(Essa é a GSX-R 750, o que sobrou dela...)
Já vou avisando: estou num mau humor de espantar rothweiller! Passei uma semana inteira sendo bombardeado por notícias sobre o projeto que tentará – mais uma vez – proibir a circulação de motos nos corredores. Quando lembro nas ruas de Brasília, DF, sobretudo daquelas asas Norte, Sul, Esplanada e outra bacanices urbanas, imagino que motociclistas candangos não usem os corredores porque lá nem se sabe o que é isso. As ruas são largas, os carros têm espaço, tudo funciona na buenas! Mas em São Paulo, com 19 (D-E-Z-E-N-O-V-E) milhões de gentes e 6 (S-E-I-S) milhões de veículos proibir a circulação de motos nos corredores é uma piada. Esses salames eleitos pelo povo deveriam proibir a corrupção, a prevaricação, o desvio de recursos, a falta de professores, o mensalão, mensalinho e mensaleto, o nepotismo etc etc. Proibir a miséria social não aparece na mídia. O que dá Ipobe é proibir trânsito de motos nos corredores! Quer saber? Isso vai acabar em pizza. Entregue por um motoboy que, espero, venha pelo corredor porque não gosto de mussarela fria!
Falando em corredor, recebi as fotos do famoso acidente na Anhanguera. Meu chapa! Tinha uma Yamaha R1, uma Yamaha R6 e uma Suzuki GSX-R 750. Quando os salames pilotos saírem da UTI certamente aparecerão algemados dando entrevista com carinha de anjos barrocos, do tipo “estávamos no limite da estrada, a 90 km/h e fomos surpreendidos pelos policiais no meio da estrada!”. Querem apostar? E vai aparecer um adevogado engravatado afirmando que seus clientes foram tão vítimas porque os policiais não sinalizaram o veículo atravessado no meio da pista. Pára tudo!
A melhor coisa que um adevogado pode fazer numa hora dessas é proteger seus clientes de um linchamento. Se aquelas motos estavam a menos de 150 km/h eu coloco minhas bolas numa morsa e pode apertar. As fotos mostram um show de horror. A pancada foi tão violenta que um dos motociclistas foi encontrado a uns 30 metros do local, perto de um riacho. Faltou pouco para a vaca ir pro brejo. Testemunhas dizem que a turma do resgate só se deu conta que faltava um motociclista quando contaram seis motos e cinco estabacados. Imagina a cena:
- Ué! Tem mais moto que motociclista!
- Procura por aí, porque está faltando um...
- Ih, achei, ta ali no meio do mato!
(Ih, olha o motociclista ali!)
Quem tiver a coragem de defender esses três motociclistas estará passando um atestado de burrice do mais alto escalão. Qualquer estagiário de Física sabe calcular massa x velocidade. Um corpo de 70 kg não voa por meios próprios, precisa ter uma força de arremesso. Basta verificar a distância que o corpo voou para saber qual a velocidade da moto. Além disso, um dos conta-giros travou a 10.000. É só descobrir em qual marcha a moto parou para desvendar a velocidade. Simples!
Muita gente me perguntou “o que leva alguém a correr desse jeito na estrada?”. Minha vontade é responder “Certamente porque tem pênis pequeno e precisa provar que é bom em alguma coisa”. Mas não pega bem a um profissional da minha estirpe usar esse tipo de analogia. Por isso, visto minha carapaça de especialista em pilotagem preventiva para elaborar um parecer técnico sobre o comportamento desse tipo de vilania do trânsito.
O começo
Hoje as motos esportivas chegaram a um ponto que não dá mais para conceber a liberação a pessoas com habilitação convencional. Uma 1000 esportiva chega a 200 cv (com auxílio do sistema de indução de ar) e pesa 170 kg. É um veículo de corrida! As motos de GP dos anos 80 tinham 180 cv e pesavam 140 kg.
O meio
O perfil do motociclista que compra uma moto esportiva é bem variado. Encontra-se desde aquele que apenas curte o aspecto visual, mas pilota de forma até conservadora; passa por alguns que gostam da emoção da velocidade como um hobby e participam regularmente de competições ou track-days e termina naqueles que têm uma necessidade vital de auto-afirmação. São esses que batem, morrem e matam.
Sobretudo na faixa entre 35 e 45 anos, quando ainda preservam algum vigor da juventude e que precisam mostrar ao mundo que efetivamente SÃO jovens. A característica mais marcante da adolescência é a onipotência, sentimento pelo qual o jovem acha que as coisas ruins só acontecem aos outros. Outro arquétipo da juventude é a prepotência. Como o próprio nome diz, é a pré-potência, ou seja, atribuir a si uma potência antes de tê-la, ou que nunca terá.
