A vida pode mudar com apenas um diagnóstico. Foto: Tite.
Um retorno inesperado que mudou tudo.
Como você está hoje? Esta é a pergunta que mais ouço e leio das pessoas que seguem este blog. Para surpresa de todos eu até que estou relativamente bem. Ministrando aulas de pilotagem de moto para iniciantes, palestras em empresas, me virando do jeito que dá e a vida permite, com a saúde meio combalida pelo peso dos quase 65 anos, tentando embalar em um relacionamento amoroso.
Sobre esse último item uma curiosidade: depois de muito insistir, meu amigo Kabé me convenceu a entrar em um App de namoro, o tal Inner Circle. Já não gostei do nome porque tudo que tem círculo no meio é suspeito. Mas criei um perfil e foi patético. Primeiro porque, ingênuo, coloquei minha idade verdadeira, coisa que nenhum(a) over 60 faz. Todo mundo lá tem menos de 60 anos, não importa o tanto de rugas. E segundo porque minha timidez quase doentia me impediu de combinar qualquer encontro, apesar de ter recebido muitas curtidas.
Achei meio constrangedor o App, porque me senti como carne exposta no açougue, ou uma refeição no cardápio. Tipo, a pessoa entra no seu perfil e pede “hum, quero esse cochão duro e esse patinho”. Depois dá “like” e desaparece.
Além disso eu fui (e ainda sou, porque é um cargo vitalício) professor de Português. No primeiro erro grave já me desanima. E hoje em dia quase ninguém mais sabe conjugar verbos no infinitivo. É um tal de “faze”, “fica”, “encontra”, no lugar de fazer, ficar, encontrar. Torna-se até difícil entender se a pessoa está se referindo ao passado, presente ou futuro.
Depois de poucos dias cancelei meu perfil e voltei para minha vidinha calma e tranquila de solteiro, por enquanto... Mas aconteceu algo mágico, que vou deixar pra contar depois.
O retorno.
Durante 18 meses Maria e eu vivemos em casas separadas, mantendo um relacionamento cordial, amigável, mas com certo distanciamento. Nenhum “acerto de contas”, algumas poucas DRs, mas acompanhei a angústia dela não apenas pela quebra do pacto de união em casas separadas, como também pela chegada da menopausa com todo pacote incluído.
Continuamos saindo juntos com nossos amigos, ela ainda cozinhava pra mim, dividíamos a guarda dos nossos filhos caninos e a vida foi caminhando.
Neste período conheci mulheres muito interessantes, que até deram abertura para relacionamento, mas eu ainda vivia o pesadelo da disfunção erétil sem saber que poderia ser resolvida de maneira até mais simples do que imaginava.
Logo depois da cirurgia de remoção da próstata tentei tomar os remédios tradicionais mas tive taquicardia. E seguiu-se uma sucessão de erro e desinformação, causada sobretudo por um plano de saúde de merda, com médicos ridículos de tão ruins. Estou me referindo ao Intermédica, Notre Dame, ou seja lá qual nome que eles adotam, porque muda o tempo todo.
Muitos exames e consultas que chegaram a nenhuma conclusão se eu poderia, ou não, consumir os remédios para disfunção erétil. Segundo o urologista, sim. Segundo a cardiologista era melhor não.
Sem a segurança para transar continuei levando a vida de eunuco feliz e até conformado da minha condição, evitando mulheres interessantes, me agarrando ao skate como forma de liberar endorfina e adrenalina e seguindo minha jornada rumo à senilidade.
O skate sempre servindo como fuga para os reais problemas.
Até que algo totalmente fora do programa aconteceu. Em setembro de 2022 Maria veio com uma bomba:
– Não estou conseguindo me manter pagando aluguel, preciso voltar pra casa no fim do ano!
Fui pego de surpresa, meio assustado, porque não previa esse retorno. Ela foi clara na argumentação:
– Só por um tempo, até me acertar financeiramente. Mas vamos viver como colegas que dividem a casa, sem romance, sem amor, sem sexo!
Ops, já tínhamos vivido assim antes. Não foi uma experiência boa. Mas sou filho de uma mãe italiana, acolhedora, mantenedora, redentora e na hora não respondi nada. Só que ia pensar. Na verdade não pareceu um pedido, mas uma afirmação, tipo da que não oferece escolha.
Daquele momento até a possível mudança teria quase três meses para trabalhar essa volta na minha cabeça. Na minha, porque na dela já estava definido a ponto de avisar a imobiliária que desocuparia a casa no dia 31 de dezembro.
A época coincidiu com a produção do anuário AutoMotor do meu mais longevo trabalho como jornalista, ao lado de uma equipe super divertida, comandada pelo meu primeiro editor, Reginaldo Leme e sua filha-prodígio Daniela Leme.
Equipe que virou uma família: Reginaldo à frente, à esquerda, Miguel, eu, Ellen, Andrea, Bruno, Tiago, Daniela e Ed.
O trabalho de edição de texto, revisão, produção me manteve ocupado, mas sempre com a cabeça naquela novidade: Maria voltar para casa como uma room-mate. Durante dias seguidos fiquei matutando se seria uma boa ideia este retorno nestas condições de colega de casa. Ela se mantinha irredutível na postura de “apenas bons amigos que dividem as despesas”, mas eu começava aos poucos a alimentar uma possível volta à vida de casal. Mas, novamente, não tivemos muita chance para conversar seriamente sobre as consequências dessa volta.
E o tempo foi passando...
Silenciosamente, mais uma vez, vivi um dilema. Aceitar ou não esse retorno. Este era o momento certo para buscar ajuda terapêutica, porque certas decisões precisam de alguém isento para ajudar. Amigos e parentes são péssimos conselheiros. Porque não é a vida deles que pode desandar que nem uma maionese aguada.
Sem coragem pra dizer simplesmente “não quero”, pensei em criar uma suposta “namorada” para evitar o que imaginei ser um erro desde o começo. Com uma enorme dose de irresponsabilidade fui deixando o tempo passar sem tomar nenhuma atitude até que passei a alimentar seriamente a possibilidade de um novo começo.
E o tempo foi passando... Até chegar o dia 28 de dezembro de 2022.
