Terça-feira, 19 de Julho de 2022

De Manaus para o mundo

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Theatro de Manaus: símbolo de uma era de ouro da borracha, que hoje é da indústria. (Foto:Tite) 

A convite da Abraciclo visitamos quatro fábricas em Manaus

Desde criança quando ouvia falar em Manaus e Amazônia minha imaginação corria solta. Rio Amazonas, pororoca, encontro das águas, vitória-régia, boto cor de rosa, peixes enormes e floresta instransponível. Essa era a Manaus da minha infância. Mas a vida me mostrou uma nova Manaus.

A capital do Estado do Amazonas serviu de berço para a indústria brasileira de motos e por isso tive a chance de conhecer não só a cidade, mas o rio Amazonas, a pororoca, o encontro das águas, peixes enormes (e deliciosos), como também a história e grandeza da produção brasileira de motos.

Desde a minha primeira visita como jornalista, em 1992, até esta ocasião a cidade cresceu muito, a economia sofreu vários sobressaltos e novas marcas chegaram ao mercado. E foi para falar de mercado que visitei mais uma vez a calorosa (literalmente) Manaus. A convite da Abraciclo fui participar do evento de apresentação dos dados do primeiro semestre e, de quebra, conhecer algumas fábricas.

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Realmente uma mente brilhante. (Selfie: Tite)

O mercado de motos e de bicicleta está crescendo de forma gradual e saudável. Para o segmento de moto, que já atingiu 2,1 milhões em 2011, falar em 1,3 milhão pode parecer pouco, mas é muito se comparado com o terrível ano de 2017 quando bateu em 883 mil.

A maior preocupação do setor foi escancarada pelo presidente da FIEAM – Federação das Indústrias do Estado da Amazônia – Antônio Silva. Ele deixou claro que o Polo Industrial de Manaus (PIM) está trabalhando sob liminar, porque o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer estender a isenção de IPI (imposto sobre Produtos Industrializados) para as fábricas instaladas em qualquer canto do Brasil, ameaçando a subsistência do PIM. Uma medida visivelmente eleitoreira para arrefecer os efeitos de uma crise mundial.

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Números do mercado desde 2011: altos e baixos. 

Ou seja, todo investimento feito nas instalações em Manaus pode virar pó e causar um tremendo colapso sócio-econômico em toda região, que gera cerca de 52 bilhões de Reais por ano e mantém 105.000 postos de trabalho direto.

Tente imaginar o que seria de Manaus sem o PIM. Nos anos 1980 a região foi considerada “zona franca”, o que permitia vender produtos importados com isenção de impostos. Era a festa de quem queria eletrônicos bem mais barato do que nas lojas fora da zona franca. Paralelamente o governo federal incentivou por meio de todo tipo de subsídio a instalação de fábricas do setor automotivo. Foi onde a indústria de motos prosperou.

A implantação da ZFM foi em 1967, em pleno regime militar, que tinha como objetivo incentivar o crescimento e o desenvolvimento de uma região que já tinha sido o umbigo do Brasil durante o ciclo de ouro da borracha. A ZFM não se restringe somente ao Estado do Amazonas, mas vai muito além e atinge também Amapá, Rondônia, Roraima e Acre.

A ideia original era também reduzir as diferenças sociais entre os Estados da Amazônia e os do Sul/Sudeste. Hoje a ZFM conta com 600 indústrias e emprega cerca de meio milhão de pessoas.

Deixando a batatada do Paulo Guedes de lado, os setores de bike e moto estão saudáveis, empregando e gerando receita. É só o governo não atrapalhar. Mas pode ajudar! Uma proposta que tramita nas esferas estaduais é a isenção de IPVA (imposto sobre propriedade de veículo automotor) das motos até 170cm3. Seria uma forma de reduzir o impacto da inflação no preço das motos pequenas, que são as mais procuradas pelos jovens que estão sem colocação no mercado de trabalho, popular desempregados!

