal conservadas, idade avançada da frota, falta de preparo dos instrutores, corrupção na emissão de carteiras de motoristas etc etc...
Só que desde março deste ano acabou o prazo para encontrar culpados. A meta, agora, é encontrar soluções. E não se trata de uma decisão aqui, interna. A ordem veio de cima. Bem de cima. Lá na ONU – Organização das Nações Unidas – por meio da OMS – Organização Mundial da Saúde. Em março de 2011 foi lançada a campanha em caráter mundial pela redução em 50% nas vítimas fatais de trânsito em todo o mundo na década que se encerra em 2020. Contra essa estatística pesa uma outra ainda maior: o crescimento das economias emergentes colocarão mais veículos motorizados nas ruas. Como equacionar com sucesso o aumento no número de veículos com a redução de acidentes?
Os números são assustadores: hoje 3.500 pessoas morrem por dia no trânsito em todo o mundo. Uma tragédia. Não precisa ser muito genial para saber que quanto menos desenvolvido o país, maior o número de acidentes. Então já se tem aí um dado para começar: instrução reduz o número de vítimas. Ou, se preferir uma visão mais otimista, quanto mais educada é uma sociedade, melhores são os motoristas (e entenda-se por “motorista” todo condutor de veículo motorizado, incluindo motociclistas).
Com base nessa aparente óbvia constatação veio a mais elementar das conclusões: para reduzir o número de acidentes é vital melhorar a qualidade dos motoristas, seja por meio de melhores instrutores, seja na educação de base. Em suma, toda a sociedade terá de se empenhar para melhorar os motoristas não apenas na formação técnica, mas como cidadão! Aqui começa o maior e mais importante trabalho dessa ação.
E aí a OMS bateu na velha e conhecida tecla da EDUCAÇÃO. Não apenas na educação formal, mas na educação cidadã. A ONU está de olho não mais neste motorista que já está nas ruas, mas naqueles que serão formados nos próximos 10 anos. O motorista que completar 18 anos em 2020, hoje está com oito anos. É neste pequeno ser que estão projetadas as esperanças pela redução nas vítimas de trânsito.
Finalmente está sendo colocada em prática no mundo uma iniciativa que visa ir além das convencionais endurecidas nas leis de trânsito. O objetivo agora é melhorar a qualidade do ser humano. Formar pessoas melhores para que possam melhorar o mundo todo.
E no Brasil?
Aqui o desafio não é educar futuros motoristas, ciclistas e pedestres. O grande desafio da administração pública brasileira é simplesmente educar! Quando se fala em investimento na educação é sempre a mesma cantilena de falta de verba, de salários humilhantes aos professores e das dificuldades de um país de dimensão continental. Mas se a idéia é organizar um evento mundial de futebol ou atletismo milagrosamente este dinheiro que não existia cai do céu.
Em palavras mais simples e menos educada, o que falta mesmo é INTERESSE!
Se não há interesse em pura e simplesmente dar educação básica, quem dirá educação social? Se mal conseguimos levar ensino básico às nossas crianças, como esperar que ainda possamos ensinar regras de cidadania? No meu tempo de escola havia uma disciplina chamada Educação Moral e Cívica. Apesar de o título flertar com o regime militar da época, era uma forma de mostrar aos pequenos alunos um pouco de noção de cidadania. A matéria desapareceu do currículo. Talvez fosse o momento de voltar, não mais como forma de manipulação política, mas de formação de caráter mesmo.
Os principais especialistas em segurança são unânimes na relação acidente x economia. Cerca de 80% das vítimas de trânsito estão nos países em desenvolvimento e revelam uma face cruel, porque são justamente os países que recebem menos investimentos em saúde. Mais do que isso, os números revelam que crescem os óbitos em três categorias de agentes do trânsito: pedestre, ciclista e motociclista. Mais ainda, que são quase totalmente de homens na faixa de 18 a 25 anos.
Aqui no Brasil, tanto nas cidades grandes quanto nas pequenas, os acidentes envolvendo motociclistas está causando um caos na saúde. Parte pela ocupação de leitos nos hospitais, tirando a vaga dos atendimentos médicos de outras naturezas, parte pela dificuldade em reabilitar os pacientes com seqüelas, muitas vezes permanentes. A ponto de a produção de próteses não dar conta da demanda. Hoje está difícil internar um paciente com apendicite porque os hospitais estão cheios de motociclistas!
