A moto em pleno contra-esterço: o piloto está curtindo ou tem medo?
Ainda na linha "reciclagem de material" achei mais um artigo perdido em meus archivus. Além de editar acrescentei novas informações. Continuo dedicando-me à correria dos cursos de pilotagem deste final de semana (7 e 8 de fevereiro). Mas na segunda-feira tudo volta ao normal...
Medo & Coragem
O jornalista, amigo e professor de pilotagem, Expedito Marazzi, já falecido, costumava dizer:
– Quem diz não ter medo é louco ou é um tremendo mentiroso.
Sábias palavras. Nestes (muitos) anos que freqüento o motociclismo, seja como testador, como piloto, ou como um motociclista padrão, passei várias situações de medo, algumas vezes controlado, outras completamente desesperado. Mas qualquer um que perguntar a um piloto profissional se ele tem medo, a resposta quase sempre é um sonoro NÃO! Mentira da grossa.
O medo tem uma função muito importante de modo geral, porque é o que nos protege contra os perigos naturais. Para aqueles que dizem desconhecer o significado da palavra medo, aqui vai a definição: é a sensação de ansiedade diante do perigo.
Quando sentimos medo? O medo normal é decorrente de situações de risco, que provoca uma descarga de adrenalina na corrente sangüínea, faz os pêlos arrepiarem e os músculos das costas se enrijecem. Depois de um grande susto é comum sentir dores musculares decorrentes da descarga de adrenalina.
Para os pilotos, a adrenalina é bem vinda porque mantém o ritmo cardíaco acelerado, oxigena melhor o cérebro e produz respostas mais rápidas aos estímulos sensoriais. Existe até uma teoria sobre o vício. Alguns especialistas em comportamento humano justificam o prazer de arriscar a vida como um vício em adrenalina. O piloto simplesmente não consegue mais ficar muito tempo sem adrenalina. Bom, pelo menos é uma droga 100% natural e sem contra-indicações, produzida pelo próprio corpo e não por “pastores” bolivianos.
Costumo dizer que o medo é um aliado. Numa corrida, o piloto mantém o medo sob controle e só passa a entrar em pânico realmente quando a situação foge do seu domínio. Enquanto está na pista, freando, acelerando e fazendo curvas, o piloto tem noção de tudo e dificilmente sente medo. No momento que perde o controle da moto e sai reto numa curva, por exemplo, indo a 180 km/h em direção a um muro de concreto, o medo é absurdo, porque não dá para prever o desfecho do acidente. Aqueles décimos de segundo em que o piloto está no ar, voando de cabeça pro asfalto, tornam-se horas intermináveis, quando passa muita coisa pela cabeça.
Nas ruas e estradas o medo deve ser levado em conta. É o medo que vai fazer um motociclista respeitar seus próprios limites e não entrar na conversa de seus amigos que fazem curvas “no gás” numa estrada de mão dupla. Neste sentido, o medo pode ser traduzido como um respeito à sua vida e à dos outros.
O medo só torna-se um problema quando ele é compulsivo ou de origem inexplicável. Por exemplo, a síndrome do pânico. São pessoas traumatizadas que não conseguem nem chegar perto de uma moto, muito menos sair pilotando. Para estes casos, forçar a barra querendo enfrentar o problema sozinho pode ser mais perigoso. Existem especialistas em desinibição no trânsito, que conseguem “adestrar” o motociclista, eliminando os efeitos do trauma. Ou mesmo terapeutas que descobrem a origem do pânico e trabalham no sentido de eliminá-lo.
De qualquer forma, o medo não é um inimigo, desde que em grau aceitável. É mais ou menos como o ciúmes: um pouquinho não afeta o relacionamento, mas em grau exagerado torna a vida insuportável.
Prazer
Moto sempre foi sinônimo de prazer & dor. O medo vem da possibilidade diante da dor. Já o prazer é a satisfação pessoal em realizar algo de muito bom. Diante do prazer nosso organismo também secreta um hormônio parente da adrenalina: a endorfina!
A exemplo da adrenalina, a endorfina é conhecida como “a droga do prazer”, só que é fabricada pelo nosso corpo e não tem contra-indicações, embora também cause dependência. Aliás, a raiz de toda dependência, seja química, física ou amorosa é a liberação de endorfina quando sobre efeito do agente do prazer.
Por exemplo: fumar traz prazer ao fumante e ele libera endorfina. O tabagismo vem da necessidade de provocar essa descarga de endorfina e não exatamente da fumaça que a pessoa ingere.
