(A famosa cruz da CG 150: apenas uma peça de plástico)
Hoje, procurando um site de etimologia (estudo da origem das palavras) encontrei um velho texto de minha autoria. Na verdade queria lembrar a origem da palavra "entusiasmo" e descobri que as duas referências no Google em português são exatamente dois textos que eu escrevi muito tempo atrás. Um deles é este que segue abaixo, sobre um caso típico de histeria popular. Uma simples peça de plástico colocada dentro do farol da Honda CG 150 levou a um delírio coletivo que deve sempre ser lembrado para que não se repita e faça as pessoas pensarem antes de agir.
Na verdade é a resposta de uma carta de leitor, publicada originalmente no Motonline, quando eu respondia as cartas. Hoje seria impossível atender tantos leitores, mas naquela época eu fazia questão de ler todas e responder a maioria.
Aproveito para fazer uma reflexão sobre filosofia e religião, independentemente de qual seja a sua, ou mesmo nenhuma.
O mistério da cruz da CG
Vou começar pelo fim: eu sou muito mais religioso do que vocês imaginam. Mas como um intelectual que passou por cursos de filosofia e teologia devo fazer alguns esclarecimentos. Religião é muito mais do que acreditar ou venerar uma imagem. A religião é essencialmente iconográfica, ou seja, ela precisa de imagens e símbolos que representem aquilo que não se pode explicar de forma material. Esta é a maior diferença entre religião e ciência. O conhecimento científico se alicerça em experiências materiais.
Desde o período antes de Cristo já podemos observar imagens ligadas a deuses em várias culturas diferentes, inclusive as milenares incaicas, orientais, indígenas, nos quatro cantos do mundo. Cristo foi o último paradigma universal que dividiu a História em antes e depois de Cristo. A partir daí, a religião católica cristã se municiou de milhares de imagens para dar vazão à popularização da sua filosofia. Por isso uma Igreja Católica tem tantos adereços com imagens de santos, anjos, inferno, cruzes etc. Eu estive no Vaticano e fiquei impressionado com tanta imagem.
O que se estamos discutindo no caso dessa misteriosa peça da CG 150 é uma IMAGEM: uma cruz, que ora dizem invertida, ora dizem presa por fita. Eu não vi a peça, mas conheço suficientemente bem mecânica e eletrônica de moto – e já visitei a linha de montagem da CG mais de uma vez – para afirmar peremptoriamente que isso é um componente que tem como finalidade organizar os fios do chicote elétrico. Não é possível que alguém instale uma “macumba” em uma linha de montagem sem que os inspetores de qualidades percebam.
A Honda é uma empresa de origem japonesa, que tem uma tradição religiosa bem menos iconográfica do que as filosofias religiosas ocidentais. Portanto não faz o menor sentido acreditar que seja uma manifestação de caráter religioso, muito menos umbandístico, macumbístico ou satanístico.
Especialmente para o Alexandre, de São Paulo, devo afirmar que crer em Deus ou no Cristo que incorporou em um homem chamado Jesus é muito mais do que colar um adesivo escrito “Deus é fiel”, ou “100% Jesus” que, na minha concepção religiosa é tão desrespeitoso quanto chamar um boneco de resina de braços abertos, pregado em dois pedaços de madeira de “Magrão”. Não confunda crença religiosa com propaganda religiosa. Eu não preciso explodir a mim mesmo para acreditar em Allah. Não preciso explodir uma bomba na Irlanda para manifestar uma fé católica. Eu posso manter minhas crenças religiosas sem desprezar – ou ridicularizar – as outras. Um boneco de resina com os braços abertos pendurado em uma parede ou um adesivo colado no vidro do carro significam absolutamente nada para mim, porque na minha concepção religiosa Deus (ou qualquer outro nome que queira dar) não está na resina fundida e vendida aos milhares em camelôs, ou em mensagens nas camisetas de jogadores de futebol. Na minha filosofia de vida Deus está apenas e tão somente dentro de mim e não tem forma. Ou melhor, tem a MINHA forma. Afinal eu fui feito … imagem e semelhança Dele.
Eu acredito também no mal, mas não da forma maniqueísta que os filmes de Hollywood gostam de mostrar. Acredito na existência do mal dentro das pessoas. O mal está no cara que sai bêbado dirigindo e atropela um motociclista. O mal está no sujeito que corrompe o menor para se viciar e vender drogas. Está na sexualização de programas infantis. Está no político que se diz evangélico, mas que desvia verba destinada a melhorar a vida de gente miserável para se locupletar em festas particulares. O mal está em tão pequenos e despercebidos atos que passa até batido.
Só para encerrar, eu já expliquei aqui mesmo no Motonline o meu entusiasmo em escrever para vocês, mesmo sem receber nada (ou quase) materialmente por isso, em uma ação de caráter quase solidário. A origem da palavra solidário vem do latim e significa “dar de si” ou “dar si mesmo”. Já a origem da palavra entusiasmo é mais interessante. Vem do grego entheo siasmus, que significa “ter Deus dentro de mim”. Por isso eu me sinto muito entusiasmado quando vocês reconhecem esse trabalho solidário. E quer saber mais uma palavra curiosa? Humor vem de húmus, em latim, que significa fertilizante, porque acreditava-se que o humor era a matéria enriquecedora da criatividade humana. E é bom parar por aqui antes que vocês me chamem de pastor Tite.
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Outra curiosidade sobre a história da cruz. Depois de a Honda se ver obrigada a mudar o desenho da peça por conta do delírio coletivo, alguém descobriu (ou lembrou) que o pneu da Pirelli se chamava City Demon, traduzido de forma ignorante para "demônio da cidade". E foi a vez da Pirelli sofrer com a enxurrada da ignorância religiosa!
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