Terça-feira, 7 de Abril de 2009

A natureza da vida

 

(Racha entre Porsche e motos: da hora, mano, show!)

 

Durante um jantar na Alemanha dividi a mesa com um casal de ingleses e a mulher se encantou quando afirmei que era brasileiro. Ela tinha acabado de chegar de uma feira de negócios em São Paulo e passara uma semana na capital paulista. Conversamos as amenidades de sempre até que perguntei o que mais a tinha chamado a atenção na minha cidade. A resposta foi bestificante:
 
- A imensa quantidade de cachorros atropelados nas ruas!
 
Se alguém tivesse apostado um milhão de euros e me dessem 100 tentativas para acertar a resposta teria errado longe. Jamais imaginei que nossos cachorros atropelados pudessem impressionar um turista.
 
Quinze dias depois estava eu, em pleno sábado de sol, disposto a passear com minhas filhas e fomos para a cidade mais charmosa da vizinhança, Embu, que fica a 28 km do centro. Foi então que decidi fazer uma estatística sinistra e contei 25 carcaças de cachorros atropelados em 22 km de estrada. E ainda tinha a volta! Foi quando tive a segunda grande revelação daquele período. Minha filha mais velha admitiu, pela primeira vez, que sempre teve pavor da Régis Bittencourt, estrada que liga São Paulo a Embu. E mais: confessou que na infância ela percorria todo esse trecho de olhos fechados com medo de ver os cachorros atropelados.
 
Neste dia, parte da minha visão crítica foi recuperada e comecei a ficar igualmente indignado diante de cada carcaça de cachorro que putrefaz nas ruas e estradas. E também decidi parar de contar!
 
Será que houve um tempo que todos nós também ficamos indignados, como a inglesa, ou assustados, como minha filha, diante de um cachorro morto? Acredito que sim. Mas, de alguma forma até bizarra, nos tornamos empedernidos diante desse cenário de horror. Tornou-se tão banal tropeçar em carcaças de cachorros e gatos que nem ligamos mais pra isso. Precisamos de uma estrangeira ou de uma criança para recuperar nossa capacidade de indignação. Ver um cachorro atropelado se tornou tão natural quanto ver o mato crescer na calçada no verão.
 
A julgar pelo que leio nas comunidades de motociclistas do Orkut e pelos vídeos postados no Youtube começo a acreditar que a morte de motociclistas em acidentes de trânsito já adquiriu esse status de banal. A mídia explora por algumas horas, os posts se acumulam no Orkut por alguns dias, mas depois tudo desaparece como a mancha de sangue lavada do asfalto na primeira chuva. A última vez que vi um motoboy morto na avenida 23 de maio pensei imediatamente na família dele e deu aquele conhecido nó na garganta. O motoqueiro na minha frente gesticulava como se quisesse brigar com algum culpado imaginário, mas as pessoas passavam, as motos passavam e tudo seguia o rumo natural de mais um dia.
 
Não quero esperar uma futura viagem ao exterior para ser novamente surpreendido por um gringo ao me revelar que ficou assombrado com a quantidade de motociclistas mortos em São Paulo. Ou descobrir em um breve futuro que meu neto terá de rodar de olhos fechados pelas ruas com medo de ver um motociclista morto.
 
Preciso recuperar minha capacidade de indignação AGORA.
 
O recente acidente na rodovia Anhanguera, no qual três motociclistas em altíssima velocidade se chocaram contra policiais que socorriam outra vítima de acidente foi exemplar. Poucos dias antes foi colocado um vídeo no Youtube que mostra um Porsche tirando racha com duas motos esportivas a mais de 200 km/h. Não precisa ser muito observador para identificar a mesma rodovia Anhanguera que foi palco do recente acidente. Um mês atrás a demonstração de irresponsabilidade do motorista do Porsche rendeu mais de 60.000 acessos no Youtube e muitas observações enaltecendo a qualidade dos pilotos.  Agora, que temos mais um cadáver produzido por esses “super-pilotos” domingueiros vejo várias manifestações de pesar no Orkut. Ué, mas não era legal? Não é da hora tirar racha na Anhanguera? Os manos do Porsche e das motos não pilotam muito? Então porque chorar por um cadáver que era casado e tinha três filhos. É só mais um corpo na estrada. Mais um cachorro atropelado.
 
Há 10 anos ministro cursos de pilotagem que têm como principal objetivo formar motociclistas mais seguros. E quando saio em busca de patrocínio para dar continuidade a este trabalho sou recebido nas empresas como se fosse um traficante, seqüestrador ou vendedor de arma. Sempre que procuro empresas do setor motociclístico para dar suporte e continuar este trabalho tenho a clara impressão de que o profissional de marketing me olha como se eu estivesse querendo arrancar um dinheiro fácil. Para estas empresas, preservar a vida não é uma boa ferramenta de marketing.
 
Até mais um corpo ser jogado na cara da opinião pública e aí parece que todo mundo decide ficar indignado!
 
Vou continuar ministrando cursos de pilotagem, com ou sem ajuda do setor, porque se a morte é a única certeza da vida quero continuar me sensibilizando quando ocorrer de forma irresponsável. Para mim, pilotar motos na estrada sempre será a natureza da vida.
 
(mais uma morte na Anhanguera: agora ninguém gosta do show!)

 

 

publicado por motite às 04:19
link | comentar | ver comentários (19) | favorito

.mais sobre mim


. ver perfil

. seguir perfil

. 14 seguidores

.Procura aqui

.Setembro 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

.posts recentes

. A natureza da vida

.arquivos

. Setembro 2024

. Junho 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Julho 2023

. Maio 2023

. Janeiro 2023

. Novembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Julho 2019

. Junho 2019

. Março 2019

. Junho 2018

. Abril 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Março 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds