Um ícone em duas rodas: a Fat Boy é um dos modelos mais vendidos da marca no mundo.
Das telas do cinema para a garagem da sua casa, esta é a nova Fat Boy 114
Por Tite Simões
Fotos: Divulgação e Luna B. Simões
Antes de mais nada é preciso ser realista: comprar uma Harley não é uma decisão racional, mas 100% emotiva. Isso é ruim? Nada disso, é a confirmação de um dos mais eficientes trabalhos de construção de imagem do século 20. A marca Harley-Davidson saiu de duas falências para um dos maiores ícones da história moderna. O sucesso dessa construção passa obrigatoriamente pela emoção. E nenhum modelo é mais icônico do que a Fat Boy.
A história da recuperação da Harley deve muito à Fat Boy, modelo que foi parar nas telas de cinema, pilotada pelo exterminador Arnold Schwartzenegger na sequência Terminator 2, de 1991. Aquela Fat ainda tinha motor arrefecido a ar, com motor de 1.337 cm3, vibrante e barulhento. Felizmente ela evoluiu muito.
Em movimento nas ruas da Ilha Porchat: fácil dominar os 317 kg em ordem de marcha. (Foto: Luna B. Simões)
A Fat Boy atual só tem a mesma aparência: grande, mas fácil de pilotar; clássica, mas com tecnologia; comprida, mas estável em curvas. Para entender a longevidade desse modelo, fomos dar uma volta ao litoral de São Paulo, visitar um local que também já foi clássico, viveu o apogeu e uma falência e agora está ressurgida em grande estilo: a Ilha Porchat, em São Vicente.
Pela segunda vez na vida peguei uma Harley absolutamente zero km. A primeira vez foi em 1991! Dessa vez montei em uma Fat Boy modelo 2022 com apenas 4 km rodados no hodômetro. Pensa numa responsabilidade! Ante de acionar o motor – por chave presencial, porque felizmente sumiu aquele seletor que parecia um regulador de fogão a gás – observei que o filtro de ar é de elemento seco. Como já passei um sufoco danado com uma Harley debaixo de um mega toró, questionei sobre o acessório necessário, chamado de “meia”. Sim, ele vem e deve ficar muito bem guardado sob o banco! É necessário porque o filtro de papel não pode molhar, senão a moto – literalmente – afoga.
O melhor jeito de curtir a Fat Boy é na estrada, sem limites! (Foto: Luna B. Simões)
Sou da época que Harley era raiz. Nada de coxins, peças usinadas, motor barulhento e beberrão. Esquece! Apertei o botão esperando o chacoalho típico e... nada! A vibração ainda existe, claro, não tem como deslocar 1.868 cm3 sem vibrar. Não existe mágica. Mas essa vibração é mais sensível em marcha lenta, principalmente nos espelhos retrovisores. Em movimento a vibração reduz muito.
Os primeiros quilômetros foram logo de cara na assustadora Marginal Pinheiros, em pleno rush e tive a oportunidade de infernizar um batalhão de motoboys. Ou entupindo o corredor que nem uma rolha de poço, ou grudado neles no mesmo ritmo. Sim, porque depois de perceber que os 317 Kg (em ordem de marcha) ficam bem “controláveis” mesmo no caos urbano, passei a pilotar normalmente como se fosse uma moto “normal”.
Muita gente questiona se uma Harley pode ser a moto de uso diário em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Nada demais, conheço muitos donos de Harley que rodam como se estivesse em uma prosaica utilitária. Só não vá esperar uma tremenda economia de gasolina, nem saia muito atrasado. Também jamais saia de bermudas, porque o calor gerado por essa usina de 95CV vai fritar qualquer parte do corpo que encostar.
Tanque de 18,9 litros e velocímetro com display multifunção. (Foto: Tite)
Get your kicks on route
Em qualquer estrada que quiser, porque o habitat dessa Gorda é uma bela e interminável rodovia. Ela foi feita para engolir estradas. Aliás, se quiser uma experiência de vida de grande inspiração vá até a Califórnia e alugue uma Harley para fazer o trecho histórico da mítica e celebrada Rota 66. Esqueça os pacotes, vá por conta própria, pendure uma bandeira dos Estados Unidos e veja como é ser bem tratado no exterior. Os caminhoneiros todos te acenam!
