(Até na publicidade incentivam o uso de película escura)
Amigo leitor, quero ser fora-da-lei. Quero falar no celular enquanto dirijo. Quero estuprar minha secretária gostosa dentro do carro em praça pública. Quero fazer um seqüestro relâmpago e ficar rodando com a vítima por vários caixas eletrônicos sem ninguém perceber. Quero também tirar meleca do nariz no trânsito e quero jogar meu carro em cima dos pedestres quando estiver passando no farol fechado.
Pra fazer tudo isso sem ser incomodado só preciso mandar colar a película escura com 5% de transparência nos vidros do meu carro. Pelo menos essa é a receita que os motoristas brasileiros estão usando largamente, desde que trouxeram esse produto pro mercado.
A película solar, conhecida popularmente como insulfime, nasceu para ser usada em construção civil, sobretudo nos países de clima quente, para refratar parte da luz do sol nas grandes áreas envidraçadas. Logo depois começou a ser usada em veículos com o mesmo propósito de reduzir a temperatura interna. Até que chegou no Brasil...
Ah, Brasil, esse país onde tudo é ao contrário! Aqui a película logo virou sinônimo de privacidade e segurança. Num país no qual a segurança pública é apenas um nome no papel para gerar burocracia, cada um cuida do próprio umbigo, mesmo que isso signifique detonar umbigos alheios. Nessa filosofia do “Deus criou a vida pra que cada um cuide da sua”, moradores fazem lombadas por conta própria, instalam guaritas na calçada impedindo a passagem de pedestre e abusam da película solar mais escura possível, mesmo que naquela coisa abstrata chamada Lei o mínimo permitido seja 75% de transparência.
Vejamos os argumentos a favor da película escura mais usados pelos defensores dessa praga:
1) Reduz a insolação e aumenta o conforto térmico. É a ÚNICA argumentação válida. Mesmo assim, o ar-condicionado serve justamente pra isso.
2) Aumenta a segurança, sobretudo de mulheres, porque o meliante não pode ver se o motorista é masculino ou feminino. Totalmente inválida, esfarrapada e comprovadamente falsa. Recentemente a Rede Globo flagrou uma cena típica paulistana: durante um engarrafamento quatro mulheres sofreram saques em um arrastão relâmpago. TODAS (100% da amostragem) estavam em carros com vidros “filmados”, que não impediram os trombadinhas de quebrarem os vidros e levarem as bolsas. Portanto, essa teoria é falaciosa, porque bandido é fora-da-lei, mas não é burro e ele olha através do pára-brisa, que não pode (ou não deveria) receber a tal película.
(quem está dentro não quer aparecer)
3) Aumenta a privacidade, quem está fora não vê quem está dentro do carro. Conversinha mole da pior espécie. A menos que sejamos uma população de loucos insanos, baba-ovos de celebridades essa teoria não pode ser levada a sério. Bom, numa cultura que celebra ex-Big Brother como “nossos heróis”, sou obrigado a concordar que é melhor ficar escondido. Mas espera aí: o sonho de toda baranga e lavador de carro não é virar celebridade? Então pra quê se esconder justamente quando alcança o objetivo? E para derrubar de vez essa teoria recorro à Rede Globo para comprovar que isso é uma grande bobagem. Naquele triste episódio no Rio de Janeiro no qual um policial atirou no carro errado e acertou uma criança, um alto-patente da poliça declarou que o policial se confundiu porque “o carro tinha insulfilme e não pôde ver os ocupantes”. Ok, nem todo mundo vai morrer baleado por causa da película, mas da mesma forma que um lado da poliça defende a película como “proteção”, outra parte já declarou que o filme dificulta a avaliação do policial, que não consegue identificar quem está dentro do carro. Inclusive os bandidos preferem roubar carros filmados por dificultar a identificação dos ocupantes. O mesmo motivo leva os bandidos a escolherem carros filmados para executar seqüestros relâmpagos, afinal podem passear à vontade com a arma apontada pra cabeça da vítima porque ninguém está vendo mesmo! Afinal: aonde está essa segurança defendida pelos usuários de película?
Para finalizar, associada à outra praga do trânsito, o telefone celular, a película permite que motoristas falem livremente, quando, onde e quanto quiser, enquanto dirigem porque nenhum agente fiscalizador será capaz de perceber, já que está tudo escuro mesmo.
Além de toda essa exposição de motivos, a redução da transparência, sobretudo à noite dificulta demais a visão de quem está dirigindo. Ainda mais com uma população de motoristas que confunde lanterna com farol baixo. Ninguém é capaz de provar cientificamente que a película não reduz a acuidade visual. É inimaginável aceitar que essa praga continue aumentando sem que nenhum administrador público perceba o real risco que representa.
Para piorar, as fábricas agora estão usando película escura nas fotos de promoção de seus carros! Peugeot e Renault só publicam fotos de publicidade com carros “filmados”. Recentemente no lançamento do VW Fox segunda geração, durante a festa de apresentação, eu cutuquei o meu amigo Bob Sharp e comentei “repare que todos os carros estão com película, é a fábrica incentivando o errado”. Seria o equivalente à Honda veicular anúncio na TV com os motociclistas todos sem capacete!
Quer saber do pior? Se você, amigo leitor motociclista, for parado em uma blitz policial usando um capacete com viseira escura, levarás uma multa de mais de R$ 500,00, acrescida da apreensão da carteira de motociclista/motorista. Acredita? E quem pode falar em Justiça num país deste???
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