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Da esquerda para direita: Antônio Silva (FIEAM), Paulo Takeuchi e Marcos Fermanian (Abraciclo).(Foto:Tite)

Que a moto é uma ferramenta de inserção social no período durante e pós pandemia não é novidade. É por isso que estava em Manaus: meu artigo sobre o papel da moto durante a pandemia recebeu o prêmio Abraciclo e como forma de agradecimento me enfiaram num avião e levaram pra lá visitar algumas fábricas de motos e bicicleta.

Neste momento a tarefa da Abraciclo é sensibilizar 27 governadores a abrirem mão deste imposto (que na moto é baixo) e buscar sanear suas contas usando responsavelmente os recursos, em vez de descarregar tudo nas costas do contribuinte/eleitor.

Quer saber os números?

As bicicletas devem chegar a 750.000 unidades em 2022, que é uma ninharia perto do tamanho do nosso mercado. Mas devo lembrar que esse número se refere às empresas associadas à Abraciclo, portanto pode ser subnotificado.

As motos devem chegar a 1.320.000 em 2022, que representaria um crescimento de 10,5% em relação à 2021, mas o mais surpreendente veio das elétricas. O setor de bicicletas elétricas (não entram motos, nem scooters) cresceu espantosos 393% se comparado com 2019, com 26 modelos disponíveis e representando 1,6% do total da produção. Aqui devo alertar que este número assombroso é mais fruto de uma base muito baixa do que volume. E mais uma vez alerto que são apenas das marcas associadas à Abraciclo, o que pode ser maior porque muito produto vem direto dos países asiáticos para cá.

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A mais vendida: Honda CG 160 Fan. (Divulgação).

No campo das estatísticas, o mercado continua monopolista, com a Honda detendo a fatia de 79,8% do mercado e dona da moto mais vendida, a CG 160 Fan, enquanto a Yamaha mantém o segundo lugar com 16,2%. Isso significa que as outras oito marcas instaladas no Polo Industrial de Manaus somam 4% do mercado.

Dentro da categoria “e outras” a BMW conseguiu os melhores resultados no primeiro semestre de 2022, seguida bem de perto pela JTZ (que monta Hao Jue e Kymco) e pela Kawasaki.

Visitas ilustres

Como parte do meu prêmio Abraciclo de melhor artigo inscrito no concurso, tive direito de escolher três fábricas de Manaus para visitar. Minha primeira vez na cidade, como jornalista, foi em 1992 e de lá, em 30 anos, voltei tantas vezes que perdi a conta, mas todas elas a convite da Honda. Portanto, foi minha chance de ouro de visitar outras fábricas.

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Na Honda, da esq. para direita: Lourival Barros, eu, Keithy Garcia e Patrícia Quitéria. 

Na minha lista estavam a Honda, Caloi e Kawasaki. Mas ao chegar em Manaus, o meu amigo Afonso Cagnino, executivo de Relações Institucionais da Yamaha, praticamente me sequestrou para visitar também a Yamaha e, assim, acabou com a única folga que eu teria para fazer compras...

Padaria Honda

A primeira vez que visitei a Moto Honda da Amazônia o mercado ainda estava gatinhando. Mesmo assim a fábrica já era quase uma cidade dentro de Manaus. A última visita tinha sido em 2012. Impressionante perceber como a linha de montagem evoluiu em 10 anos. Trata-se de uma fábrica de fato: entra lingote de alumínio e sacos de polímeros de um lado e sai moto do outro. Uma moto a cada 23 segundos! Tipo padaria mesmo.

Aliás, nem vou estender em números e dados da fábrica da Honda, mas para ter uma ideia da dimensão, a padaria localizada no refeitório produz 16.000 pãezinhos por dia! Ou tem muita gente trabalhando lá dentro, ou o povo gosta muito de pãozinho!