Achei meio exagerada a medida do pneu traseiro: 240 de largura é mais do que muito carro por aí. Precisa um pneu tão largo? Não, claro que não, mas é de novo o pessoal do marketing infernizando a vida da turma de engenharia. Os americanos começaram com essa mania de aumentar a largura dos pneus traseiros a ponto de modificar a balança traseira para caber monstruosidades de quase 300mm. Não tem qualquer justificativa técnica, porque pneus de motos não arrastam para os lados, não tem necessidade de largura. Pneus de moto precisam ângulo de inclinação, mas este é um assunto que os americanos não gostam, senão não veríamos motos touring com pneus de carro na roda traseira.
A saída de linha da V-Rod, que já nasceu com pneuzão, forçou a marca a introduzir essa tendência nos modelos mais roadsters. Hoje isso significa uma preocupação a mais: onde achar pneus de reposição com essa medida absurda? Fabricado pela Michelin, os pneus da Harley recebem a marca Harley-Davidson em baixo relevo nas laterais. Uma das reclamações ouvidas atualmente é a dificuldade em encontrar os pneus originais e a saída tem sido recorrer às marcas concorrentes para reposição.
Roda de liga leve com raios: mudança necessária para melhorar o conforto. (Foto: Tite)
Em linha reta é uma beleza. A posição de pilotagem da Fat Boy não mudou muito desde os vôos do Schwarzenegger: braços abertos como que recebendo a estrada direto no coração, pernas esticadas pra frente, pés repousados em plataformas generosas e banco largo. Minha velha coluna não sentia muitas saudades das Harley, mas mudou muita coisa. Esqueça as motos duras e secas, esta Fat Boy tem uma suspensão só “parecida” com as primeiras, porque é tudo novo e pode ser ajustada.
No primeiro buraco que peguei fiquei esperando a pancada seca e... nada! Absorveu de boas. Também o pneu traseiro largo ajuda nessa missão de dissipar o impacto, apesar de o perfil ser baixo (240/40-18). Bom, um jogo de pneus com apenas 15 km de vida é sempre delicioso.
Nesta primeira estrada levei minha filha na garupa para ajudar nas fotos. Ela agradeceu pelo sissy-bar que veio na moto avaliada, mas que é acessório. Aconselho fortemente a incluir na lista de compra, porque faz toda diferença pra quem vai pendurado atrás. Se um dia eu tivesse a minha Fat Boy arrancaria fora o banco do garupa (sai fácil), porque ela fica linda com apenas o banco do piloto.
O modelo avaliado estava equipado com o necessário sissy-bar. (Foto: Tite)
Este trecho de estrada pela rodovia dos Imigrantes é ótimo para alguns testes. O primeiro é a grande eficiência do câmbio de seis marchas. A sexta é overdrive, só pra ajudar a economizar. Nesta marcha a 100 km/h o conta-giros revela meros 2.250 RPM, enquanto a 120 km/h nem sobe muito: 2.750 RPM. Lembre-se que este motorzão tem potência máxima a 4.750 RPM e torque máximo (absurdos 16 Kgf.m) a meros 3.000 RPM. Não fiz medição de consumo – quem se importa? – mas o tanque de 18,9 litros projeta uma autonomia de cerca de 350 km sem erro.
Aí você vai ver as fotos e pensar “esse cara tá louco, não tem conta-giros!”. Tem sim. O imenso velocímetro no tanque abriga um pequeno display com várias opções de informação, incluindo rotação do motor, autonomia, hodômetros parcial, e total, hora, entre outros.
Tomada para conectar o carregador de bateria: ideia ótima para quando fica parada por muito tempo. (Foto: Tite)
Ao contrário das motos japonesas, na Harley o escalonamento de marchas é bem espaçado e não é raro esquecer de engatar a sexta. Por isso, uma das informações do display é a marcha engatada. Acredite, ajuda muito!
Um dos pontos altos é realmente o motor. Batizado (sim a Harley nomeia também os motores) de Milwaukee Eight é silencioso e tem uma retomada de velocidade deliciosa. Na estrada quase não sai da sexta marcha. Ainda bem, porque o curso da alavanca de câmbio é muito longo e a embreagem não é a coisa mais macia do mundo. No trânsito intenso, quando o motor esquenta, fica muito difícil engatar o ponto-morto. Precisa insistir.