A volta
O dia 28, era o nosso fechamento gráfico do anuário, que fazíamos dentro da própria gráfica Pancrom. Revisar mais de 300 páginas, textos, legendas, títulos, subtítulos, tabelas (muitas), fotos uma montanha de páginas acumuladas sobre uma mesa gigante, com vários colegas em volta. Pense num trabalho exaustivo.
Como sempre começamos pela manhã, sem previsão para ir embora, o que acontecia por volta de três da manhã do dia seguinte, depois de devorar muitas pizzas, batatas fritas, Big Macs, salgadinhos, litros de café e Coca-Cola.
Las embarazadas: Andrea, Dani e Ellen, tão inseparáveis que engravidaram juntas!
A parte boa desse trabalho é que a equipe se conhece há décadas, criando um laço verdadeiramente familiar. Só por curiosidade, três das mulheres da equipe engravidaram ao mesmo tempo – não do mesmo pai, felizmente!
Para manter o moral dessa turma, num trabalho verdadeiramente exaustivo temos uma receita infalível: o bom humor! Sim, por mais cansados, exauridos e esfomeados conseguimos manter o humor lá nas alturas. Especialmente neste fechamento eu estava atacado. Nem humorista profissional fez aquela turma rir tanto. Quando estávamos nos despedindo no estacionamento alguém comentou:
– Foi o fechamento mais engraçado da história!
E eu, sem preparar o terreno, sem avisar nada e sem falar nada, só soltei a notícia:
– Hoje a Maria voltou pra casa.
Montei na moto e saí pela Marginal Pinheiros vazia, morrendo de vontade de chegar em casa, porque enquanto eu estava na gráfica ela fez a mudança de volta ao nosso lar onde vivemos por 20 anos.
Quando abri a garagem de casa tinha muitos móveis espalhados, caixas de papelão, todo tipo de embrulho. Os cachorros acordaram e correram me receber. Fui até a suíte conferir se ela estava lá. Sim, estava no colchão ainda jogado no chão, sem cama. Deixei ela dormindo e fui pro meu quarto. Ao colocar a cabeça no travesseiro me deu um calorzinho no peito e me veio uma sentença:
– Eu vou reconquistar essa mulher!
(continua...)
Casamento na praia: se vacilar a onda leva!
A dura sentença da moleza
Por mais que o paciente seja orientado, explicado, esclarecido não há palavra que joga mais pressão no homem do que impotência. Não só sexual, mas de qualquer natureza. Uma das frases mais ouvidos por vítimas de assalto ou qualquer violência é sempre “a sensação de impotência” diante dos algozes. É uma resignação que atravessa o ser humano e fere mortalmente o resto de dignidade.
Todo preconceito em cima do câncer de próstata vem daí. Os homens temem que a cirurgia vá lhes tirar o prazer sexual. O seu e o da sua parceira (ou parceiro). Por isso alguns preferem o caminho sem volta da metástase.
O sexo tem um peso enorme em nossas vidas. Crescei e multiplicai. Tá na Bíblia. Mas pode crescer sem multiplicar também, não é pecado. Como revelei no capítulo passado, minha vida sexual começou cedo por meio de abuso. O que eu pensava quando tinha nove anos se confirmou agora, quando o texto foi publicado. Duas pessoas (homens) comentaram que eu fui sortudo ao ser iniciado por uma adolescente. Fico pensando se fosse a filha deles, será que chamariam também de “sorte”?
O tema abuso sexual remete normalmente a um abusador homem contra meninas e meninos. Raramente se vê casos de abuso por parte de mulheres, contra meninos. Além disso, mulher seduzir uma criança é mais socialmente aceito do que o contrário. Ficou famosa a cena da Xuxa seduzindo um menino em um filme de Walter Hugo Cury. Se fosse o contrário, o Antônio Fagundes seduzindo uma menina, o mundo viria abaixo.
Na sociedade machista tudo bem mulher abusar de menino.
Mas na minha infância, nos anos 1960, o abuso sexual era um tema quase desconhecido.
Naquela época eu não tinha a quem relatar, até porque gostava e não queria que parasse. Se eu contasse poderia passar por mentiroso ou, pior, por maricas, porque estaria revelando ao mundo que não estava gostando de uma mulher me proporcionando prazer. Seria um atestado de viadagem. E se eu contasse pro meu pai corria o risco de ele querer pegar a auxiliar. Pegar no sentido sexual mesmo.
Era comum os pais levarem os filhos pra zona para “virarem homens”. Foi assim que meninos de 14, 15 anos tiveram a primeira relação sexual com uma prostitua, enquanto o pai ficava esperando, bebendo, na sala do puteiro, orgulhoso de seu filho varão comedor. Duvido que mães fariam isso com suas filhas. Felizmente não passei por isso. Eu tinha a minha “professora” particular.
Este abuso não durou muito, a menina sumiu da escola, mas deixou tatuada na minha personalidade uma doença que viria a descobrir o diagnóstico muitos anos depois. Eu precisava daquela sensação de prazer tanto quanto o ar que respiro. Nesta idade comecei a desenvolver uma compulsão por sexo que causaria estragos enormes na minha vida por décadas. E foi assim que me tornei sexoholic ou, se preferir o termo em português, viciado em sexo.
Agora, aos 58 anos, diante da possibilidade de ficar impotente, como eu ficaria sem sexo? Como diria Roger, do Ultraje a Rigor, “como é que fico sem sexo???”
Esse fantasma da impotência me fez adiar por meses a cirurgia, até que não deu mais. Mas Maria só me pediu para esperar até o casamento de um grande amigo nosso, que seria na praia, com uma festa esperada há meses. Ela adora festas de casamento e eu, egoísta, raramente ia porque não sou muito chegado a festas, principalmente de casamento. Mas a exceção foi este casamento à beira mar.
Foi realmente muito bem produzido. O local, os noivos, os eventos paralelos, os convidados tudo estava em sintonia. Eu olhava os casais e meu coração apertava sempre que lembrava que a qualquer momento meu telefone iria tocar e do outro lado da linha alguém falaria: “Sr. Geraldo, sua internação está marcada para amanhã”.