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Linha de montagem da Honda: limpa, silenciosa e climatizada. Lourival, eu e Chafic Baydoun. (Foto: Honda)

O incrível das linhas de montagem da Honda é que quase não se vê gente. Tem muito processo automatizado, mas o número de contratações só aumenta. Sinal que alguns processos exigem menos pessoas, mas o aumento da produção gera mais postos de trabalho. Outra característica da linha é o conforto térmico e a limpeza. Quem conhece Manaus sabe que o clima só é agradável se você for um réptil pecilotérmico, mas pra seres humanos é cruel. Por isso os quatro sites da Honda são 90% climatizados. Em termos de limpeza, me sentiria muito mais seguro em fazer uma cirurgia de ponte de safena no chão da Honda do que em muitos hospitais!

Yamaha

Quando a Yamaha chegou ao Polo Industrial de Manaus a Honda já nadava de braçada naquelas águas. Por isso a unidade é naturalmente menor, mas não menos intensa. Também é uma fábrica de fato: entra matéria-prima pela portaria e saem motos embaladas no final da linha.

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Fábrica da Yamaha: espaço para produzir muito mais! (Divulgação)

Como a visita foi meio às pressas, fizemos um roteiro mais curto, mas pude conhecer a usinagem, processo que só fábricas de fato desenvolvem. As linhas são mais presenciais e vê-se mais pessoas trabalhando e menos mecanização. O que não interfere na qualidade final do produto. Não canso de repetir que nossas motos feitas nas duas grandes fábricas têm nível de qualidade tão alto que podem ser vendidas em qualquer mercado do mundo.

Tanto Yamaha quanto Honda têm produção muito verticalizada, ou seja, que dependem muito pouco de fornecedores. Nos modelos básicos a verticalização é de mais de 90% porque as fábricas ainda não fazem pneus nem baterias. Por enquanto.

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Da esquerda para direita: Rafael Lourenço, eu e Afonso Cagnino.

Verde madura

Depois de circular pelas linhas de montagem das duas gigantes do mercado, fiz questão de conhecer uma unidade que trabalha inteiramente em PPB – Processo Produtivo Básico. Dentro deste princípio os componentes chegam de várias partes do mundo e são montadas aqui. É tipo um enorme kit Tamya de plastimodelismo.

Por isso parem com essa bobagem de chamar todas as fábricas de “montadoras”, porque existem as fábricas, que transformam matéria-prima em produto final; e existem as montadoras, que recebem os componentes e aqui juntam, colam, aparafusam e soldam para virar uma moto.

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A bela vista ao lado da planta da Kawasaki, às margens do rio Negro. (Foto: Tite)

Meus sinceros parabéns ao executivo que escolheu o local da planta da Kawasaki. Fica às margens do rio Negro, exatamente onde ele se encontra com o rio Solimões, gerando o mundialmente conhecido “encontro das águas” (lembrei da minha professorinha).

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Da esquerda para direita: Márcia Pontes (Abraciclo), Satoshi Fujimoto (Kawasaki), Analuiza Tamura (SD Press) e eu.

Neste cenário tivemos a chance de conhecer a linha de montagem extremamente silenciosa e confortável, porque não tem fornos, nem prensas, nem cadinhos escaldantes com alumínio derretido. É uma estrutura grande, arejada, mas muito produtiva. Nela são montadas desde a queridinha dos jovens a Ninja 400, passando pelo lançamento Z 650SR, pela desejada Z 900RS e até as motocross.

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A Kawasaki é uma marca querida pra mim porque foi minha patrocinadora por três anos!

Fábrica de ciclistas

Uma das fábricas mais antigas do Brasil é de bicicleta. Sim a Caloi iniciou como loja ainda no século 19. Mas a primeira fábrica foi inaugurada em 1945, no bairro paulistano do Brooklin. Coincidentemente era bem perto da minha casa quando eu morei no mesmo bairro. Aliás foi esse o motivo de eu ter escolhido a Caloi: é a marca que participa da minha vida desde que nasci!

