Terça-feira, 16 de Julho de 2019

Os dias eram assados: o primeiro skate

DKW.jpg

Era uma casa muito engraçada num lugar distante.

Os dias eram assados: o primeiro skate

Não existia skate pronto, então o jeito era fazer

Houve uma época na minha vida que mudávamos muito de endereço, a ponto de a minha mãe nos chamar de nômades. Tudo porque meu pai foi do tipo “self made man”, que veio de uma pequena cidade do interior, começou a estudar tarde, se formou e com uma ambição típica daquela geração (sucesso nos anos 60 era ter um Fusca e trabalhar no Banco do Brasil), foi conquistando empregos sempre melhores e mais bem remunerados até surgir uma oportunidade grandiosa.

Ele, junto com mais cinco empresários, acreditaram no projeto super moderno de um americano radicado no Brasil e fundaram uma construtora que mudaria a cara de São Paulo e até os conceitos de arquitetura e construção civil: a Forma & Espaço foi um marco na arquitetura com projetos de apartamentos pré-moldados, construção rápida, simples, barata e funcional. Mais do que isso, não exigia terrenos gigantescos como hoje.

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Você daria uma moto para essa criança?

Como resultado desse investimento bem sucedido nosso padrão de vida foi melhorando, embora naquela época eu nem tinha grandes ambições na vida – como não tenho até hoje. Uma das consequências desse novo padrão de vida era que podíamos morar nos projetos criados pela Forma & Espaço, inclusive porque era uma forma de mostrar que eram tão eficientes a ponto de seus diretores morarem neles. Outra consequência era que eu recebia mesada polpuda e não precisava mais vender jornais nem fazer carreto na feira. Foi assim que, no final de 1970, nos mudamos do Brooklin para esse desconhecido bairro chamado Jardim Prudência.

O nome assustava todo motorista de taxi: Jardim Prudente? Vila Prudente? Quase ninguém sabia onde era! Naquela época era um bairro tão afastado que perto da minha rua tinha um clube de caça! Nenhum motorista de taxi queria nos levar, o ônibus era mais caro porque vinha de Diadema, que já era (e ainda é, mesmo que não pareça) outro município.

A casa ficava (e ainda fica) na parte mais alta do bairro, classificado como Z1, ou zona 1, exclusivamente residencial. O comércio ficava longe, assim como os pontos de ônibus (e ainda são até hoje). Para ir na padaria, açougue, banca de jornal, qualquer necessidade era só a pé ou de bicicleta, o que não seria ruim se as ruas não fossem de terra (ou lama) e se os moradores mais antigos não tivessem o costume interiorano de manter os cachorros soltos, inclusive dobermanns, pastores alemães e até filas gigantescos.

Além disso, minha escola ainda era no Brooklin, assim como as dos meus irmãos e, por força da necessidade de ir e vir minha mãe aprendeu a dirigir e nunca mais o mundo foi um lugar seguro.

Surfe & skate

Como resultado dessa melhora no padrão de vida já podíamos passar férias na praia em apartamentos alugados e não mais em casa de amigos e parentes. Em uma dessas férias passamos algumas semanas em São Vicente, na Baixada Santista. Lembro bem das festas no Ilha Porchat Club, nos dias inteiros na praia, dos doces da Praça da Biquinha (de Anchieta). Mas o que ficou eternamente grudado na minha lembrança e na minha alma foi o primeiro contato com uma prancha de surfe.

Já tinha feito algumas experiências com uma prancha de madeira em Bertioga (sim, uma madeira fina e curta) que era um desastre. Na verdade essa pranchinha era meio que o primórdio do body board porque só dava pra pegar jacaré. O problema dessa prancha é que a frente não podia emborcar porque travava no fundo de areia, fazia uma alavanca e quase entrava pela nossa barriga!

Nessas férias em São Vicente meu pai comprou uma prancha bem maior, de isopor, que foi um enorme avanço a ponto de eu passar o dia todo dentro da água. Logo de cara descobri que era preciso usar camiseta pra não assar os mamilos!

Não dava pra ficar de pé, mas eu ficava vendo os surfistas “de verdade” e aprendendo até que numa tarde inesquecível um deles deixou eu experimentar uma prancha de resina e foi paixão instantânea. Mas mesmo para um recém alçado à categoria de mauricinho a prancha de surfe de resina era muito cara para um fedelho de 11 anos. Além disso, eu não era exatamente um estudante exemplar e meu pai achava que me dar uma prancha de surfe faria eu desistir de vez da escola, algo que certamente teria acontecido... Mas o decretou meu fim como surfista foi uma visita supresa que meu pai fez ao pessoal da praia e percebeu a super manjada maresia, não do mar, mas dos baseados. Naquele momento morria um futuro surfista!

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Twin surf shop foi um marco na minha vida.

De volta pra São Paulo comecei a pesquisar tudo sobre surfe. Descobri a primeira loja de surfe da minha vida, a Twin, em Moema, endereço que passei a frequentar esporadicamente admirando as pranchas e gastando a mesada em camisetas, carteira e qualquer coisa com a marca Twin.

Como tudo que eu me apaixonava passei a comprar revistas de surfe e foi numa delas que vi uma novidade que mudaria meu foco: uma pranchinha, com rodinhas que podia ser usada nas ruas, chamada de skate!

Olhei, olhei e olhei mais vezes até perceber que era algo possível de ser feito em casa, afinal eu já era quase um marceneiro. Um pedaço de madeira em formato de prancha de surfe em menor escala, com dois eixos e quatro rodinhas. Olhando com mais atenção percebi que os eixos e as rodas eram muito parecidas com as de patins e foi assim que meu primeiro skate começou a tomar forma.