Minha mão suava sempre que pensava nisso. Olhava o oceano e pensava: “e se eu simplesmente saísse nadando até esgotar minha força, afundar e terminar com tudo isso?”. Dizem que a morte por afogamento é tranquilizadora. Viemos do meio líquido e afogar-se é o revés do nascimento, no mesmo meio líquido.
E se...
Não sei as estatísticas oficiais, mas é grande o número de suicídios em pacientes pós prostatectomia radical. Aliás, em pacientes com qualquer tipo de câncer. A depressão que se segue à cirurgia afeta a todos os pacientes, mas cada um reage à sua maneira de acordo com a idade e história de vida. Nada diferente de qualquer outra doença grave.
Lembro perfeitamente de quase todos os momentos daquele fim de semana do casamento na praia. Vaidosa e linda, Maria era a pura expressão da beleza. Olhar pra ela me acalmava e preocupava: o que seria dela depois da cirurgia? Como seríamos um casal sem relação sexual completa?
A todos os homens que passarem por essa situação só tenho uma coisa a pedir: não encarem isso sozinhos. Fui ingênuo em acreditar que poderia “dar conta”. Besteira! Desde o momento do diagnóstico procure ajuda terapêutica e, se for o caso, converse muito com quem estiver ao seu lado.
Minha postura foi esconder de todo mundo. Deixei pra falar para as minhas filhas quando já estava quase chegando a hora da cirurgia. Apenas poucos amigos ficaram sabendo e todos concordaram com a cirurgia. Permiti que somente dois fossem me visitar no hospital. Não queria abrir pro mundo que estava indo para uma castração moral e sexual.
A hora da faca
O casamento foi no sábado. Domingo amanheceu nublado e fomos com mais um casal passear pela praia. Levei meu celular e quando estávamos sentados nas pedras o aparelho tocou. Gelei. Era o médico anunciando a minha internação. Não tinha mais desculpas pra adiar a cirurgia. Tive a sensação de um condenado à morte que recebe a visita do padre para a última confissão.
Virei pra todos, dei a notícia e o mundo parou naquele momento. Não se ouvia nada além do vai-vem das ondas do mar. Tive uma enorme vontade de chorar e não conseguia olhar pra ninguém. A partir deste momento tudo foi mecânico e cinza como o dia. Não se falava. O passeio virou um silencioso cortejo até a pousada para arrumar as malas e voltar pra São Paulo. Eu seria internado na segunda-feira para o pré-operatório e seria operado na terça-feira. Nunca foi tão difícil e distante voltar pra casa.
Chegou a segunda-feira e com ela o caminho para o hospital. Pedi um carro de aplicativo e fomos no banco de trás, Maria e eu, quase em silêncio. Para quebrar o gelo ela conversava sobre eleição com o motorista. Estava nublado, mas lembro quase nada desse dia. Até que algo muito misterioso aconteceu, que só posso creditar ao Divino. Recebi a ligação de um velho amigo que raramente me ligava. Minha primeira reação foi inventar uma mentira qualquer, mas por alguma razão misteriosa decidi falar a verdade:
– Oi Jean, boa tarde, estou indo retirar um câncer de próstata!
Pra minha total surpresa ele tinha passado por um câncer de intestino que quase o matou. Só que não fiquei sabendo na época. Durante quase todo o percurso ele contou a história e foi me acalmando. Até hoje sinto que aquela ligação não foi casual. Porque deu certo e eu cheguei no hospital bem mais calmo do que poderia imaginar.
Passada toda a burocracia, me colocaram num quarto e – outra coincidência: quando cheguei dei de cara com um amigo que estava se preparando para uma cirurgia bariátrica! Duas coincidências no mesmo dia era demais. Ele foi para a cirurgia e ficamos com o quarto só pra nós. A noite veio. O dia seguinte iria chegar. E eu estaria nele para mudar minha vida para sempre.
(Continua...)
Parte 1 clique AQUI
Parte 2 clique AQUI
Parte 3 clique AQUI
Parte 4 clique AQUI
Ficar pendurado a 90 metros do chão dá medo?* (Foto: Leandro Montoya)
Quando foi a última vez que você sentiu medo?
O medo é um mistério que filósofos, escritores e poetas já tentaram definir desde que o mundo existe. Como explicar medo e coragem de forma racional? Já tentei algumas vezes em textos intermináveis e modorrentos, mas a melhor explicação vi na série Agente 86. Quando capturado pelos agentes da Kaos, o agente Maxwell Smart, mesmo amarrado, diante dos algozes afirma:
– Sou um agente treinado para resistir todo tipo de tortura e desconheço o significado da palavra medo!
Até que entra o carrasco cheio de aparelhos de tortura e o agente explica:
– Medo significa sensação de ansiedade diante do perigo!
Foi a melhor forma de explicar para as pessoas o que é medo. Poderia substituir por “sensação de ansiedade diante do desconhecido”. Porque nem sempre o medo é reflexo de algum perigo, mas certamente é de algo que não conhecemos, ou não sabemos como vai terminar.
Por mais de 40 anos pratiquei várias atividades que podem matar uma pessoa: corrida de moto (em diferentes modalidades), ciclismo de down hill, escalada e até velejar num barquinho monocasco de 12 pés em plena tempestade no meio do canal de Ilhabela. Fora os anos pilotando moto nas ruas e estradas, aprontando tudo que um adolescente irresponsável poderia fazer. Se minha mãe soubesse metade do que eu fazia perderia o sono pro resto da vida.
Medo de andar grudado no meio dos pilotos? Não, eu sou o 14!
Mas especialmente nas corridas de motovelocidade o que mais ouvia era a mesma pergunta:
– Você não tem medo?
Para surpresa do perguntador, que invariavelmente esperava uma resposta do tipo “claro que não”, eu surpreendia com a sinceridade:
– Lógico, eu sou humano, sinto medo como qualquer ser vivo com sistema nervoso central!
Qualquer piloto de corrida, de qualquer modalidade, sente medo. Só existem dois tipos de pessoas que não sentem medo: o louco e o mentiroso. O louco dura pouco nas atividades de alto risco. Mentiroso está cheio. A diferença é que nas pistas os pilotos controlam o medo, porque, ao contrário do que se pensa, tudo é milimetricamente calculado.