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Primeira fábrica da Caloi no Brooklin, do lado da minha casa.

Pouca gente sabe, mas o pioneirismo da Caloi se repetiu ao ser uma das primeiras marcas a se instalar no Polo, em 1975, antes mesmo da Honda! E a idade se revela na linha de montagem. Claro que é uma instalação que acusa o peso da idade, mas o que chama atenção é a produção totalmente artesanal. São poucos os processos mecanizados.

A maior surpresa aparece no final: o elevadíssimo nível de qualidade e acabamento das bikes. Não é à toa que a fábrica foi escolhida para produzir as bicicletas da Decathlon, empresa francesa de varejo conhecida pelo rigor na contratação de fornecedores. Também produz as famosas Cannondale, GT e Schwinn. Tive a chance de ver o rigoroso cuidado técnico para montar uma Cannondale de R$ 40 mil!

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Na fábrica de ciclistas, da esquerda para a direita: Márcia Pontes (Abraciclo), eu e André Luiz (Caloi).

O parque instalado tem capacidade para produzir até 600.000 bikes por ano, mas hoje a realidade é de 420.000/ano, suficientes para dar o título de maior fabricante de bicicletas fora da Ásia. Nessa planta que visitei são produzidas bikes de aço e alumínio, que hoje representa a maior parte da linha, mas em breve pode começar a produzir também as sofisticadas bikes de carbono.

Isso porque aquela fábrica inaugural já saiu das mãos da família Caloi há muitos anos. Teve 70% comprada pela Canadense Dorel, mas também já mudou de novo. Hoje ela pertence à holandesa PON Holdings, maior fabricante de bicicletas do mundo, dona das marcas Gazelle, Santa Cruz, Cervélo, entre outras. Ou seja, hoje temos uma fábrica em Manaus que irá produzir algumas das melhores bicicletas do mundo! Bem aqui do lado!

Para saber os dados completos basta clicar AQUI.

publicado por motite às 01:36
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Quarta-feira, 18 de Março de 2009

Manaus, arte, cultura e moto!

Dureza de vida: essa é a piscina de borda infinita do Hotel Tropical... Foto: Tite

 

Cada vez que alguma fábrica nos convida para visitar a linha de montagem em Manaus o ritual é meio parecido. Minha primeira vez na capital amazonense foi em 1983 e desde então voltei lá várias vezes. Na época da proibição de importação essa era nossa única chance de comprar as muambas tão desejadas e inacessíveis. Lembro uma vez de ter comprado uma dúzia de potes de caviar, manteigas francesas e bolachas italianas e quase morri de tanto comer. Minha barriga deve ter estranhado tamanho luxo e mandou tudo de volta pra privada do hotel!

 

Noutra ocasião rolou aquele famoso assalto que resultou na "Vingança Manauara" que vc encontra aqui mesmo neste bologui. Mas essa mais recente, da semana passada foi marcante.

 

Primeiro porque nunca peguei tanta chuva. Como já expliquei, existem dois climas distintos em Manaus: um que chove todo dia e outro que chove o dia todo! Acho que peguei um que chove todo dia o dia todo! Só tivemos dois períodos livres e nos dois choveu pacas. Pacas, jacarés, piranhas, choveu de tudo!

 

Mas também tivemos a companhia ilustres da banda Iron Maiden (que eu nem sabia da existência) e do príncipe Chaves (segundo Lula), o catador de barangas da realeza britânica. Mr. Tampax inverteu o conto de fadas: o sapo beijou a plebéia e casaram!

 

(fausto macieira versão iron transformer. Foto: Tite)

 

Ficamos duas noites dividindo o lobby e o restaurante do hotel com os metaleiros feitos de ferro. Incrível que o vocalista tem cara de tiozinho: cabelo curto, calça de preguinha e camisa de botão. Jamais imaginaria que aquele sujeito era um metaleiro! Infelizmente os seguranças não deixaram a gente tirar fotos, mas não sou chegado a idolatria, então... que se reiem!