Então chegou a serra, com todas aquelas curvas. E minha impressão sobre o pneu traseiro largo se confirmou: ela é pesada para inserir na curva. Tem de usar a técnica de contra-esterço porque só a cintura e as pernas não dão conta. Ainda bem que o guidão largo ajuda. Com as pernas pra frente o piloto não consegue fazer força adutora no tanque e precisa, literalmente, usar o guidão como uma alavanca. Ou diminuir muito a velocidade. Mas pode confiar, porque o limite em curva é bem alto e a moto não balança no meio da curva como faziam suas antecessoras.
Banco largo, macio e pedaleiras de plataforma: para pilotar sem parar. (Foto: Luna B. Simões)
Não exagerei nas curvas porque a moto estava absolutamente zero e fiquei com dor no coração de gastar as pedaleiras. Fiquei bem longe do limite dos pneus. A filha na garupa nem foi o impedimento, porque ela está super acostumada com a insanidade do pai. Foi por dó de estragar as pedaleiras novinhas, cromadas e lindas.
Outra marca registrada da Fat Boy são as rodas “cheias”, de liga leve. Em nome do conforto e maneabilidade, hoje continuam de liga leve, mas com alguns raios. Na verdade, essas rodas cheias eram uma das principais razões para a sensação de “dureza” da Fat Boy. Parecia mesmo que estávamos em uma carroça com rodas de madeira. Perdeu um pouco em tradição, mas ganhou muito no conforto.
Mesmo não sendo um fã de motos custom, poderia rodar por horas nessa Fat Boy, de tanto que ela melhorou em relação às primeiras. Mas acho que a maior conquista veio mesmo da modernização do chassi, suspensões e motor. Definitivamente não vibra mais como antes e o ronco do escapamento original só serve mesmo para tirar a moto da concessionária.
Não dá pra rodar com uma Harley com escape original. Também não é pra estourar os tímpanos de quem está na rua. Entre o silêncio sem graça e as trombetas do apocalipse existem escapes que só engrossam o som original, sem causar estardalhaço. Só uma dica: exposição ao ruído por muito tempo causa surdez permanente! E outras mazelas...
Leve pra casa
Uma das perguntas que mais ouço é justamente se a Harley é muito pesada pra pilotar. Bom, se tiver de empurrar numa subida ou manobrar com o motor desligado, sim, prepare-se pra fazer força bruta. Nada descomunal, mas o que ajuda muito é a pequena altura do banco ao solo, de apenas 675mm. Por isso é preferida por algumas pessoas de pernas curtas. Uma vez em movimento o peso da moto não é problema, deixe que a Física ajude.
Claro que uma moto de mais de 300 kg não foi feita para ser pilotada por iniciantes, mas não é assim tão difícil. Algumas técnicas básicas facilitam muito a pilotagem e hoje já existem instrutores especializados em grandes custom. Posso garantir que é preciso muito mais manha do que força bruta.
Nosso passeio incluiu a subida sinuosa e estreita da Ilha Porchat. E mais uma vez confirmei que esta é uma moto que não gosta muito de curvas de baixa, mas dá pra encarar. Pense no dublê do Arnold Schwarzenegger que teve de se virar pra fazer a moto deitar, pular, saltar, voar etc. Ah, e a moto do filme foi arrematada em leilão, em 2018, por US$ 480 mil! Devia estar inteira!
Esta não chega a tanto. Os valores dependem do pacote de acessórios e até das cores, mas começam em R$ 118.000. As cores disponíveis são a vinho (que eu usei), azul, preta e um interessante verde fosco. E a lista de acessórios é interminável. Um detalhe interessante presente neste modelo é o engate para battery tender, um carregador bem pequeno para alimentar a bateria da moto quando fica parada por muito tempo. O terminal é fácil de acessar e fica bem discreto.
Alguns detalhes que a deixaram moderna, como o farol por Leds, não comprometeu o desenho clássico, porque tiveram a sacada de manter o aspecto arredondado das mais antigas. O mesmo para o velocímetro no tanque, que manteve o padrão, mas recebeu muitas informações. Não gosto da posição, porque é preciso desviar muito o olhar para ver a velocidade, mas admito que tem tudo a ver com a moto.
Ops, aliás, desculpe, classificar a Harley Davidson Fat Boy como moto é quase uma heresia. Ninguém compra esse modelo (e qualquer Harley) pensando na moto. Chega a ser ingênuo pensar na Harley como apenas “uma moto”. O que se adquire na verdade é um estilo de vida.
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