É graças ao medo que checamos e conferimos tudo várias vezes antes de entrar na pista. Não dá medo fazer uma curva a 200 km/h com outro piloto colado a poucos centímetros porque os dois se conhecem e sabem muito bem o que o outro vai fazer.
Enquanto há controle o medo fica guardado em algum canto. Mas basta perder o controle para o medo aflorar como um chafariz e inundar nossa corrente sanguínea de adrenalina. Cair de moto a 200 km/h dá muito medo porque demora pra acabar. Durante todo o tempo que o piloto está voando, ralando, esfregando e espetando pelo asfalto como um pino de boliche passa uma eternidade com a mesma dúvida: “como isso vai terminar?”.
Uma vez caí a 200 km/h em Interlagos e enquanto meu corpo deslizava pelo asfalto em direção ao guard-rail eu só pensava “putz, acho que vou me arrebentar todo”. Felizmente só tive uma mínima escoriação no dedinho da mão direita.
Em outra situação, escalando a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí, caí cerca de 12 metros numa situação inesperada, porque o pedaço de pedra que estava me segurando soltou-se e eu voei de costas, olhando a rocha de afastando e esperando pela pancada fatal. Neste momento eu pensava “putz que sacanagem, vou morrer aqui, dar trabalho para os meus amigos, minha mãe vai sofrer um monte, que merda!”. Como você pode ver, não morri, me ralei muito mais do que naquele tombo de moto e quebrei um dente. Mas o medo que senti foi tão forte que fiquei anos sem voltar a escalar.
Sexo, como é que eu fico sem sexo?
Depois da consulta na qual ficou definido pela cirurgia, voltei pra casa de novo no modo automático. Expliquei pra Maria as três opções e ela não titubeou um décimo de segundo ao sugerir a cirurgia. Muitos anos depois, ela revelou que temia pela minha vida, porque não sabia a extensão do câncer, mas sofreu calada, algo que hoje lamentamos muito. Mas naquele dia – e em todos os outros – ela não demonstrou este medo. Justamente para não colocar mais pressão sobre mim.
Certamente o médico que me atendeu conversou com meu irmão que me ligou no dia seguinte para ir no hospital conhecer o centro cirúrgico. Experiente e sensível, meu irmão achou que isto me acalmaria. A ideia era apresentar as pessoas que cuidariam de mim antes, durante e depois da cirurgia. Achei a ideia muito boa e fui.
O complexo hospitalar incluía maternidade, pronto-socorro, todas as especialidades e meu irmão era (e ainda é) responsável pela UTI. Ele me equipou com as roupas especiais e levou pra conhecer as alas do hospital por onde eu passaria, incluindo a UTI, caso tivesse necessidade. Apresentou médicos, enfermeiras, assistentes, anestesistas a galera toda. Todos extremamente amáveis, atenciosos e procurando levantar o astral.
Quando entramos no elevador estava lotado de enfermeiras. Meu irmão, gaiato por natureza, não sei se por sacanagem ou não, perguntou para uma delas sobre o pai, que tinha passado pela mesma cirurgia de prostatectomia radical. Ela comentou:
– Ele está bem de saúde, mas meio abatido porque mexe muito com a cabeça.
E meu irmão, na gaiatice de sempre, comentou:
– Sim mexe com as DUAS cabeças!
Todas riram e concordaram. Uma delas seria a enfermeira que cuidou de mim depois da cirurgia. Na hora morri de vergonha.
Quando saímos comentei:
– Pow, você queria me acalmar ou me deixar mais nervoso? Estou prestes a ficar impotente e você toca no assunto num elevador cheio de enfermeiras!
– Relaxa, existem outras formas de prazer!
Este é meu irmão!
Minha irmã, que trabalha no mesmo hospital, foi um pouco mais, digamos, profissional, e me acalmou dizendo que daria tudo certo e que eu seria operado pelo professor de urologia.
Mas não foi tão simples assim. Entre o dia do diagnóstico e a cirurgia passaram-se meses. Não sei dizer quanto, fiquei mais de seis meses enrolando, sempre inventando uma desculpa quando a assistente social me ligava para marcar o dia da cirurgia. Primeiro eu dizia que não podia parar naquele período porque a minha empresa precisava de mim presencialmente. Depois inventei que estava com todo tipo de infecção, depois eram as viagens a trabalho e assim fui criando todo tipo de história pra adiar, quando no fundo, no fundo estava era morrendo de medo.
Não da cirurgia, porque eu já tinha sido operado antes, convivi com médicos na família por quase toda a vida e trabalhei em hospital. De cirurgia eu entendia muito, conhecia os riscos e dificuldades, nunca me preocupei. O medo era do que viria depois. Não clinicamente, mas psicologicamente e fisiologicamente, principalmente a palavra que não saída da minha cabeça: impotência!
O sexo começou cedo na minha vida. Muito mais cedo do que o normal. Mais precisamente aos nove anos de idade. Isso mesmo que você leu: 9 anos. Não é fácil falar e escrever sobre o tema, só consegui me abrir agora, em 2023, graças à terapia. Minha iniciação sexual se deu por meio de abuso. Por uma auxiliar da minha escola. Era uma moça de uns 16 anos, bem bonita, de pele muito macia cor de canela, cabelos bem pretos e longos, que colocava a mão por dentro da minha calça, me deixava excitado e me masturbava no ônibus escolar.
A primeira vez que tive aquela sensação de explosão meu corpo todo parecia eletrizado. Era um arrepio bom, seguido de uma felicidade inexplicável e saía um líquido do meu pinto. Eu queria e precisava daquilo todo dia. E passaria o resto da vida em busca dessa sensação, de forma doentia, desequilibrada e que responsável por grandes destruições na minha vida.
Aí eu pergunto: você tem medo de quê? Eu, aos 58 anos, tinha medo de passar o resto da vida sem sexo. Como diz Roger, do Ultraje a Rigor, “Sexo, como é que eu fico sem sexo???”