 

Na programação estava incluído um passeio de barco para ver o desencontro das águas dos rios Negro e Solimões. Imperdível... se tivesse sol, porque eu já vi esse encontro tantas vezes que sou capaz de dar a cadeia de carbono de cada um dos rios!

 

(Jogaram leite no café! Foto:Tite)

 

E, claro, não podia faltar a visita à fábrica!!! Dessa vez com extensão ao laboratório de emissões e controle de qualidade. Acompanhe o report a seguir:

 

 

Linha de montagem
 
Como de praxe, a Honda submeteu os jornalistas à (mais) uma visita à fábrica. Acho que se algum operário faltar eu poderei substituí-lo, de tanto ver aqueles processos todos! Sempre impressiona ver uma fábrica que produz uma moto a cada oito segundos. E a cada nova visita aprendemos algo diferente e a fábrica parece ainda maior (como se fosse possível...). Mas desta vez não vimos apenas a fundição, estamparia, pintura etc etc... fomos apresentados pela primeira vez aos laboratórios!
 
(Loompa, Loompa... uma moto a cada 8 segundos! Foto: Tite)
 
A preocupação recente da Honda em nível mundial é com o meio ambiente. Todas as fábricas e produtos da marca refletem essa ideologia. Por exemplo, no novo processo de pintura, desenvolvido no Brasil, a redução de emissão de material foi da ordem de 60%, graças a um sistema que economiza na quantidade da tinta e na eliminação de alguns componentes químicos.
 
Além dos laboratórios de emissões (que já conhecíamos) fomos enfiar nossos narizes nos laboratórios de controle de qualidade. Pudemos ver e mexer em vários “ímetros”, “ógrafos” e “ômetros” que analisam até a cor da cueca do engenheiro.
 
(enfeites de natal? aqui é onde dão a pintada no tanque, ai! Foto: Tite)
 
Só que percebi algo diferente nesta visita. A cada “ômetro” novo que nos apresentava, o simpático guia acrescentava o preço da traquitana. “Este aqui custou 2 milhões, aquele ali um milhão, o outro 500 mil” e assim por diante. Só então entendi o motivo de tanto cifrão, além de me deixar com depressão profunda por não poder comprar nem um termômetro de mercúrio: era uma direta na jugular de alguns jornalistas que saíram deitando elogios sobre a qualidade de algumas motos chinesas que estão sendo comercializadas no Brasil.
 
Ao ver aquela linha de montagem quase 100% verticalizada – fazem até a espuma do banco! – e os caríssimos aparelhos de análise de qualidade fica evidente o recado: “experimente visitar uma destas novas marcas para avaliar se o investimento chega perto”. Aliás, apenas Honda e Yamaha contam com laboratório de emissões no Brasil. Por meio de uma assessoria da Abraciclo, a Honda foi certificada para atender as montadoras associadas.
 
(Tua CG pode estar aqui... Foto: Tite)
 
Só para esclarecer, quando uma marca não tem o laboratório de emissões no Brasil é preciso levar uma comitiva de técnicos brasileiros da Cetesb para o país de origem – com a nossa “álcoolina” na bagagem – e fazer os ensaios lá na China. Já devem estar acostumados com a comida local, au, au!

 

 

publicado por motite às 01:11
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Terça-feira, 6 de Janeiro de 2009

Contos descontados - vingança manauara

 

(Manaus, no coração da Amazônia, cheia de surpresas.)

 

Como o leitor sabe, as fábricas de motos instaladas no Brasil têm parque industrial instalado na Zona Franca de Manaus. Isso é resquício do regime militar, por meio da amaldiçoada Suframa, que pretendia “colonizar” a Amazônia propondo incentivos fiscais ad eternum às empresas.
 