Em São Paulo, o número de acidentes é alto, mas proporcionalmente, em relação à quantidade de motos, é muito menor do que nas cidades do centro-oeste e nordeste. O problema em São Paulo está no número absoluto, que é gigantesco. Mas, pasmem paulistanos, o trânsito em São Paulo é muito menos violento do que em muitas outras cidades. Já nas pequenas cidades o problema reside na absoluta falta de informação e formação. Aliado a questões regionais, como algumas pequenas cidades nas quais é simplesmente proibido usar capacete. Isso mesmo! Tem cidade no Brasil onde é proibido usar capacete por causa do uso de motos por pistoleiros de aluguel.
Como a secretaria de Segurança não consegue acabar com essa categoria de “profissional”, achou-se por bem proibir os motociclistas de esconderem o rosto. Como já foi em La Paz, na Bolívia, 25 anos atrás!
A campanha da ONU e OMS é louvável porque conclama todas as áreas da administração pública. Das secretarias de Saúde aos ministérios de Transporte, de Prefeituras às secretarias de Educação e de Segurança Pública. E para incentivar a participação destas entidades, existe uma premiação de caráter mais política do que social. Uma vaga permanente no conselho mundial da saúde da ONU, cargo de grande potencial de exposição política. Graças a esse “prêmio”, muitas prefeituras e secretarias que hoje se mostram omissas terão de mostrar serviço, pois a cobrança, mais do que nunca, será federal. E no ano que vem teremos eleições... municipais!
O maior medo nesse momento de “buscar resultados” é imaginar o que pode vir na garupa das ações cheias de boas intenções. Como os números são mais fortes do que qualquer análise qualitativa, uma prefeitura despreparada pode querer reduzir os acidentes por meio de canetadas das mais malucas possíveis. Corre-se o risco de decisões arbitrárias como proibição de circulação de motos em corredores de carros, limitação de acesso das motos às rodovias por tamanho de motor, ou proibição de levar garupa. Todas essas idéias já passaram pela câmara de vereadores de São Paulo e podem facilmente voltar.
Como especialista arrisco a dizer que será uma missão tão difícil que precisará da adesão de cada pessoa, do pedestre ao motorista; do policial aos professores. E aqui vejo que o pequeno trabalho de cada um fará a diferença. Não dá mais para admitir o motorista que pára em fila dupla “só por um minutinho”; motoristas que levam crianças soltas dentro dos carros; pedestre que atravessa por baixo de uma passarela construída para salvar a vida dele; motociclista que insiste em rodar em alta velocidade nos corredores e até atos de simples educação formal como um motorista de ônibus escolar que buzina na porta das casas para chamar as crianças. Ele é o exemplo que balizará a educação dos seus passageirinhos.
Sem mudar a atitude como ser humano, ninguém conseguirá formar uma nova geração de motoristas. Um exemplo bem simples: não adianta um pai passar horas explicando aos filhos que não é legal dirigir depois de beber se ele mesmo toma uma caipirinha no restaurante com a família e depois sai dirigindo! Quando a mãe pára o carro sobre a faixa de pedestre a criança absorve isso como normal, como o padrão.
No campo da administração meu maior medo são as resoluções na base da “canetada”. A forma mais simples de resolver problemas de trânsito é por meio de todo o tipo de proibição, seguida de multas pesadas. Nenhuma forma de educação na base da punição produz o efeito desejado. Não se educa por castigo, mas por informação. No lugar da multa, educação. Mas como convencer as autoridades a mudar de estratégia? É melhor não esperar nada em caráter “oficial”, mas pensar no individual.
Cada agente do trânsito tem seu papel nessa verdadeira guerra que está dizimando jovens em todo o mundo. Se você tem filho, evite beber e dirigir em seguida, pois pode não saber, mas nenhum discurso é mais tocante para uma criança do que a imagem dos pais. Um pai pode gastar horas educando um filho e colocar tudo a perder em apenas uma ação. Se você usa moto não precisa correr, porque nos locais congestionados as motos são três vezes mais rápidas que um carro sem passar de 60 km/h. Seja você um exemplo a ser seguido e admirado.
* Este artigo foi escrito em 2011 e, para minha surpresa, a maioria dos meus apontamentos foi referendado por especialistas no Workshop Abraciclo de Segurança no Trânsito
Para quem quiser conhecer um pouco mais dessa campanha mundial pela redução de vítimas, recomendo ver estes dois filmes no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=jx_CtZb9lwI
http://www.youtube.com/watch?v=Yt8ILl7c9zo
(Se tiver com o documento em ordem este carro fumacento pode rodar)
Eu tenho um sonho
O pastor e ativista político americano Martin Luther King Jr era um poeta. Suas frases e discursos são até hoje repetidas e usadas como referência em várias situações. O mais famoso de seus discursos começava dizendo “Eu tenho um sonho” e prosseguia relatando como seria o ideal de um país sem a perseguição racial que os Estados Unidos promoviam nos anos 50.