Isso explica porque alguns pilotos simplesmente não conseguem parar de correr! Ficaram dependentes da carga de endorfina+adrenalina liberada a cada competição. Nas recentes 500 Milhas vi uma enorme quantidade de PVC (Piloto Véio de Competição) e até recebi convite para correr. Os veteranos foram muito bem, um deles até ganhou na classificação geral, mas eu encontrei na escalada a minha dose necessária de adrenalina+endorfina sem precisar gastar uma fortuna!
Escalar libera mais endorfina do que adrenalina. Foto: Luna
Clinicamente falando, a endorfina faz bem à saúde, desde que não cause a dependência. Por outro lado, a adrenalina que traz benefícios na hora de se preparar para uma ação física inesperada. A diferença crucial do ponto de vista clínico é que a adrenalina é um vaso constritor, ou seja, ela endurece e comprime os vasos sanquíneos para acelerar a circulação de sangue e enviar mais rapidamente força aos músculos. Enquanto a endorfina é um vaso dilatador, que provoca queda na pressão arterial e gera a sensação de bem-estar. Aquele soninho depois do sexo, por exemplo, é causado pela queda na pressão arterial depois da explosão de prazer. Viu, mulheres, nada de nos encher o saco com o tradicional: “Ah, mas você vai dormir justo agora?”.
(Jean nº10 e eu nº 14: pega feroz...)
Vida corrida – medo e riscos
Quem passou tantos anos envolvido em competição está acostumado a responder sempre às mesmas perguntas. Uma das campeãs é a famosa “Você não tem medo?”. Claro que tenho! Eu sou um ser vivo e todos os seres vivos respondem aos mesmos estímulos quando diante do perigo. O velho Expedito Marazzi costumava dizer que só existem dois pilotos que não sentem medo: o louco e o mentiroso!
Já escrevi várias vezes sobre o medo e como ele ajuda a auto preservação. O que comentei pouco foi sobre a INSEGURANÇA. Existe uma diferença abissal entre sentir medo e sentir-se inseguro. Da mesma forma que existe a ousadia e a loucura. Se as pessoas levassem essa diferenciação para a vida e para o mundo corporativo muitos erros e acidentes poderiam ser evitados.
Em corridas não há meio termo. É preciso assumir, reconhecer e controlar os riscos dentro e fora das pistas. Eu ouso dizer que os maiores riscos à profissão de piloto estão fora das pistas. E o maior dele é a falência financeira. Carreiras promissoras podem desabar diante da falta de grana. Assim como pilotos de capacidade mediana são capazes de uma carreira bem sucedida – até certo ponto – escorado por uma montanha de dólares.
O primeiro desafio de qualquer candidato a piloto é conseguir (muita) verba. Infelizmente o Brasil é um país que dá pouca ou nenhuma importância às competições de base. Os patrocinadores se limitam a entrar nas categorias e equipes que são transmitidas ao vivo pela TV. Tenho uma teoria há anos: no Brasil os pilotos que conseguem patrocínio mais facilmente são justamente aqueles que não precisam. São jovens de famílias abastadas que conseguem verba extra por meio de uma rede de influência. Mais ou menos como ocorre no mundo corporativo: hoje vemos muito executivo que chegou ao cargo com ajuda da rede de influência e do dinheiro do que propriamente por méritos profissionais.
Enquanto está nas categorias de base, correndo com dificuldade e a grana contada, o futuro piloto já enfrenta vários riscos e desafios. Como já escrevi anteriormente, o piloto precisa obrigatoriamente conhecer mecânica e tudo que envolve competição. Precisa saber onde comprar peças mais baratas, os mecânicos confiáveis, como melhorar o equipamento e até controlar os gastos conforme o desenrolar dos campeonatos.
Os riscos estão por toda parte. Imagine o que pode representar uma pinça de freio mal colocada; ou os parafusos soltos dos mancais de apoio do eixo (no kart). O piloto-mecânico precisa conhecer tão bem seu equipamento a ponto de identificar problemas e encontrar soluções em tempo recorde.
