Pensar, agir e viver de forma segura é questão de hábito
Nos últimos meses o Brasil foi surpreendido por dois acidentes de trabalho e um de trânsito que se tornaram evidentes. A explosão de um cilo de grãos em Palotina, PR, em junho; a explosão da caldeira em uma metalúrgica de Cabreúva, em SP, em setembro e o atropelamento do ator Kayke Britto no Rio de Janeiro, também em setembro. O que estas três ocorrências têm em comum? O conceito de segurança.
Esqueça os acidentes. Pense em filosofia de vida. Encontrar uma filosofia de vida é tão desafiador quanto desvendar o conceito de filosofia. Pode-se gastar milhões de caracteres e palavras sem se chegar a um consenso. Mas resumidamente a ideia de filosofia de qualquer coisa é quando a personalidade do indivíduo é regida por esse conceito. Assim, tem-se a filosofia religiosa, de trabalho, de arte, de esportes e uma pouco praticada por pessoas e empresas que é a filosofia de SEGURANÇA.
Desenvolver o conceito da filosofia de segurança é tão natural como hábitos de higiene. Ninguém precisa dizer para um adulto escovar os dentes, porque esse hábito já está incorporado no comportamento do indivíduo. Com a segurança o desafio é fazer este conceito se tornar um hábito a ponto de não exigir uma regulamentação, nem fiscalização.
Apesar de estar envolvido com várias atividades de risco, sempre levei o conceito da segurança junto comigo. Alguns amigos chegam mesmo a suspeitar de alguma psicose, mas é apenas filosofia de vida. Só para ilustrar, sou do tipo que ao entrar em uma embarcação, por mais prosaica que seja, já procuro pelo salva-vidas. Não tem? Não embarco. Quase morri afogado passeando de caiaque 40 anos atrás.
Outro exemplo: se eu entro em uma cozinha, seja de quem for, e perceber o cabo da panela pra fora do fogão, sem qualquer constrangimento vou lá e empurro o cabo pra parte interna. Se eu não enxergo o fundo do rio, da represa ou mesmo do mar, não me jogo de cabeça. Faz parte da minha personalidade.
Então imagine meu nível de desespero quando vejo pessoas se expondo a risco nas mais diferentes atividades. Mesmo dentro de casa, em atos aparentemente inocentes como subir no vaso sanitário para trocar uma lâmpada. Pouca gente sabe, mas o maior índice de atendimento do SAMU de São Paulo é de acidentes domésticos. A mesma pessoa que sobe no vaso sanitário troca a resistência do chuveiro sem desligar a chave geral!
Trabalhei 18 meses em um hospital. Foi tempo suficiente para entender que o ser humano é potencialmente falível.
Motociclistas de aplicativos se sujeitam a riscos em nome de uma remuneração.
Segurança é hábito
O ser humano é um sobrevivente por natureza. Nós só chegamos aqui porque desenvolvemos potencialidades que garantiram a sobrevivência da galera toda. Imagine se nas primeiras pandemias não tivéssemos pessoas estudiosas que encontraram alguma forma de cura? Só de pensar que passamos por uma recente pandemia que praticamente parou o planeta, sem o mesmo grau de letalidade da peste negra ou gripe espanhola dá para entender que a humanidade aprendeu rápido a sobreviver.
E a regra número um da sobrevivência é: não morra! Parece muito óbvio, mas nossa geração passou também pela ameaça da AIDS e quantas vezes ouvi pessoas maduras se recusando usar preservativo. É uma afronta à segurança!
Entrando no nosso mundo das motos, sou de uma geração que não usava capacete. Já existia, eu mesmo tinha dois modelos F1, mas parecia literalmente um marciano, porque era o único que usava aquele penico na cabeça. Naqueles anos 1970 usar capacete era falta de macheza. Um dos caras que mais me zoava por causa do capacete era um ídolo da geração: Carlos “Jacaré” Pavan. Excelente piloto de motovelocidade, que morreu em um acidente ao disputar um racha na rua – sem capacete, porque não convinha à uma pessoa corajosa como ele usar algum equipamento de segurança.
Perdi muitos amigos em acidentes de moto, todos por falta do capacete. E hoje ainda tem gente que se recusa a usar o equipamento.
Já perdi a conta de quantas vezes o capacete me salvou a vida. E não foi só na moto! Já me acidentei também de bicicleta, skate e até escalando a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí, SP. Se estou vivo até hoje devo muito ao hábito de usar capacete em tudo que posso bater a cabeça. Aliás, tenho raiva de mim mesmo quando bato a cabeça em qualquer coisa.
Esta foto é "de mentira": eu estou a um metro do chão, mas não parece! O capacete é de verdade!
Para que o uso do capacete se tornasse um hábito na minha vida tive a influência da minha irmã. Quando ganhei minha primeira moto, aos 12 anos, ela dizia que se me pegasse sem capacete faria meu pai vender a moto. Depois de algum tempo eu já não conseguia mais pilotar sem capacete. Vaidoso, não queria ficar com a pele oleosa...
A transformação do conceito de segurança em hábito começa sempre pela obrigatoriedade – do Estado ou da irmã mais velha – para depois se tornar um hábito. Hoje não consigo dar uma volta no quarteirão sem capacete e luvas. Sim, o uso da luva virou quase uma obsessão porque como jornalista eu dependo das mãos para viver. A menos que comece a trabalhar em rádio!