(O miolo da R6)
O coroa de 45 a 50 anos percebe que está entrando na parábola descendente no ponto de vista físico e precisa de algo que lhe devolva a sensação de poder. E a velocidade é o Viagra que faltava para levantar o astral. Para comprar um carro que chegue a 300 km/h é preciso desembolsar algo perto de R$ 400 mil. Já uma moto esportiva chega aos mesmos 300 km/h e custa menos de R$ 60 mil. É fácil perceber que a opção pela moto esportiva pode ser meramente econômica e não passional.
O fim
Um dos temas que mais martelo em aulas e palestras é a pré-visão, que nada mais é do que a capacidade de ver antecipadamente. Nenhum motociclista pode argumentar que não viu determinado obstáculo. Na verdade, ele não previu! A rodovia Anhanguera tem proteções centrais de concreto. Um muro com cerca de 1,5 metro que serve para impedir a invasão dos veículos que rodam no sentido contrário. Como qualquer criança sabe concreto não é transparente, logo impede a visão nas curvas. E a curva passa a ser o que tecnicamente chamamos de “curva-cega”.
Quando o técnico determina a velocidade máxima de 90 km/h para aquele trecho ele leva em conta o quanto de alcance visual o motorista pode contar. A 90 km/h um veículo percorre 25 metros por segundo. A 100 km/h uma moto esportiva é capaz de frear em cerca de 30 metros. Logo, está dentro do previsível para a estrada. Só que o motociclista pego de surpresa demora cerca de 1 segundo para começar a frear, é o chamado tempo de reação. São 25 metros para reagir e mais 30 para frear...
No entanto a matemática muda radicalmente quando a velocidade chega ao nível de 150 km/h. A essa velocidade a moto percorre 41 metros por segundo e necessita cerca de 70 metros para frear, o que dá um total de aproximadamente 110 metros entre reagir e frear! É mais de quatro vezes a distância pré-vista para aquele trecho.
O corretivo
Qualquer pessoa pode tirar brevê de avião. Basta fazer o curso, passar nos exames, fazer as horas/aulas e ser aprovado no vôo solo. Isso faz de qualquer pessoa adestrada um aviador. Porém, quem tem a licença para pilotar um avião pequeno monomotor nunca poderá subir em um Learjet 85 e sair voando. Apesar de ambos os aparelhos serem aviões e obedecerem as mesmas leis da Física e aerodinâmica, são máquinas absolutamente distintas no que se refere à complexidade de pilotagem.
O que defendo é a mesma distinção para motos. Não é admissível que alguém faça um adestramento ridículo, em ambiente fechado, com uma moto utilitária de 125cc e receba a licença para pilotar motos de 200 cavalos, que chegam a 320 km/h!
O burocrata prevaricador que perde o tempo e o dinheiro público criando leis que já existem teria uma aplicação muito mais sensata se legislasse a favor de um critério técnico na habilitação de motociclistas. Quanto maior e mais potente a moto, mais severas e complexas devem ser as exigências para habilitação. No meu tempo existia as carteiras 1, 2 e 3 para motos conforme a cilindrada. O que era facilmente manipulado, pois bastava usar no exame uma moto de 200cc com as mesmas dimensões de uma 125 para receber a patente máxima. Uma atitude ridícula e aceita pelos Detrans desse país do avesso.
O motociclista que pleiteia a habilitação para motos acima de 100 cv deveria passar por um rigoroso exame de habilidade e psicotécnico, da mesma forma que um piloto de avião comercial. É preciso provar equilíbrio emocional e habilidade para pilotar motos que superam a marca de 200 km/h, pois existem pessoas que simplesmente são incapazes de controlar este tipo de moto e estão por aí, ameaçando a sua segurança e a dos outros.
Enquanto isso, em Brasília, alguém acha que as motos não devem circular nos corredores!
(Racha entre Porsche e motos: da hora, mano, show!)
Durante um jantar na Alemanha dividi a mesa com um casal de ingleses e a mulher se encantou quando afirmei que era brasileiro. Ela tinha acabado de chegar de uma feira de negócios em São Paulo e passara uma semana na capital paulista. Conversamos as amenidades de sempre até que perguntei o que mais a tinha chamado a atenção na minha cidade. A resposta foi bestificante:
- A imensa quantidade de cachorros atropelados nas ruas!