Pois eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que minha cidade será administrada por pessoas que pensam no interesse maior da coletividade e não no poder. Pessoas contratadas pela competência técnica e não por um concurso que mede a capacidade de decorar a tabela periódica e os afluentes do rio Amazonas. Sonho com o enxugamento na administração pública e contratação de profissionais efetivamente competentes e não parasitas que vêem no emprego público uma forma de trabalhar pouco e sempre.
Sonho com a transparência da administração pública e a extinção eterna da corrupção. Com a certeza de que cada centavo compulsivamente doado à administração sob os eufemismos de imposto, taxa, contribuição compulsória etc chegue efetivamente à população.
Mas acima de tudo, sonho com o dia que o gerenciamento do trânsito seja feito por pessoas especialistas, juristas, gerenciadores com a mais rara qualidade humana: a sensatez. Neste país ao contrário uma folha de papel, ou a falta dela, tem mais peso do que qualquer item de segurança do veículo. Se um motorista, ou motociclista, distraído ou esquecido mesmo, deixar de pagar uma taxa pode ter o veículo apreendido, guinchado e retido em um pátio, mesmo em perfeitas condições de uso, com todos os itens de segurança e impecável. Enquanto um carro, ou moto, com documentação em ordem, mas caindo aos pedaços pode rodar livremente. A arrecadação tem mais importância para o Estado do que a segurança do cidadão.
Só para não ficar nos exemplos brasileiros (que já sabemos ser ao revés do mundo), pesquisando outros países constatei que nos Estados Unidos, se o cidadão esqueceu de pagar alguma taxa e o policial o flagrar, pode pagar diretamente ao oficial, que no carro tem uma dessas máquinas portáteis que transmitem dados por telefonia celular, igual à de qualquer botequim. Eu mesmo fui multado, em 1999, e paguei a multa pelo cartão de crédito diretamente ao policial (ultrapassei em faixa contínua).
Na Inglaterra, se o cidadão for pego com a documentação irregular, tem três dias de prazo para se apresentar diante de um delegado de trânsito com os papéis em ordem. E ai do sujeito se não aparecer. Em nenhum destes países o veículo é retido, porque nestes lugares esquisitos o Estado entende que a propriedade do veículo não pode ser questionada ou retirada se estiver pago! No Brasil o direito à propriedade está garantida pela Constituição, desde que as taxas da propriedade estejam em dia! A propriedade é tua, mas o direito ao uso é pode ser confiscado pelo Estado.
Ah, mas ao adquirir a propriedade, por um valor muito acima ao do mercado mundial, é sempre justificado pelo comércio como resultado do excesso de tributação. Cerca de 35% do preço dos carros, motos e caminhões já são resultado de impostos em cascatas. Mesmo assim se não pagar as taxas anuais o cidadão perde o direito de usar o veículo. É a farra do poder público sobre o direito à propriedade. Concordo que os veículos com mais de cinco anos de uso sejam fiscalizados, mas em carros semi-novos, com menos de 10.000 km rodados esta fiscalização de emissões de poluentes tem o desagradável e poluído cheiro de propina oficial, tipo: “passa cinquentinha aqui que eu libero seu carro zero quilômetro pra rodar pela cidade”. Durma-se com uma esculhambação dessas!
Outro sonho é ver juristas, especialistas em direitos civis, questionarem se esse DPVAT é legal. Na minha ingenuidade política e fiscal acho que deveria ser atrelado à pessoa física e não a um bem inanimado. Veículos não saem sozinhos por aí, precisam ser dirigidos e quem dirige que é responsável pelos acidentes. Portanto, nada mais natural que o seguro obrigatório fosse atrelado a um CPF ou prontuário de CNH. Veja a situação de quem tem mais de um veículo, por exemplo, ninguém dirige dois carros ao mesmo tempo. Qual o sentido de um veículo parado ser submetido ao pagamento de seguro compulsório? Ele pode sair sozinho e atropelar alguém?
Parece que tudo no Brasil é feito para tirar o máximo possível de dinheiro do contribuinte. Se alguém tem um carro, uma moto e um scooter, por exemplo, precisa pagar seguro obrigatório de três veículos, mas só usa um de cada vez. Não tem o menor sentido! É o mesmo princípio do sistema Sem Parar dos pedágios já questionado antes. Não faz sentido ser fixado a um número de placa, mas deve ser direito de um motorista! Mas o Estado precisa garantir o retorno do investimento feito pelas empresas privadas que administram os pedágios. Uma pessoa paga três taxas de administração para ter direito aos transponder, mesmo que só use um carro de cada vez. E mesmo que usasse dois, ambos pagariam o pedágio do mesmo jeito!