* Esta foto é uma ilusão, na verdade estou a menos de 1,5 metro do chão, mas parece que está alto! Eu jamais escalaria sem corda!
(Continua...)
Para ler a parte 3 clique AQUI
Para ler a parte 2 clique AQUI
Paral ler a parte 1 clique AQUI
Vista da janela de um hotel em Amsterdã: viajar é bom, com alguém junto é ótimo. (Foto: Tite)
A difícil decisão sobre qual procedimento para o câncer de próstata
A vida é feita de escolhas. Dã, pensa numa frase mais clichê! Só que traduz exatamente o que é viver. Sempre tive muita dificuldade para decisões e isso me causou tanto problema que uma das vantagens de envelhecer é que na maioria das vezes é a vida que decide por você.
O que gosto no horóscopo é que posso colocar toda a culpa dos meus erros no signo. Escolhi errado, ah é porque sou ariano. Gastei dinheiro com bobagem? Ah, quem mandou ser ariano. Meteu o louco e brigou na rua? Típica coisa de ariano. Tratou mal a mulher (ou qualquer pessoa)? Logo se vê que é ariano. Obrigado astros!
Mas a verdade é que algumas pessoas são mais assertivas do que outras, punto e basta. Os signos só servem para justificar quando deu errado, porque não se escuta alguém elogiando tipo “ah ele é super carinhoso e altruísta porque é ariano”. Não, os astros só atuam nas cagadas.
Uma vez na região da Toscana, na Itália, tive uma crise decisiva. Estava já havia uma semana viajando a passeio depois de uns dias de trabalho. Viajei muito na minha vida de jornalista, mas 90% das vezes a trabalho. Só fui começar a viajar a passeio depois de 10 anos de relacionamento com a Maria*, que me convenceu a gastar dinheiro em viagens. Eu mesmo já tinha rodado por muitas cidades, na maioria das vezes totalmente sozinho.
Pôr do sol na Mantiqueira: gaste seu dinheiro com viagens, porque é para sempre! (Foto: Tite)
Viajar sozinho é um saco! Fazer qualquer coisa sozinho é um saco. Nas primeiras viagens eu até curtia, porque sou ariano, mas depois começou a ficar meio triste não ter com quem dividir. No filme “Na Natureza Selvagem”, o personagem à beira da morte, depois de enfrentar uma aventura sozinho, chega a conclusão que “a felicidade só é completa quando compartilhada”. Um dos grandes ensinamentos da vida.
Nunca contabilizei quantos países já visitei, porque na maioria das vezes era chegar na quinta, trabalhar sexta, sábado e domingo e voltar na segunda. Posso dizer que não conheci mais de 30 e menos de 40 países. Mas desta vez na Toscana eu estava novamente sozinho, com um mapa na mão (época pré-smartphone). A cidade era San Gimignano, conhecida por ter os melhores sorvetes do mundo, pena que eu não gosto tanto assim de sorvete.
Estava tão angustiado para decidir pra onde ir que surtei. Fiquei prostrado no quarto do hotel, vendo televisão, sem qualquer movimento, enquanto começava uma garoa que deixava tudo ainda mais melancólico. Até decidir sair pela porta sem destino. Fui até os muros de uma fortaleza medieval, de guarda-chuva cobrindo parte da visão, quando percebi algo diferente na paisagem. Era um motociclista todo ensopado, sem capa de chuva, empurrando uma moto antiga.
– Pronto, achei algo pra fazer, pensei já me dirigindo ao motociclista.
Fui ajudar a empurrar a moto e recebi um enorme sorriso de volta, com agradecimento em alemão! O cara era alemão oriental, viajando com uma moto russa Ural 500cc, imitação de BMW. Com o pouco de alemão que aprendi consegui entender que ele não era um colecionador, mas era a moto normal de uso dele, viajando pela Itália em férias. Ele não falava nenhuma outra língua além do alemão que, como até as pedras sabem, é um idioma que se fala exclusivamente na Alemanha e Áustria. E que estava numa baita roubada.
Esta é uma Ural 500cc feita a Rússia, cópia da BMW. Ainda existem muitas rodando até hoje.
Empurramos até um posto de gasolina e ajudei a explicar aos frentistas que ele só precisava de um lugar coberto porque já tinha as ferramentas e conhecimento para resolver qualquer problema da moto. Traduzi tudo que deu pra entender e fui tomar um sorvete com a sensação de que o meu dia já estava recompensado para quem nem sequer queria sair do quarto.
Mas o vazio de viajar sozinho permanecia.
Na manhã seguinte remarquei minha volta pro Brasil e encerrei minhas férias com uma semana de antecedência. Foi neste momento que decidi parar de viajar sozinho. Quando se viaja sozinho é preciso estar disposto a falar com todo mundo, principalmente com o “baixo clero”, pessoas que estão nos servindo: camareiras, balconistas, motoristas, comerciantes, caixas de supermercado, cobradores de ônibus etc porque eu tenho uma timidez seletiva e não consigo falar com pessoas desconhecidas de "alta patente".
Na verdade eu preciso de alguém não só pra conversar e dividir a felicidade, mas para decidir por mim. Tomar decisões me deixava doente.
O xixi tá fraquinho? corre pro urologista!
Qual vai ser?
Muitos anos depois estava sentado diante do chefe da cadeira de Urologia da Universidade do Grande ABC para decidir qual procedimento adotar diante do diagnóstico de câncer de próstata. Ele me recebeu com toda atenção e gentileza que faltaram aos médicos do SUS.
Com papel e caneta este médico desenhou a anatomia da próstata, explicou pra que servia e deu uma aula que nunca mais vou esquecer. Olhou meus exames, trocou informações com outros dois médicos residentes e pediu para fazer o exame de toque. Sem problema fazer este exame. Ninguém fica mais ou menos homem se passar por isso, mas pode salvar a vida, como salvou a minha.
O residente confirmou a hiperplasia e então o chefe me apresentou as três opções:
1) Como ainda estava muito embrionário eu poderia deixar assim mesmo, fazer exames de PSA a cada seis meses e, se constatar um aumento considerável nos números, decidir pelos próximos dois procedimentos. Porém, a preocupação era o câncer entrar pela corrente sanguínea e se espalhar, causando a metástase, palavra que me arrepiou os pelos do toba.