Quando a segurança se transforma em hábito a fiscalização deixa de fazer sentido. É isto que tento mostrar aos profissionais da segurança de trabalho. Os colaboradores de uma empresa precisam fazer do uso dos equipamentos um hábito tão natural como escovar os dentes. Não só equipamento, mas todas as regras de segurança precisam entrar na corrente sanguínea de forma a se tornar natural.
Atitudes como usar o corrimão da escada (outra mania que carrego), andar nas faixas limitadoras, caminhar sem olhar o celular, observar o entorno, devem ser tão naturais como respirar.
Só para aproveitar a deixa, o aparelho celular representa hoje um dos maiores empecilhos para a segurança patrimonial, de trânsito e de trabalho. O uso irracional do aparelho celular chegou a níveis tão preocupantes no mundo que o Japão instituiu multas para quem caminhar na rua olhando para o celular.
Recentemente visitei uma empresa e fiquei aguardando na sala do departamento de segurança de trabalho. Enquanto esperava observei uma moça, com jaleco da CIPA (comissão interna de prevenção de acidente) apoiando o celular no próprio carregador, enquanto carregava a bateria. Qualquer criança sabe que tanto o carregador quanto o aparelho geram calor. Quando colocados juntos a chance de superaquecimento é enorme.
Não acabou aí. O celular tocou e ela começou a conversar, mesmo com o aparelho sendo carregado na tomada, algo que é potencialmente arriscado. Isso tudo dentro de um departamento de segurança do trabalho.
Este exemplo serve para ilustrar a diferença entre a segurança de manual e o hábito da segurança. No meu escritório caseiro uso até um cooler extra para arrefecer o notebook de tanto medo de explodir a bateria!
O desafio da mobilidade segura
Agora sim vou voltar para os acidentes relatados lá no primeiro parágrafo. O primeiro caso, da explosão do cilo de grão, tratava-se de uma grande e muito bem estruturada empresa do setor agrícola. Várias pessoas testemunharam que a empresa tinha uma sólida e verdadeira preocupação com segurança, tratando o tema com absoluta seriedade. Todos os indícios preliminares apontaram para uma falha humana. Sim, por mais mecanizada que seja uma produção, em algum momento tem um ser humano operando. Humanos são falíveis.
Já na siderúrgica de Cabreúva o caso é mais complexo. Numa primeira investigação surgiram evidências de falta de alvarás, que induz a falhas estruturais mais graves. E mais uma vez o ser humano está por trás, não só na operacionalização da empresa, mas na burocracia e adequações às normas de segurança.
E finalmente o acidente com o jovem ator Kayke Britto. Novas imagens de câmeras de segurança mostram o ator em visível estado de embriaguez, pouco antes do acidente. E as imagens do acidente deixam claro que o jovem simplesmente atravessou a rua sem olhar para o lado. O motorista de aplicativo estava abaixo do limite de velocidade, parou, prestou socorro e ficou ao lado até a chegada do resgate. Depois foi submetido ao teste de alcoolemia que não detectou a ingestão de bebida alcoólica.
Mas e a “vítima”? O atropelado? Foi realizado teste de alcoolemia nele? Ele pode ser responsabilizado pelo acidente? Pode ter de indenizar o motorista? Não foi divulgado nenhum teste, porque no Brasil a única vítima de um acidente é quem se feriu. Sim, ele pode ser responsabilizado pelo acidente se ficar provado que estava alcoolizado. E sim pode ser condenado a indenizar o motorista pelos danos e transtornos causados.
No momento que soube do atropelamento comentei que ele iria sair dessa, porque é jovem, saudável e traumatismo craniano não assusta mais ninguém hoje em dia. Ele recebeu alta do hospital, está se recuperando em casa em vai sim voltar a ter sua atividade normal.
Dentro do preceito da filosofia da segurança a “vítima” foi a maior responsável pelo acidente. Mas a sociedade tende a fazer justiça sempre condenando o motorista e inocentando o atropelado. Sobre isso já escrevi um artigo “A outra vítima”, que mostra como a vida de um motorista pode ser impactada pela irresponsabilidade da vítima. E se Kayke tivesse morrido? Este motorista estaria eternamente condenado a viver com essa dor. Mas ninguém pensa nele...
Dentro das palestras que realizo sobre Filosofia da Segurança tento mostrar que muitas pessoas carregam o estigma da vítima. Relevam de tal forma o conceito da segurança que chegam mesmo a “pedir” por um acidente. Basta ver como a maioria dos motociclistas de aplicativos se comportam. Tem situações que parece que estão clamando por um acidente grave. Não pode ser normal o comportamento que adotam. Mas quem se importa?
Os “CEOs” dos apps dormem o sono dos justos, afinal não há vínculo empregatício; o Estado é omisso ao relaxar a fiscalização sob o argumento flácido do “ah, pelo menos estão trabalhando” e cabe ao sistema de saúde arcar com a sobrecarga e custos dos estropiados no trânsito.
Nesta cadeia não passa nem de longe o conceito da Filosofia da Segurança. O município de São Paulo ainda conseguiu implantar as salvadoras faixas azuis. E o que eu vejo nelas? Retardados rodando de moto a 90, 100 km/h cercado por fileiras de carros dos dois lados. O que faltou? Educação e fiscalização.
Estes jovens arriscam a vida porque é assim que a sociedade os trata. Quem pede quer receber logo. Quem vende quer entregar logo. E quem entrega quer ganhar mais. Neste caos a única certeza é que o conceito de segurança ficou lá no meio do caminho.
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