Se alguém tivesse apostado um milhão de euros e me dessem 100 tentativas para acertar a resposta teria errado longe. Jamais imaginei que nossos cachorros atropelados pudessem impressionar um turista.
Quinze dias depois estava eu, em pleno sábado de sol, disposto a passear com minhas filhas e fomos para a cidade mais charmosa da vizinhança, Embu, que fica a 28 km do centro. Foi então que decidi fazer uma estatística sinistra e contei 25 carcaças de cachorros atropelados em 22 km de estrada. E ainda tinha a volta! Foi quando tive a segunda grande revelação daquele período. Minha filha mais velha admitiu, pela primeira vez, que sempre teve pavor da Régis Bittencourt, estrada que liga São Paulo a Embu. E mais: confessou que na infância ela percorria todo esse trecho de olhos fechados com medo de ver os cachorros atropelados.
Neste dia, parte da minha visão crítica foi recuperada e comecei a ficar igualmente indignado diante de cada carcaça de cachorro que putrefaz nas ruas e estradas. E também decidi parar de contar!
Será que houve um tempo que todos nós também ficamos indignados, como a inglesa, ou assustados, como minha filha, diante de um cachorro morto? Acredito que sim. Mas, de alguma forma até bizarra, nos tornamos empedernidos diante desse cenário de horror. Tornou-se tão banal tropeçar em carcaças de cachorros e gatos que nem ligamos mais pra isso. Precisamos de uma estrangeira ou de uma criança para recuperar nossa capacidade de indignação. Ver um cachorro atropelado se tornou tão natural quanto ver o mato crescer na calçada no verão.
A julgar pelo que leio nas comunidades de motociclistas do Orkut e pelos vídeos postados no Youtube começo a acreditar que a morte de motociclistas em acidentes de trânsito já adquiriu esse status de banal. A mídia explora por algumas horas, os posts se acumulam no Orkut por alguns dias, mas depois tudo desaparece como a mancha de sangue lavada do asfalto na primeira chuva. A última vez que vi um motoboy morto na avenida 23 de maio pensei imediatamente na família dele e deu aquele conhecido nó na garganta. O motoqueiro na minha frente gesticulava como se quisesse brigar com algum culpado imaginário, mas as pessoas passavam, as motos passavam e tudo seguia o rumo natural de mais um dia.
Não quero esperar uma futura viagem ao exterior para ser novamente surpreendido por um gringo ao me revelar que ficou assombrado com a quantidade de motociclistas mortos em São Paulo. Ou descobrir em um breve futuro que meu neto terá de rodar de olhos fechados pelas ruas com medo de ver um motociclista morto.
Preciso recuperar minha capacidade de indignação AGORA.
O recente acidente na rodovia Anhanguera, no qual três motociclistas em altíssima velocidade se chocaram contra policiais que socorriam outra vítima de acidente foi exemplar. Poucos dias antes foi colocado um vídeo no Youtube que mostra um Porsche tirando racha com duas motos esportivas a mais de 200 km/h. Não precisa ser muito observador para identificar a mesma rodovia Anhanguera que foi palco do recente acidente. Um mês atrás a demonstração de irresponsabilidade do motorista do Porsche rendeu mais de 60.000 acessos no Youtube e muitas observações enaltecendo a qualidade dos pilotos. Agora, que temos mais um cadáver produzido por esses “super-pilotos” domingueiros vejo várias manifestações de pesar no Orkut. Ué, mas não era legal? Não é da hora tirar racha na Anhanguera? Os manos do Porsche e das motos não pilotam muito? Então porque chorar por um cadáver que era casado e tinha três filhos. É só mais um corpo na estrada. Mais um cachorro atropelado.
Há 10 anos ministro cursos de pilotagem que têm como principal objetivo formar motociclistas mais seguros. E quando saio em busca de patrocínio para dar continuidade a este trabalho sou recebido nas empresas como se fosse um traficante, seqüestrador ou vendedor de arma. Sempre que procuro empresas do setor motociclístico para dar suporte e continuar este trabalho tenho a clara impressão de que o profissional de marketing me olha como se eu estivesse querendo arrancar um dinheiro fácil. Para estas empresas, preservar a vida não é uma boa ferramenta de marketing.
Até mais um corpo ser jogado na cara da opinião pública e aí parece que todo mundo decide ficar indignado!
Vou continuar ministrando cursos de pilotagem, com ou sem ajuda do setor, porque se a morte é a única certeza da vida quero continuar me sensibilizando quando ocorrer de forma irresponsável. Para mim, pilotar motos na estrada sempre será a natureza da vida.
(mais uma morte na Anhanguera: agora ninguém gosta do show!)