2) Tratamento com bombardeio de radiação. A radioterapia atinge a próstata e a resseca como uma uva passa ou um maracujá de gaveta. Não é invasivo, não demanda pós operatório, porém (sempre tem um porém) as sequelas são as mesmas da cirurgia aberta, com a possibilidade de o câncer voltar porque a próstata ainda ficaria ali, encolhidinha no meu corpo.
Radioterapia: deita aí, não se mexe que vamos te bombardear!
3) Cirurgia aberta. O médico me abre, fuça lá dentro, retira a próstata e o tumor, me costura, me enche de drenos e sondas e eu fico no hospital por uma semana até receber alta. As sequelas são as já conhecidas incontinência urinária e disfunção erétil. Porém (e este porém é bom) eu ficaria livre de qualquer probabilidade de reincidência do câncer. Por garantia ainda ficaria cinco anos fazendo PSA para só então receber alta.
O clima na sala estava absolutamente calmo. Nada se mexia. Eram três médicos esperando qual decisão eu tomaria. E nem fazia ideia por onde começar até que o chefe percebeu minha cara de desespero e explicou:
– Não precisa decidir nada agora. Vai pra casa, conversa com sua esposa. Saiba que você não poderá mais ter filhos.
– Mas eu já não podia, doutor, fiz vasectomia há mais de 25 anos!
– Mas ainda poderia ter filho por inseminação, se quisesse...
– Pelo amor de Deus, não diga isso para a minha mulher! Que fique só entre nós, ela pensava que eu não podia mais ter filhos...
Foi o único momento menos sisudo da conversa, até que eu perguntei:
– Doutor, se você estivesse sentado aqui no meu lugar, qual procedimento escolheria?
Sem a menor hesitação, ele respondeu:
– A cirurgia!
– Então é esta que vai ser. Não preciso conversar com mais ninguém, o senhor é o terceiro médico que me indica a cirurgia, que assim seja então.
Pela primeira vez tomei uma decisão que se mostraria acertada, sozinho e sem a menor dúvida. A vida decidiu por mim. Já saí da consulta convencido a operar, mas as palavras incontinência urinária e impotência ainda reverberavam forte na minha mente. Até que confessei pro médico:
– Sabe, doutor, a minha maior preocupação não é a impotência sexual, mas a incontinência urinária. O sexo a partir dos 55 anos nem é tão frequente assim, mas fazer xixi na cama é um pesadelo que não gostaria de viver.
Ele até esboçou um sorriso, mas me acalmou:
– Olha, você é jovem. Hoje em dia temos remédios para a disfunção erétil que devolvem a atividade sexual. E a incontinência urinária pode ser controlada com fisioterapia.
Em resumo: Viagra ou Cialis + exercícios físicos. Hum, nada mal, pena que não foi tão simples assim...
Saí do hospital sozinho, abatido, desesperançoso, apavorado, com minha cabeça a 1.000 por hora e começou um processo de desconstrução do Tite que levaria muito anos para passar.
*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das pessoas envolvidas.
Para ler a parte 1 clique AQUI.
Para ler a parte 2 clique AQUI
(continua)
Esta foi uma das fotos que fiz à bordo de uma coisa estranha que voava*.
Ah as escolhas. Uma das poucas certezas da vida é que sempre achamos que fizemos a escolha errada. Porque não tem como apertar a tecla fast foward e avançar nossa história para saber como seria se tivesse feito a outra escolha. Não dá. O cinema até tentou retratar estas condições em filmes como “O Feitiço do Tempo”, “Efeito Borboleta” e o bobinho “Controle Remoto”.
Apesar de a ficção criar formas de avaliar como seria se tivéssemos feito a outra escolha, na vida real não existe essa chance. Escolhas significam renúncias e não adianta se julgar pelas escolhas do passado porque éramos outras pessoas. Só posso garantir que de pouco adianta se perguntar “como seria se eu tivesse feito a outra escolha?”, porque agora estaria fazendo exatamente a mesma pergunta.
Efeito Borboleta: o personagem do filme só consegue corrigir os erros do passado magoando a pessoa que amava.
Algumas pessoas de elevada grandeza procuram ajuda na hora das escolhas. Outras seguem um instinto e a grande maioria vai no impulso. Sorte quando a escolha pode ser revista e permitir voltar atrás, mas quando a decisão é irreversível o peso da escolha é eterna. Nada retrata mais essa angústia do que o filme genial “A Escolha de Sofia”.
Com o pedido de biópsia nas mãos fui para o posto de saúde agendar o procedimento. Diante de tanta recomendação parecia que eu faria uma cirurgia. É quase isso. O paciente é anestesiado e o médico introduz um tubo com uma agulha na ponta. Ah introduz pelo rabicó mesmo, na falta de outro orifício nas redondezas. Retiram uma porção do tumor que será examinado no laboratório. Como é feito um corte, isso sangra e precisa cicatrizar, porque não tem como enfiar a mão lá dentro (ainda bem) pra costurar.
Por isso o pré e pós procedimento são praticamente iguais aos de uma cirurgia, porém sem a internação. Entra de manhã, leva o ferro, acorda e vai pra casa. Não, não pode ir de moto, nem dirigir. Precisa levar um acompanhante maior de idade e se prepara, porque depois de passar o efeito da anestesia vai doer muito.
Escolhemos ir de Uber porque eu não queria me preocupar com estacionamento, nem voltar dirigindo. Desta vez fui acompanhado da minha mulher, que respeitou minha vontade de não falar sobre o assunto.
Nunca a arte retratou tão bem a angústia de uma escolha como no filme A Escolha de Sofia.
No caminho lembrei da minha vasectomia, feita no final dos anos 1980. Já tinha as minhas duas filhas e decidi que seria o procedimento mais eficaz, até porque eu não queria mais ter filhos mesmo. E também é uma cirurgia menos invasiva e bem mais simples do que a laqueadura para a mulher.
Só que eu tinha 30 anos e nenhum médico queria operar um jovem de 30 anos porque, segundo eles, minha vida poderia mudar muito ainda. Um deles até foi irônico:
– Imagine se você se separa, conhece a princesa de Mônaco, ela se apaixona por você, mas só casa se tiver um herdeiro?