Normalmente nenhum ser humano criado fora da Amazônia gostaria de trabalhar lá, afinal só samambaias e fungos apreciam o tempo quente e úmido. Em Manaus o clima é divido em dois períodos: um que chove todo dia e outro que chove o dia todo. Para secar uma calça jeans é preciso jogar em uma secadora sob risco de usar uma calça esverdeada decorada por liquens coloridos.
 
Como política de relacionamento, as montadoras de motos instaladas lá costumam convidar os jornalistas para visitarem as linhas de montagem ou testar algum produto pré-lançamento. Hoje em dia não é lá um passeio que estaria na lista de prioridade de viagem de férias, mas nos anos 80 era a única forma de adquirir produtos importados sem recorrer a contrabandistas nem atazanar a vida dos amigos que viajavam ao exterior.
 
- Oi, Alcides, soube que você vai pra Miami!
 
- Sim... porquê?
 
- Você pode trazer um vídeo-cassete de quatro cabeças estéreo e duas caixas de som de 70Watts? Ah, e aproveita para levar um berimbau, carne seca e uma goiabada cascão pra minha tia Miriã que mora em Boston!
 
Era a fase pré-Collor da abertura das importações. Por isso, quando pintava algum convite para ir a Manaus rolava até briga na redação. Era a chance de comprar batatas fritas Pringels, chocolates suíços, caviar russo e, claro, algum equipamento eletroeletrônico.
 
Minha primeira vez foi em 1988, quando me fartei de comidinhas gringas e trouxe um videocassete na mala. Já na segunda vez foi 1993, já no período pós-abertura comercial, o que transformou a zona franca em uma cidade fantasma. Não havia mais a cobiça pelos eletrônicos inacessíveis, mesmo assim compensava comprar até produtos feitos em Manaus por causa da isenção fiscal.
 
Assim, desci do avião sob o choque do calor e umidade típicos, disposto a adquirir apenas dois aparelhos: um telefone celular (oh!) e outro videocassete, dessa vez de quatro cabeças, estéreo, porque era mais moderno! Desde a primeira vez que ouvi falar em telefone portátil achei que era um sonho distante e impossível. Até que vi um ao vivo e achei que finalmente tínhamos entrado século XX. Imagine, telefonar na rua, no shopping-center, na estrada, no carro (bons tempos...)!
 
Visitei Manaus em dois momentos bem distintos da economia, o primeiro em 1988, quando a inflação era tão absurda que usávamos moedas virtuais sob siglas como ORTN, UFs etc. Na segunda visita a economia estava mais estável. O problema é que fiquei traumatizado pela primeira visita porque as lojas não aceitavam cartão de crédito, muito menos cheques, porque UM dia de inflação já corroia parte do lucro, imagine 30 dias!!!
 
Por conta desse trauma, na segunda visita levei um maço de dinheiro. Vivo. Vivinho da silva. Tão vivo que facilmente saía correndo das minhas mãos e ganhava a liberdade. Sobretudo em bobagens que nunca usei na vida, como abridor de lata a pilha... coisas de Zona Franca!
 
Como nossa programação foi muito apertada, sobraria apenas o sábado para ir às compras. E as lojas fechavam ao meio-dia. Peguei um táxi acompanhado de Josias Silveira (Duas Rodas) e Fernando Calmon (na época, Auto Esporte), dois dos maiores especialistas em tudo que já conheci na vida. No caminho pra ZFM fiz uma pergunta da qual me arrependi amargamente:
 
- Qual aparelho de celular vocês acham que devo comprar?
 
Durante os 25 minutos de viagem tive uma aula de telefonia celular, comparativo entre aparelhos, companhias prestadoras de serviço bla-bla-bla... até o motorista se meteu na conversa. Foi assim que me decidi pelo imbatível, moderno e super portátil Motorola PT 550. Com duas baterias de reserva. O aparelho era grande e desengonçado, mesmo assim muita gente metia aquela geringonça na cintura como se fosse um Colt 44 do caubói mais perigoso do Oeste. Pelo menos em termos de peso era bem próximo ao do Colt de verdade!
 