Minha irmã tinha um par de patins Torlay abandonado, até porque nessa nova casa as ruas eram de terra e não tinha onde patinar. Comparei os eixos dos patins e não tive dúvida: bastava serrar a plataforma para ter dois trucks perfeitos para um skate, mas faltava a prancha.

patins2.jpg

Um par de patins na mão e uma ideia ruim na cabeça.

Nem precisou procurar muito e uma tábua de madeira ganhou forma de uma pequena prancha de surf. Medi tudo milimetricamente para furar a aparafusar os eixos e voilá, nasceu meu primeiro skate. Logo no primeiro check-down percebi que era tudo que tinha imaginado para ocupar o vazio que o surfe deixara na minha vida.

E adivinha onde foi o batismo de fogo? Naquela mesma ladeira do Morumbi onde eu descia de rolimã! Esse skate não corria muito – graças a Deus – e eu descia em linha reta, ganhava velocidade e entrava em uma subida que funcionava como “desacelerador” gradual.

patins_1.jpg

Esse pobre patim será serrado ao meio!

Rapidamente meus vizinhos da mesma idade se interessaram naquela pranchinha e começamos a picotar os patins para fazer novos skates. Logo depois a mesma Twin começaria a vender os shapes de fibra de vidro e eixos de skate feitos pela mesma Torlay que fabricava os patins. Foi assim que montei meu primeiro skate “de verdade” e já estava ficando bom nesse brinquedo quando houve outra reviravolta na minha vida, dessa vez de forma tão profunda que nunca mais fui a mesma criança.

skate_twin1.jpg

Skate vintage em homenagem à Twin.

Esse novo endereço no Jardim Prudência era muito chique, mas um inferno em termos de mobilidade. Meu pai nos levava para as escolas pela manhã, mas voltávamos de ônibus depois da aula. Eu chegava em casa tarde, morrendo de fome e ainda tinha os cachorros soltos que às vezes me faziam dar uma volta quilométrica para chegar em casa inteiro.

Por conta dessa dificuldade de mobilidade minha mãe aprendeu a dirigir e ganhou um Fusca 1969 verde, que eu amava de paixão. Ela deixava eu voltar dirigindo. Imagine uma criança de 11 anos dirigindo em São Paulo! Minha mãe colocava uma almofada no banco para eu alcançar os pedais e, para parecer mais velho, eu usava só a armação de um óculos de grau.

Em pouco tempo eu já estava indo e voltado dirigindo, revezando com meu irmão. Até que um dia meu pai cometeu o desatino de nos deixar ir sozinhos dirigindo o Fusca. Como meu irmão parecia mais velho do que os 14 anos, achávamos que nenhum policial perceberia. De fato, nunca tivemos problemas, até uma mulher, grávida, passar mal, atravessar uma esquina preferencial sem parar e nos acertar a meia nau. A pancada foi tão forte que minha porta abriu e só não fui lançado pra fora do carro porque desde sempre usava cinto de segurança, não por questões de disciplina, mas porque eu achava que ficava parecido com piloto de Fórmula 1.

Meu pai só não sofreu um processo porque a moça grávida também não era habilitada e admitiu que teve um mal súbito. Assim cada um assumiu seu prejuízo, ninguém sem machucou, mas nossa liberdade de dirigir foi cassada.

Depois desse acidente meu pai voltou a nos levar para as respectivas escolas, com o agravante de ter de acordar quase às cinco da manhã. No entanto essa rotina sofreria outra mudança radical.

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Primeira moto que vi na vida foi uma Honda 65cc do meu vizinho.

Quando ainda morávamos no Brooklin tive contato com uma moto pela primeira vez. Nosso vizinho Gato Pascoalin tinha uma Honda Sport Cub 65 e ensinou meu irmão a pilotar. Eu olhava, mas não ligava muito pra moto, minha paixão era carro.

Para resolver a questão da mobilidade meu pai nos surpreendeu com uma ideia meio maluca para a época, mas que mudaria radicalmente a história da minha vida. Um dia ele chegou em casa com uma moto, uma Suzuki A 50II comprada na Mesbla e falou para o meu irmão:

– Pronto, a partir de agora você vai pra escola de moto e leva seu irmão!

suzukinha.jpg

Voltando do Externato Pequenópolis com a minha Suzuki A 50II.

Quando vi aquela moto dourada entrando pela porta da garagem fiquei tão admirado com tanta peça cromada, brilhante, a pintura metálica, envernizada, com as luzes da seta, o velocímetro. Lembro como se fosse ontem a excitação de ver aquela moto tão linda e admirável que na primeira noite obriguei meu irmão a colocá-la no meio da sala e eu dormi no sofá, olhando pra ela.

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Aprendi a pilotar sozinho e a partir deste dia nunca mais fiquei um dia sem uma moto.

No dia seguinte não queria mais saber de skate, de surfe, de bicicleta e minha vida passou a ser em função somente das motocicletas. Só fui subir numa prancha de surfe e num skate novamente 46 anos depois...

P.S.

Sempre que eu conto a história do meu primeiro skate feito em casa muita gente duvida, principalmente os mais jovens. Por isso eu aproveitei um par velho de patins Torlay jogado no quartinho de bagunça e resolvi fazer um skate vintage em homenagem à Twin. Até ficou bem legal, com acabamento todo trabalhado com pirógrafo. Mas na hora do teste foi um fiasco. Ficou muito ruim! Na verdade o skate não ficou ruim, mas exatamente igual àquele que eu usava: só anda em linha reta e é péssimo de curva. Só que nestes 46 anos o skate evoluiu em todos os sentidos, tanto que fez meu primeiro skate parecer nada mais do que um patim com um pedaço de madeira!

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Acredite, com um pedaço de madeira e um pé de patim dá pra fazer um skate. E funciona!!!

 

publicado por motite às 21:16
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