De todas estas possibilidades a única que se concretizou é que poucos anos depois eu me separei mesmo. O resto foi devaneio. Mas gostei da possibilidade de casar com a Stéphanie Mari Elisabeth Grimaldi. Eu esconderia o fato de ser vasectomizado até passar a lua de mel, claro.
Sem poder operar nos médicos convencionais apelei para o meu cunhado da época. Pense numa família que tem médico! Ele topou, mas fez a cirurgia no consultório, com ajuda de um anestesista. A cirurgia correu bem, com anestesia local, mas ele não me disse para ir de taxi e fui dirigindo meu Passat sem direção hidráulica.
Na saída do consultório ele me deu uma receita e avisou que, se doesse, era pra tomar aqueles remédios. Saí meio claudicante como quem leva uma baita bolada no saco e fui embora. Assim que pisei na embreagem e engatei a primeira senti uma pontada como se estivessem arrancando minhas bolas.
A dor foi aumentando a ponto de não conseguir mais dirigir. Parei na primeira farmácia, desci e fui quase engatinhando até o balcão. Entreguei a receita pra farmacêutica e fiquei de cócoras implorando para me darem alguma coisa bem forte pra acabar com a dor.
Deram. Uma injeção de qualquer coisa que diminuiu a dor, mas ainda tinha de dirigir aquele Passat duro que nem uma carroça medieval, tentando desviar até de palito de sorvete. Cheguei e capotei no sofá!
Por isso, desta vez, para fazer esta biópsia decidi respeitar todas as regras recomendadas, até porque 27 anos a mais de vida nos deixa um pouco mais experiente.
Fui pra biópsia ainda sem a menor noção do que seria feito. Simplesmente tirei a roupa, vesti um avental que deixa a bunda de fora e deitei numa cama. Uma enfermeira gorda, negra e muito engraçada me levou pro centro cirúrgico perguntando sobre tudo que eu fazia. Foi tipo uma entrevista e isso me deixou bem mais relaxado. Ela explicou o procedimento, mas não prestei atenção porque estava ouvindo a conversa de dois médicos.
Um deles estava literalmente puto da vida porque antes das consultas os pacientes pesquisam no Google e ficavam questionando os diagnósticos. Na verdade eles queriam apenas uma segunda opinião.
Enquanto isso o anestesista já tinha me espetado e aconselhou:
– Pense apenas coisas boas!
Antes de empacotar chamei o médico e aconselhei:
– Doutor, se alguém pesquisar no Google e vier aqui apenas em busca de uma segunda opinião pede pra ele pesquisar no Yahoo!
Apaguei ouvindo o som das risadas no centro cirúrgico.
Apesar de anestesiado senti mexerem no meu corpo até começar a sonhar. Não sei o que colocaram naquela anestesia além de óxido nitroso, porque sonhei que estava numa estrada americana viajando de Harley-Davidson, quando a enfermeira me acordou.
– Ufa, ainda bem que você me acordou, achei que essa sensação dolorida no meu rabo era a vibração de uma Harley!
Dias depois, quando saí daquele mesmo lugar com o resultado positivo para câncer e a palavra "impotência" reverberando no meu cérebro, chegava o momento de fazer uma escolha irreversível: morrer de pau duro ou viver de pau mole?
Eu aumento, mas não invento: estas pernas trêmulas são minhas mesmo, num ultraleve, em direção a uma tempestade manauara! Logo ali embaixo está a fábrica da Honda.
No ar
Nunca saltei de para-quedas, mas tenho vontade. O que me impede é o medo. Só de pensar naquele avião a 4.000 metros, de porta aberta já estremeço. Não gosto muito de coisas que avuam. No entanto, a profissão de jornalista e fotógrafo me obrigou a voar muito. Muito, alto e em coisas que nem eu acredito, como em Manaus (AM), nos anos 1980 que precisei fazer uma foto aérea da fábrica da Honda, numa aeronave tão rudimentar que faria o Demoiselle parecer um jato.
Procurei o aeroclube local mas o preço pra alugar um helicóptero era muito acima do meu apertado orçamento. Um cabra ouviu a conversa, me chamou de lado e soltou:
– Eu posso te levar pela metade do preço!
– Fechado!
Só esqueci de perguntar qual a aeronave. Era um ultraleve. Aberto, sem chão, sem teto, sem janelas porque também não tinha portas. Aquela trapizonga era uma asa delta com motor de Fusca e dois lugares. Sem tempo, nem juízo, aceitei a oferta e nem precisei mais de 30 segundos para me arrepender profundamente.
Lindo dia para morrer engolido pela tempestade! Mas não morri!
Até este dia eu achava que tinha sentido medo. Besteira, medo eu tenho de barata. O que passei naquele projeto de coisa que voa (em alemão flugzeug) superou muito o sentimento de medo, desamparo, saudades do colo de mãe. Principalmente quando olhei pra frente e vi uma tempestade se aproximando.
“Por que eu não gastei o dinheiro do cliente e fui de helicóptero? Por que eu faço tantas escolhas erradas?” pensava enquanto tentava fotografar, me contorcendo para manter a máquina fotográfica estabilizada.
Como você pode ver, eu não morri. Mas meu espírito ficou em algum lugar da selva amazônica junto com minha dignidade.
O silêncio da inocente
Escolhas. E se eu simplesmente não operasse a próstata, continuasse sexualmente ativo, esperando que a natureza seguisse seu rumo, até definhar e morrer como aconteceu com Frank Zappa? Tinha de escolher qual procedimento adotar e se eu queria mesmo operar.
A palavra impotência é cruel. Ela cai na nossa cabeça como um sino de catedral. Entra na corrente sanguínea e se aloja no cérebro como um parasita de cisticercose. O diagnóstico de câncer de próstata vem atrelado aos dois principais efeitos colaterais: incontinência urinária e, para ser elegante, disfunção erétil.
