Quis o destino que eu nascesse no Brasil. E bem entre as duas primeiras conquistas da Copa do Mundo de Futebol entre 1958 e 1962. Nasci no momento mais futebolístico do País. E ainda vi a Copa de 1970 inteira, com transmissão ao vivo e em cores! Foi uma explosão de alegria tão contagiante que só conseguia me imaginar sendo jogador de futebol.
Minha carreira não deslanchou pelo motivo mais elementar possível: eu jamais consegui jogar futebol. Até tentei, afinal era uma instituição nacional e vivíamos o momento de maior ufanismo da história. Pra frente Brasil, salve a Seleção!
Hoje se alguém cantar "Noventa milhões em ação" já vão desconfiar que é desvio de verba e acabar em CPI.
- Senhores, acabamos de descobrir que foram desviados 90 milhões!
- Como? Verba de campanha?
- Não, parece que foi em ações ao portador...
Cresci na fase de ouro do futebol brasileiro, mas sempre fui uma verdadeira negação neste esporte. Para complicar nasci corintiano na época que o time passou 23 anos sem conquistar um título. Quando eu tinha entre 6 e 12 anos de idade a frase que eu mais odiava a ponto de querer matar era "Ah, você nunca viu seu time ser campeão"... culpa do Santos e do Pelé!
Até frequentei estádios, vi jogos ao vivo, conheci jogadores porque meu pai, ex-jogador, conhecia todo mundo. A gente chegava nos estádios e os porteiros cumprimentavam, deixavam entrar sem pagar e ainda descolavam um lugar especial. Vi treinos no Parque São Jorge, fui sócio do Corinthians, mas não conseguia jogar futebol nem por mágica.
Para minha sorte, em 1972, o Emerson Fittipaldi foi campeão mundial de Fórmula 1 e o automobilismo entrou para o cardápio de paixão nacional. Eu estava a salvo! Podia falar de outro assunto que não tivesse bola no meio e nunca mais assisti um jogo de futebol no estádio.
Na escola ainda era um inferno, porque os meninos eram praticamente obrigados a jogar futebol. Eu tinha vontade de gritar "eu odeio futebol!!!", mas isso soaria pior que comunismo. E olha que a época era especialmente perigosa nos temas políticos.
Era constrangedor me ver jogando. Eu corria de um lado pra outro rezando pra ninguém me passar a bola e se por acaso ela aparecesse na minha frente dava um chute de bico e mandava pro espaço. Como todo jogador sem jeito, minha sina era ir para o gol, o que piorava ainda mais. Jogando bola eu era tão ajeitadinho quanto uma casa de taipa. Até que o professor de educação física decidiu me tirar do time antes que eu acabasse morto e levou para a equipe de salto.
Magro como um maratonista etíope, até que fui bem nos saltos triplos e consegui me livrar pra sempre do futebol!
Quer dizer, não totalmente, porque na faculdade surgiu essa ideia idiota de jogar futebol. Eu queria dizer que não gostava, mas era como um americano subir no Empire State e gritar que odeia basebol ou basquete!
Depois de muita insistência fui jogar uma "partidinha só de brincadeira, entre amigos, colegas da classe, sem pressão, bla-bla-bla...". Saí do jogo com três dedos do pé direito quebrados! E só tinha amigos... jurei nunca mais jogar futebol.
Muitos anos se passaram, mas muitos mesmo, até que descobri na escalada o esporte da minha vida. Durante a semana escalava na academia e fins de semana na rocha. Em pleno século 21 as pessoas deixaram de tratar o futebol como o único esporte do mundo e no universo de escaladores menos ainda.
Até que surgiu alguém com a proposta de jogar futebol society uma vez por semana. Como era quase todo mundo ruim de bola, alguns péssimos e outros piores ainda, o futebol virou muito mais uma diversão do que um jogo. Também uma forma de não virar monoesportista só vivendo de escalada.
Tudo bem, tínhamos alguns ótimos jogadores, até com passagem por times oficiais e algumas mulheres - isso mesmo, mulheres, nosso futebol era misto - que jogavam tão bem que as outras quadras paravam para vê-las.
Depois íamos para uma lanchonete repor todas - e mais algumas - calorias gastas e rir muito das jogadas desengonçadas de pessoas com uma relação muito estranha com as bolas.
Péssimo como sempre, eu ainda jogava com um monitor de frequência cardíaca, regulado para apitar com 180 batimentos por minuto, por recomendação médica. Toda vez que meu relógio apitava os outros jogadores gritavam:
- Pára todo mundo que o tiozinho vai morrer!!!
Muito engraçados...
Não morri, mas ninguém me passava a bola porque sabiam que seria um desastre, mesmo assim levei a sério e comprei chuteiras, meias, camisa, caneleira tudo oficial. Antes dos jogos, durante o aquecimento, meus amigos tentavam me ensinar a chutar, driblar, correr com a bola, mas tudo em vão. Cachorro velho não aprende truque novo.
Até que uma noite houve um milagre.
Tudo começou com um escanteio pela direita. Meu colega fez sinal para eu correr para a área e obedeci. Ele jogou a bola que veio direto na direção da minha cabeça, bateu na minha testa e entrou no gol. Gol? Goooooooool...
Meu time explodiu... de rir! Até o goleiro adversário ajoelhou porque não conseguia parar de rir. Na verdade não foi um gol, foi uma encaçapada, porque usaram minha cabeça de tabela.
Quando conseguiram parar de rir reiniciaram o jogo. No segundo tempo eu estava parado quietinho na ponta direita, esperando meu batimento cardíaco diminuir e a bola apareceu bem na minha frente. Corri com ela pra perto da área, vi que o goleiro estava meio adiantado e chutei, de bico, entre ele e a trave. Gooooooooool, de novo!!!
Saí pulando pra comemorar, mas vi que os jogadores adversários estavam rindo de novo. E brigando com o goleiro:
- Pô, Minhoca, isso é hora de falar no celular???
- Ah, quando celular tocou vi que a bola estava com o Tite e atendi. Nunca imaginei que ele fosse chutar, muito menos acertar!
Desmoralizado com meu segundo gol acidental continuei correndo de um lado pro outro e tomamos um gol de empate. Faltava pouco para acabar e fui para o meio de campo dar a saída. Coloquei a bola no círculo central e falei pro meu companheiro:
- Só rola a bola...
Vi que o goleiro estava totalmente desatento e adiantado e mandei um bico na bola com toda raiva do mundo. Aconteceu o milagre. Ela fez uma parábola, uma curva totalmente doida, o goleiro se esticou todo mas a bola entrou no gol bem no ângulo. Ninguém se mexeu. Silêncio total. Fiquei mudo só refazendo mentalmente o que tinha acabado de acontecer. Alguém correu pra mim aos berros:
- Golaaaaaaaaaaaço, gênio!!! Nem Pelé conseguiu isso!
Passado o susto de ter feito um gol de verdade tive uma crise histérica de riso e delirei imaginando que o mundo tinha perdido um grande jogador. De qubra meu time ganhou de virada.
Foram os únicos três gols da minha carreira como jogador. Nunca tinha feito nem um gol sequer e foram logo três em uma partida. Continuamos jogando por mais alguns meses até que algumas brigas por conta do calor da disputa acabou com nossas peladas. Pelo menos não passei pela vida sem fazer meu gol do meio do campo! Nem Pelé fez...
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.