Aquela trapizonga custou-me algo equivalente a 500 dólares, que paguei em dinheiro. Hoje em dia nem um iPhone é tão caro! Resolvida essa parte corri atrás do videocassete. Faltava pouco para meio-dia e comecei a me desesperar porque não achava AQUELE modelo. E tinha de ser estéreo para representar um upgrade em relação ao anterior. Até que fui abordado por um sujeito, dentro de uma loja, com a garantia de conseguir o aparelho em outra loja ali pertinho.
 
Na minha afobação de conseguir o aparelho antes de meio-dia não notei no sujeito. Aquilo era mais suspeito do que freira de biquíni. Quando entramos num beco percebi que tinha caído na arapuca. Virei pra trás e tinha não mais um, mas sim dois sujeitos, um deles com um daqueles facões de matuto na mão. Nem precisou dizer palavra, adiantei:
 
- Vocês aqui na zona franca têm uma metodologia estranha de vendas...
 
O mais baixo, com cara de boto cor de rosa, abriu a carteira e quase levou um choque: tinha uns 500 reais, grana equivalente a 1000 dólares em hoje. O mais alto e gordo, com cara de beluga cor de rosa, apontou pro meu tênis novinho e mandou tirar. E eu:
 
- Nem a pau! Está fazendo 40ºC e o asfalto está fervendo, pega a grana e compra um!
 
O baixinho tirou a grana e jogou a carteira longe. Quando fui buscar os caras desaparecerem.
 
Lá estava eu, literalmente em um beco sem saída, sem grana e sem moral! Levaram só o dinheiro. Deixaram o celular, a máquina fotográfica e, felizmente, meus tênis, porque tive de andar a pé sob o sol tórrido manauara até a delegacia. Foi nesse calvário que comecei a bolar minha vingança.
 
Na delegacia estava apenas um plantonista e um escrivão. Suavam mais que tampa de marmita, mesmo com o preguiçoso ventilador se esforçando para espalhar mais o calor. O escrivão começou a tomar o depoimento e quando ouviu a descrição dos botos matou a charada:
 
- Ah, conheço esses dois, eles ficam dentro das lojas caçando os otá..., digo, vítimas!
 
- Legal – argumentei – então vamos pegar a viatura, sair em diligência e dar um flagrante nos meliantes! (adoro usar esses termos técnicos com policiais).
 
O escrivão usou uma série de desculpas esfarrapadas para não sair, alegou que não tinha contingente, nem viatura etc e tal. Diante do muxoxo oficial e da cara do delegado plantonista saquei que tinha caído na segunda arapuca. Se eles conheciam os bandidos era óbvio que bastava eu virar as costas para que a dupla fosse pegar a “comissão” deles. Foi aí que veio a vingança. Finalmente o delegado, entre goles em um copo de guaraná gelado, fez a pergunta que eu estava aguardando:
 
- Quanto dinheiro você tinha na carteira?
 
- Seis mil reais!
 
O delegado cuspiu metade do guaraná, o escrivão deu um pulo da cadeira e arregalou os olhos:
 
- Mas porque você estava com tanto dinheiro assim, homem?
 
- Porque na última vez que visitei Manaus ninguém aceitava cartão nem cheque!
 
Afoito, o escrivão abriu a carteira, pegou um trocado e me deu:
 
- Ó, aqui tem uma grana pro táxi até o centro, lá você pega um ônibus pro hotel! Tchau e obrigado por registrar a ocorrência!
 
Eles praticamente me expulsaram da delegacia a pontapé!
 
Já no ar condicionado do meu enorme quarto no hotel Tropical, fiquei deitado na cama king-size imaginando o tanto de cascudos que aqueles dois ladrões levaram para confessar onde estavam os outros 5.500 reais que pegaram do trouxa paulista! 

 

 

publicado por motite às 16:50
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