(Insensatez na rede: mas... e se a TUA velocidade matar alguém? vai continuar sorrindo?)
Uma vez li um artigo escrito por uma psicóloga que tentava desvendar o que atraía tantos jovens a correr de Fórmula 1. Era meados dos anos 80, uma época na qual os carros de F-1 eram tão rápidos quanto hoje, mas extremamente frágeis. Entre os anos 70 e 80 foi o período de maior fatalidade na categoria máxima do automobilismo e a mídia já começava a questionar se aquilo era verdadeiramente necessário. Pilotos campeões como Emerson Fittipaldi e Jackie Stewart afirmavam que já começavam a temporada cientes de que pelo menos três colegas não estariam vivos até o final do ano.
Lembro que o artigo, publicado em uma revista inglesa, relacionava algumas suposições, tais como a herança genética masculina. Segundo a autora, o homem sempre foi o responsável pelas atividades de risco da família desde os primórdios da civilização. Eram os homens, geralmente, que caçavam para alimentar, que lutavam em guerras para aumentar suas fronteiras, enfrentavam todo tipo de perigo para prover e manter a família. Quando chegou a era moderna, essa falta de uma atividade de risco empurrou os homens para os chamados “esportes radicais”, incluindo automobilismo, motociclismo, escaladas, surf, asa delta, pára-quedismo etc. Até faz algum sentido!
Mas a autora continuou: segundo ela os pilotos de F-1 eram também infantilizados, porque cresceram cultivando algum tipo de super-herói e acabavam buscando como ideal de vida a própria transformação em um herói. Isso Platão já tinha descrito quatro séculos antes de Cristo, ao afirmar que todo homem sonha ser herói. Não parou aí, segundo ela – que infelizmente não lembro o nome – ainda havia a questão da sexualidade reprimida, ou impotência disfarçada, porque o homem tem um prazer latente de mostrar que é mais potente que o outro. Na impossibilidade de matar o adversário, usava as competições motorizadas para mostrar seu status quo de viril. Inclusive ela chegava a comparar o jorro do champanhe a uma ejaculação masculina. Aí a doutora começou a pirar na batatinha e preferi não ler o resto.
(Fórmula 1 nos anos 70: muitas mortes em nome da paixão pela velocidade)
Lembrei deste artigo porque no período de um mês tive notícia de três motociclistas que morreram em condições semelhantes: correndo em altíssima velocidade na estrada com motos esportivas. Não poderia relatar como aconteceram os acidentes, porque isso não foi divulgado. É interessante como os motociclistas lidam com a morte de um colega. Até pouco tempo atrás este assunto era tabu, mas hoje com o aumento das ocorrências a morte passou a fazer parte das conversas. Porém, sempre como uma fatalidade, um azar.
A morte ainda não é tratada com o devido foco. Vejo na internet, especialmente nas redes sociais e de compartilhamento de vídeos, centenas de filmes com motociclistas em motos esportivas acelerando na estrada em velocidades bem acima de 250 km/h, expondo essa imagem como um troféu. Geralmente acompanhadas de comentários elogiosos à coragem ou à moto ou mesmo a qualidade do filme. Aí quando vem a notícia da morte de um destes motociclistas os comentários são sempre em tom de fatalidade, falta de sorte, mensagens aos familiares, manifestações de dores profundas, mas ninguém se pergunta: por que ele estava na estrada a mais de 250 km/h?
Não vou entrar na mesma vibe despirocada da psicóloga inglesa de tentar analisar estas atitudes sob o ponto de vista psicológico. Não tenho paciência nem PhD para isso. Mas posso tentar desvendar um pouco dessa necessidade quase vital por emoção e risco porque eu mesmo disputei competições motorizadas em várias categorias por 22 anos. Também já corri nas estradas e passei por vários sufocos que ninguém imagina.
(Também já fiz testes em estradas, mas parei em 1992. Depois disso só com a estrada fechada para fotos)
Quando finalmente os portos brasileiros foram abertos aos veículos importados, em 1992, chegaram as motos esportivas de alto desempenho e eu era piloto de teste. Lembro com extrema clareza do dia que decidi não fazer mais testes na estrada depois de levar um susto a 245 km/h, em uma estrada que parecia vazia até surgir uma Kombi do meio do mato. A partir deste dia passei a usar os dados oficiais dos fabricantes que já não eram bestas de declarar valores mascarados por causa dos órgãos de defesa do consumidor. Depois desta experiência defendi o fim dos testes em estrada, embora muitos jornalistas continuem praticando até hoje.
(Continua na próxima semana)
(Lugar de provar alguma coisa é na pista!)
A partir dos anos 60, mais especificamente, depois do golpe de Estado, em 1964, o Brasil se distanciou dos padrões europeus e se aproximou muito dos Estados Unidos. Não só comercialmente, mas culturalmente, importando o chamado American way of life, que nada mais é do que o jeito americano de ser. Se você não acredita, basta avaliar o tipo de roupas que vestíamos nos anos 50, com predominância do linho ou algodão e passamos a usar depois dos anos 60, com a chegada das calças de jeans. Criadas nas primeiras décadas do século 20, estas calças eram para ser resistentes ao uso no campo e às baixas temperaturas. Mesmo assim, no Brasil tropical de 40°C nós utilizamos jeans.