(Mas se este carro zero km estiver sem o licenciamento ou sem a inspeção veicular será recolhido ao pátio...)
Recentemente uma estudante de jornalismo gaúcha provou (ou tentou provar) que a cobrança de pedágio é ilegal por se constituir bitributação. Como no preço da gasolina já está incluído o imposto destinado ao DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte, que cuida da conservação de estradas), o pedágio seria uma cobrança ilegal. Todo mundo sabe, mas parece que esquece ou prefere não lembrar, mas o IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotor) é um bonito nome para um velho imposto: a TRU, Taxa Rodoviária Única, lembra disso? A TRU não foi extinta, ela mudou o nome para IPVA! Ou seja, se o IPVA é a ex-TRU rebatizada, então já é uma taxa rodoviária e não poderia existir o pedágio! Para oficializar o escandaloso caso de bitributação, com a volta do pedágio, mudaram o nome do imposto, simples! Portanto, a estudante de jornalismo pode argumentar que se trata de uma tri-tributação! É pouco, para um país que é penta!
O Brasil está sendo doado às empresas privadas. DPVAT e rodovias são administradas por empresas privadas. Se a verba que a União deixou de investir na conservação das estradas fosse usada para saúde pública, ensino, segurança, vá lá, seria aceitável esta “privatização” das rodovias. Mas a verba que o Estado deixou de usar nas estradas caiu neste sumidouro de dinheiro chamado erário e sabe-se lá onde foi parar!
A inspeção veicular também é gerenciada por uma morosa e descaradamente despreparada empresa privada chamada Controlar que nem sequer dispõe de um telefone 0800 para atender seus “clientes”. Mesmo que o cidadão pague a taxa obrigatória, em dinheiro, à vista, no site da empresa, a liberação para fazer a inspeção demora três dias úteis. Se o veículo estiver apreendido são mais três dias pagando a taxa de “hospedagem”. Ah sim, o seu veículo zero quilômetro apreendido por falta do pagamento de uma taxa de R$ 53,00 será rebocado em um guincho de uma empresa privada, ficará no pátio de uma empresa privada e os preços são totalmente fora da realidade. Da nossa realidade, claro.
Eu sonho com o dia em que a palavra do cidadão tiver mais peso do que o reconhecimento da assinatura por um sujeito que nunca te viu na vida. Sonho com o fim desta instituição anacrônica, resquício da monarquia, chamada cartório. Se nunca mais soubéssemos de um caso de falsificação de documento eu seria o primeiro a sair nas ruas empunhando a bandeira pró-cartório. Mas este monumento à burocracia continua emperrando nossas vidas e os carros roubados continuam sendo esquentados, os terrenos continuam sendo grilados e contratos são falsificados diariamente.
Mas eu sonho mesmo com o dia que o Brasil voltará a ser um país normal e o peso do Estado deixará de ser um pesadelo na nossa vida!
Tá difícil? Vai a pé!
Qual a sua cota?
Nesta discussão sobre mobilidade urbana leio e ouço muito falatório, mas vejo pouca gente realmente dando alguma contribuição válida. Por isso achei fantástico encontrar um velho amigo fotógrafo que disse ter trocado o carro e a moto pelo ônibus. Isso mesmo, ele transporta cerca de R$ 5.000 em equipamento fotográfico dentro de uma mochila e pega ônibus em SP. Claro que não vou contar quem é, mas a atitude dele é louvável e ainda explicou que usa uma mochila bem velha, remendada, para não despertar interesse dos trombadinhas.
Ele também revelou que evita horários e linhas congestionadas e não é todo dia que recorre à dupla metrô/ônibus. Quando coincide de ser um horário sossegado e regiões menos tumultuadas vai de coletivo. Se tiver urgência, vai de scooter e quando precisa transportar muito equipamento vai de carro.
Já faz tempo que nós, fotógrafos da era analógica, descobrimos que as câmaras compactas resolvem grande parte das necessidades de qualquer repórter fotográfico. Em muitos casos o fotógrafo leva um caríssima e sofisticada câmara só para impressionar o cliente. E funciona! Mas hoje em dia os equipamentos compactos têm a vantagem de não dar bandeira e é perfeitamente possível fazer um bom trabalho levando pouco equipamento.
Decidi experimentar essa tática do meu velho amigo: fui de ônibus!