Depois de receber o diagnóstico daquela maneira fria e insensível, saí do centro de São Paulo, até a minha casa, na zona sul, tentando me concentrar na pilotagem da moto com as palavras câncer e impotência na minha cabeça. Precisava chegar em casa e contar pessoalmente para a minha mulher. Mas como dar essa notícia? Os médicos e assistentes sociais não nos preparam pra isso. Nem a Igreja, nem a escola, nem os pais. Ninguém nos prepara pra esse momento.
A moto foi sozinha pra casa porque não lembro de nenhum centímetro do percurso. No caminho passava pela minha mente pensamentos que devem ser comuns a todos que recebem essa sentença: por que eu? por que Deus me escolheu? O que fiz de errado pra isso acontecer? Será um castigo divino por eu ter sido tão promíscuo? Não pode ser um erro do cara que fez o laudo? Será que trocaram meu exame no laboratório? E se eu jogar a moto agora desse viaduto e me espatifar lá embaixo pra evitar tudo que virá pela frente?
Confesso que não lembro muito desse dia (devia ter feito um diário), mas entrei em casa e contei o resultado para minha mulher que manteve-se forte e elegante como sempre. Não falamos muito e aí começou o que considero o maior erro de postura que tomei durante anos seguidos: o silêncio!
Existe um provérbio árabe que ensina: o silêncio é pedra; pedra constrói muros e muros separam. Nunca li tanta verdade em uma frase tão curta. Pena que só aprendi isso tarde demais.
Não é minha intenção fazer um livro de auto-ajuda porque não acredito em livros de auto-ajuda, mas aqui fica minha primeira e valiosa dica para quem vive junto: converse! Saiba a hora, o lugar e como conversar. Não vale, por exemplo, depois do sexo, quando a pessoa está encharcada de endorfina, adrenalina, dopamina, ocitocina, vaselina etc um dos dois virar e falar:
– Então, sobre o natal na casa da mamãe...
Não, definitivamente depois do sexo não é hora de conversar. Deixe os hormônios fluírem.
Também não espere uma explosão de sentimentos para conversar, porque é fácil descambar pra discussão. Espere um momento que ambos estejam de boas. E pare de achar que discutir um assunto é uma disputa, na qual se tem necessidade de “ganhar” ou “perder”.
Outro filme genial "A Profecia Celestina" mostra a troca de energias que acontece quando duas pessoas discutem e como essa energia flui de um para o outro. A sensação de vitória ou derrota em uma discussão reduz ou aumenta esse fluxo de energia.
Nossa sociedade – e a mídia tem um papel importante nisso – nos inculcou a ideia de que conversa de casal é discutir a relação, a tal “DR”. Também nos empurrou goela abaixo a mensagem de que é sempre a mulher quem deve puxar assunto, ganhando a pecha de “chata”. As mulheres naturalmente chamam para a conversa porque faz parte da liturgia do cargo. Homens preferem o silêncio, porque não sabem como falar, ou, geralmente, porque preferem manter guardado. Homens escondem os sentimentos porque aprenderam que “homem não chora”.
Outra dica: no caso de um problema de saúde que afete um dos dois, conversem, porque não está em jogo apenas a saúde de um dos cônjuges, mas na verdade o que fica doente é a relação. Na vida do casal, o câncer adoece os dois. Saber como conduzir, procurar ajuda terapêutica, deve ser extensiva ao casal. Mas isto eu não sabia quando cheguei em casa naquela manhã de julho. Por não saber como fazer adotei a pior postura possível: me fechei como uma ostra.
No filme "A Profecia Celestina" a cena mostra a troca de energia quando conversamos
Procedimentos
Mesmo sabendo que minhas células cancerígenas estavam se reproduzindo como taradas no cio, eu não sentia nada de errado. Sim, já tinha percebido que estava difícil fazer xixi e que o jato saía fraco. Mas eu creditei na conta do envelhecimento natural. Quando eu tinha 10 anos olhava para meu avô de menos de 60 anos como se ele fosse um fóssil vivo.
A noção de velhice mudou ao longo da última década. Aos 55 anos eu me achava tão ativo quanto aos 35. Mas a natureza tem formas desonestas de me corrigir. E uma delas era esse xixi fraco, que nunca associei a hiperplasia prostática, até porque nem sabia da existência dessa palavra. Na real, deveria ter começado os exames de PSA aos 45, pelo histórico familiar, mas também não lembrava que meu pai tinha sido operado. No dia da cirurgia dele eu estava viajando a trabalho e quando voltei não tocamos no assunto.
Agora, com o diagnóstico feito, cada xixi era uma testemunha de acusação, como se minha uretra dissesse: “ae, mano, eu te avisei!!!”.
E só um esclarecimento que poucos médicos explicam. Não é só o jato de urina que fica fraco. A ejaculação também! Não sai um jato explosivo como um míssil balístico, mas escorre devagar que nem os chafarizes da piazza Navona. Mas este não é um assunto pra ser gozado.
Chafariz da Piazza Navona: fraquiiiinhos...
Por não sentir nada, e até mesmo rejeitar o diagnóstico, demorei para procurar um especialista. Sem plano de saúde, a consulta pelo SUS estava marcada para quase 40 dias depois, como se fosse apenas uma micose de praia. Até que um dia falei com meu irmão e mandei o laudo da biópsia via Whatsapp. Assim que apareceram as duas barrinhas azuis no aplicativo ele me ligou:
– Vem pra cá que o chefe da Urologia quer falar com você. Mas fica tranquilo...
Ah tá. O pica das galáxias da urologia do hospital onde meu irmão trabalhava falou pra eu ir lá no dia seguinte, mas fica tranquilo... Passei a noite tão tranquilo quanto um sentenciado no corredor da morte, escolhendo qual procedimento menos agressivo!
No dia seguinte de manhã estava sentado na frente do chefe da Urologia, acompanhado de dois outros médicos residentes para saber quais opções eu teria: câmara de gás, fuzilamento ou forca?
(Continua...)
*Fotos originais feitas em Kodak Ektachrome
Para acessar a parte 1 clique AQUI.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. Prostatite parte 10: a vo...
. Prostatite 5: Sex and the...
. Prostatite 4: você tem me...
. Prostatite 3: então, qual...
. Prostatite parte 2: sobre...