Voltando aos Estados Unidos, a sociedade americana é extremamente consumista e competitiva. Basta ver o número de modalidades competitivas motorizadas. Tem corrida de tudo que é coisa que se move. Se tem motor, tem corrida. Ao importar o modelo americano de comportamento, acabamos por contrair esta sina competitiva, que não se limita apenas às corridas, nem aos bens materiais, mas sobretudo à constante necessidade de mostrar-se melhor do que o outro. E o modelo americano ensina que não basta vencer, mas aniquilar o suposto rival ou concorrente.
Ao longo da vida passamos por uma série de competições, desde a infância dentro da nossa própria casa (o irmão que quer ser mais esperto, o pai que sonha ter um carro melhor do que o do vizinho, a mãe que se orgulha das notas do filho, etc), passando pela escola, onde a competição verdadeira ganha contorno quase programático. Quem não se desesperou ao ver os colegas tirando nota alta. Ou se descabelou quando o professor de educação física elogiou o brutamontes da escola por ter destruído os atacantes do time adversário (e você estava nele). Até em um relacionamento amoroso existe a silenciosa e perene competição pelo poder.
Portanto, a vida nos obriga a encarar competições que nunca pedimos para entrar, mas que somos obrigados a participar. Se nosso modelo de comportamento fosse de uma sociedade mais justa, certamente viveríamos de forma menos competitiva e mais cooperativa, com resultados bem diferentes. A título de exemplo, uma escola de São Paulo adota como filosofia pedagógica a total ausência de provas e, conseqüentemente, de notas. O resultado é uma educação mais cooperativa, onde os alunos se ajudam, sem a interferência da competição por notas.
No livro “Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas”, o autor, Robert Pirsing, relata sua experiência como professor de inglês, quando aboliu as notas. Ele notou que os alunos bons continuaram bons e aqueles que não conseguiam acompanhar a classe, melhoraram notadamente. Tudo porque a competição foi substituída pela cooperação.
O que isso tem a ver com segurança de moto? Muito. Percebi que uma parte dos alunos que se inscrevem no Curso de Pilotagem SpeedMaster, têm como objetivo “dar pau nos caras que viajam nas estradas”. Ou seja, querem competir com os amigos, em viagens pelas estradas.
Esta é uma manifestação natural de quem vive numa sociedade que, a todo momento, nos coloca diante de uma competição. O primeiro grande erro que qualquer motociclista pode cometer é desrespeitar seus próprios limites. Em uma turma de amigos existem motociclistas de diferentes níveis de experiência. Obviamente que alguns conseguem rodar em um ritmo mais veloz e outros não. Mas pergunto: qual a necessidade de provar alguma coisa perante os amigos?
Uma estrada está sujeita às variáveis incontroláveis, além de representar um ato de desrespeito e irresponsabilidade perante os outros usuários. Existem locais próprios para competir e mostrar que é melhor do que os amigos. São normalmente chamados de autódromos, mas motos também podem entrar. Em alguns Estados já existem movimentos para levar o motociclista que gosta de velocidade para a pista, realizando eventos como o Track Day, ou treinos amadores, em autódromos, especialmente para quem não quer (ou não pode) preparar exageradamente a moto. Sempre afirmo aos alunos que o lugar certo de provar alguma coisa é na pista, onde você pode mostrar que é habilidoso e corajoso não só perante seus amigos, mas a todo público presente na arquibancada.
Nosso temperamento competitivo nos leva a outro desvio comportamental: a baixo-estima. Quando alguém se vê obrigado a competir conotra os amigos e, por qualquer razão, “perde”, normalmente vira alvo de gozações. Com a auto-estima abalada, muitas vezes o indivíduo acaba superando seus próprios limites para resgatar o amor próprio e se envolve numa perigosa competição, nem sempre com final glorioso.
A moto já nos proporciona inúmeros prazeres, principalmente na estrada. Não se deixe levar por esta necessidade de competir e comprometer a sua segurança e a dos outros motoristas. Se existe alguma coisa a ser provada é apenas uma só: prove que você tem bom senso.
Apenas mais uma historinha, para encerrar. Quando fui testar pneus na Espanha percebi que os mecânicos estavam cronometrando as voltas de todos os pilotos e jornalistas. O mais rápido foi o ex-piloto do Mundial de Velocidade e Superbike, o belga Stephane Mertens, ex-campeão mundial de endurance. O segundo mais rápido foi um tímido jornalista alemão, da revista Das Motorrad, apenas dois décimos de segundo mais lento. Quando conversei com ele, perguntei qual a experiência em competições. E ele respondeu: “nenhuma, nunca corri”. E ainda insisti: “mas você pretende correr oficialmente?”. E ele: “eu gosto muito de velocidade e de moto, amo correr de moto, mas detesto competir, porque não preciso provar nada para ninguém”.
(alguém notou algo estranho nessa foto?)
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