Havia tanto tempo que eu não pegava um ônibus que entrei pela porta errada. Depois, ao perceber o erro, usei uma estratégia que adotava quando fazia alguma burrada muito grande no exterior: dei uma de estrangeiro, joguei um monte de moedas na mão do cobrador e voltei para o lugar certo.
Ainda falta um pouco de organização nos transportes coletivos. O metrô é uma beleza e qualquer estrangeiro se locomove facilmente, mas os ônibus em SP são muito bagunçados e faltam informações sobre itinerários. Um turista estrangeiro terá muita dor de cabeça para se locomover aqui e outras grandes cidades, menos Curitiba, onde tudo funciona.
Mas não é de transporte público que quero escrever e sim de atitudes. Nós estamos vivendo a era do grande desafio da mobilidade urbana. Além das dificuldades naturais do excesso de veículos, temos de conviver com os problemas agregados como poluição do ar e queda na qualidade de vida em geral.
Primeiro é preciso entender que o Brasil entrou numa parábola crescente de desenvolvimento econômico que vai continuar por mérito ou inércia ainda por muitos anos. E que a conseqüência deste crescimento é o acesso a um dos bens de consumo mais festejados do brasileiro que é o automóvel. E mais recentemente, a moto.
Além disso, desde os anos 50 o Estado brasileiro apoiou sua economia na chegada das grandes fábricas, sobretudo de automóveis, caminhões e seus derivados. Pode parecer uma teoria da conspiração, mas aposto meus rins como a deficiência do transporte público, o esquecimento das opções de transporte ferroviário e hidroviário e a falta de investimento na malha viária tem muito a ver com a nossa dependência financeira das montadoras.
Imagino o seguinte diálogo entre executivos de grandes multinacionais do setor e o Estado brasileiro: “OK, nós montamos fábricas no seu país, investiremos centenas de milhões de dólares por muitos anos, mas queremos garantias de que vamos vender bastante!”. Entre as “garantias” está este insano e inexplicável modal de transporte de carga sobre rodas (e pneus). Um país com a geografia do Brasil não utiliza trem nem navios! Até a Áustria, encravada nos Alpes, transporta carga e pessoas por trem!
Depois de 60 anos dependentes da indústria automobilística, sobretudo nos últimos 15 anos com a chegadas de novos fabricantes e importadores, como vamos convencer o Estado a oferecer meios de locomoção que substituam os carros, motos e caminhões? Não dá!
Por isso chegou a hora da atitude. Fazer aquele trabalho do beija-flor que tenta apagar o incêndio na floresta sozinho. Quando uma coruja viu aquilo e indagou se ele realmente acredita ser capaz de apagar o fogaréu, ele simplesmente respondeu: “não, mas estou fazendo a minha parte”.
Fazer a sua parte significa buscar alternativas para amenizar o caos na mobilidade urbana. E neste trabalho as empresas precisam acordar para ao anacronismo que representa contratar alguém para trabalhar oito horas por dia diante de um computador, algo que este empregado poderia fazer dentro de casa, com metas, organização e sem tirá-lo do lugar.
Ou então a crueldade que significa impor quatro horas por dia de deslocamento em transportes coletivos, sendo que o gerente de recursos humanos da empresa poderia dar prioridade a quem mora perto do endereço da empresa. Os profissionais de RH olham todas as qualificações, mas esquecem de verificar o endereço. No século 21 é sensato que as empresas adotem uma política distrital de recursos humanos. Olhem em volta, visitem as faculdades e pensem em deslocar as pessoas o mínimo possível.
Tem muita empresa de grande porte que faz propaganda se proclamando “responsável ambientalmente”, mas considera como ambiente só aquele espaço abstrato de floresta onde vivem araras azuis e jacarés. Minha rua também é meio ambiente. A avenida Paulista também é meio ambiente.
É como a família que tem um tremendo cuidado com o lixo reciclável, com formas sustentáveis de consumo, mas quando vira as costas a empregada doméstica passa a manhã toda varrendo a calçada com uma mangueira como se água fosse um bem menor! A dona da casa ensina até a reutilizar a água da máquina de lavar roupa e louça, mas ao sair a empregada joga tudo no ralo e abre a mangueira...
O exemplo do meu amigo fotógrafo é surpreendente por se tratar de um esforço semelhante ao do pequeno colibri. Se cada um fizer uma pequena parte, um pequeno esforço, tudo em volta melhora. E nem pense em esperar ajuda e incentivo da administração pública. Nesta luta do beija-flor contra o fogo na mata, o papel do Estado tem sido de incendiário!
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. O cocô, a política e o tr...
. Moto, substantivo feminin...