No meu início tive um problema inusitado. Meu kart perdia velocidade só em curvas para um lado. Fiquei intrigado e procurei as mais diferentes soluções. Primeiro mudei os pneus. Nada! Depois alterei a cambagem (ângulo de inclinação da manga de eixo) e... nada. Para piorar, o freio começou a superaquecer rapidamente até que fiquei totalmente sem freio na entrada de uma curva de média velocidade e quase bati no muro. Foi um tremendo susto; pulei do kart louco da vida até que percebi uma fumaça saindo da pinça de freio. Fui checar e descobri que dois dos três os parafusos de fixação do suporte do disco estavam quebrados. Quando eu fazia curva para um lado o disco desalinhava e encostava na pastilha! Lição aprendida: se o kart perde velocidade na curva pode não ser um problema de estabilidade, mas de ... freio! Tremi, imaginando o que poderia ter acontecido se ficasse sem freio na curva mais rápida do circuito!
Todo piloto está sujeito a uma falha mecânica, daí a importância de conhecer o equipamento a fundo. Esse problema se repetiria bem no meio de uma prova de longa duração. Em meia volta percebi o problema, entrei nos boxes e conseguimos consertar sem perder muito tempo.
Já nas motos os riscos são pertinentes à fragilidade do veículo. As quedas são mais freqüentes e os equipamentos de segurança são reforçados pensando nessa dolorida possibilidade.
O importante é controlar tudo que se passa com o veículo e com você mesmo. Pilotos experientes adquirem um profundo sexto sentido. E a primeira lição que todo piloto deve receber é reconhecer seus próprios limites sem medo do que os outros dirão. A primeira vez que pilotei uma moto na pista de Londrina (PR) tive vontade de entrar nos boxes, encaixotar tudo e ir embora. O circuito é assustador, com uma curva cega de alta velocidade, outros pontos cegos e um trecho remendado onde a moto saltava do asfalto quase em velocidade máxima.
Pensei comigo mesmo: “Pô, essa pista é um suicídio! Vou sair fora!”. Antes de tomar a decisão resolvi dar mais uma volta. E mais uma. E outra e ao final do primeiro treino eu tinha feito o terceiro tempo, totalmente ambientado com a pista.
(pilotar a um palmo de distância: é preciso assumir riscos)
Essa capacidade de reconhecer os limites deve fazer parte tão natural do piloto quanto respirar. Essa corrida foi muito divertida porque dei 10 voltas trocando de posição com o Jean Calabrese e a gente quase se tocou várias vezes. Eu passava ele num ponto da pista e ele me passava em outro. As frenagens eram loucas com as motos quase se tocando e no final eu vi uma mancha de pneu no meu macacão, mas nem percebi o toque! Nessa disputa não cheguei a sentir medo porque eu conhecia muito bem o Jean, seu estilo de pilotagem e não estávamos disputando diretamente o campeonato. Se eu sentisse que o outro piloto estava fora do limite da lealdade certamente não faria uma curva a 160 km/h colado no pneu dele!
(Quem não assume risco não vê o mundo de cima do pódio!)
O medo e o controle do medo são condições essenciais para um piloto. O que não pode de forma alguma acontecer com um piloto é a INSEGURANÇA. Se passar o mais leve sentimento de insegurança no que está fazendo é hora de parar e assumir o controle da situação. Sentir medo é natural. Sentir insegurança é perigoso. Tanto na vida competitiva quanto na vida pessoal e coorporativa a insegurança é a raiz de vários projetos frustrados. O namorado que não se sente seguro na relação vai enxergar vários chifres (sem trocadilhos) em cabeça de cavalo. O chefe inseguro é capaz de atrasar (ou mesmo impedir) um novo projeto em nome de uma qualidade que jamais será alcançada, porque está apenas na cabeça dele. Um piloto inseguro nunca fará uma ultrapassagem a 200 km/h ou frear 20 metros depois de todo mundo. Às vezes é preciso ser ousado para controlar o medo. Se eu não tivesse a ousadia de dar uma volta a mais no primeiro treino de Londrina teria desistido de correr e terminar em segundo lugar. Se o executivo fosse um pouco mais ousado assumiria alguns riscos sem levar sua equipe à exaustão ou à loucura em busca de uma inalcançável qualidade.
Nas minhas aulas de pilotagem eu reforço demais esse conceito e repito “n” vezes o mote da segurança: o principal motivo que leva um motociclista ao acidente é querer fazer aquilo que ainda não está pronto. Por exemplo: acompanhar os amigos em rachas nas estradas. Tenho certeza que muitos que se acidentam nessas condições estavam inseguros do que faziam, mas continuaram por vergonha de assumir os próprios limites.
Então aqui vai mais uma lição de sobrevivência em duas rodas. Além de assumir a existência medo, um piloto precisa ter a coragem de assumir que não está preparado para atingir determinados limites. Seja franco: alguém ficaria tranqüilo controlando uma derrapagem a 150 km/h?