Quinta-feira, 14 de Agosto de 2014

A outra vítima

(Desenho da minha filha Nina)

 

Por que ninguém se preocupa com os que ficam?

 

Se tivesse pego um farol fechado, ou aberto, não teria acontecido. Se tivesse demorado ou apressado 30 segundos para sair de casa não teria acontecido. Apenas uma fração de segundo a mais ou a menos para arrancar no farol e não teria acontecido. Se a velocidade média fosse apenas 1 km/h a mais ou a menos não teria acontecido. Esses são os pensamentos mais comuns quando alguém se vê envolvido em um acidente. Dependendo das consequências materiais ou físicas do acidente, essas inquietações desaparecem em alguns dias. Mas quando o acidente resultou na perda de uma vida essas perguntas ficam reverberando na consciência pra sempre. Pelo menos para quem tem consciência.

 

Uma moto corta a cidade de São Paulo, de norte a sul, pelo principal corredor de trânsito. A centenas de metros duas mulheres esperam no canteiro central de uma movimentada avenida, a 100 metros do semáforo com faixa de pedestre. Entre as duas mulheres uma menina de aproximadamente seis anos segura uma boneca em um das mãos e a outra está presa à mãe.

 

A moto se aproxima do cruzamento e quando está a poucos metros uma criança se solta da mão da mãe e atravessa. O impacto seco atira a menina ao chão, desequilibra a moto, mas o motociclista consegue frear sem cair. A cena é confusa e desesperadora: a mãe grita sem controle, a menina sangra no asfalto, o motociclista percebe que tem o braço e joelho esquerdos feridos, um corte no pescoço e caminha a pé em direção da criança. Antes mesmo de chegar a menina é colocada no banco de trás de um Fusca, que parte levando ainda as duas mulheres que gritam e pedem por Deus. No asfalto ficam apenas a mancha de sangue e uma boneca. Nunca mais se teve notícia da menina nem do motociclista.

 

Na ocasião a imprensa não tinha a agilidade de hoje. Nem havia redes sociais, nem celulares com máquina fotográfica, nada. As notícias demoravam e esse atropelamento caiu no esquecimento. Menos nas famílias afetadas, porque um acidente fatal não acaba no dia do enterro. Ele atinge todos à volta para sempre. Mas aqui existe um detalhe que raramente é lembrado, não é só a família da vítima que leva essa cicatriz, existe uma outra vítima que fica esquecida, mas é igualmente atingida: o atropelador.

 

Salvo as pessoas sem caráter, marginais e de índole naturalmente distorcida, qualquer cidadão que se envolve em um acidente fatal fica permanentemente afetado, mas com a diferença que este sofre sozinho e silenciosamente. Ele pode ser absolvido pela Justiça, ter sua situação civil inabalada, mas a cena do acidente não se apaga.

 

Não só a cena do acidente, mas pensamentos frequentes "como seria o futuro daquela menina", "como sua família seguiu a vida depois desse evento", ou "será que vou encontrá-la no céu para pedir desculpas?".

 

Uma vez, muitos anos atrás, a revista Quatro Rodas publicou o corajoso depoimento de um motorista que atropelou uma menina de seis anos. Nunca esqueci a foto de abertura que era em preto e branco, com uma boneca quebrada no chão. E as inquietações desse depoente era sobre a infeliz coincidência que leva a um acidente, porque é o único encontro no qual nenhum dos envolvidos tinha programado. Ninguém queria estar lá naquela hora e naquele local, mas estavam e culminou com a mudança na história de vida dos envolvidos.

 

Segundo o "pai" do automóvel, Henry Ford, acidentes não acontecem, eles são provocados. Mas e quando um dos envolvidos simplesmente não teve escolha, como se fosse apenas um vetor do destino? Uma criança com a visão encoberta pode atravessar a rua ingenuamente. Um ciclista pode apenas perder o equilíbrio e cair na frente de um ônibus sem chance de o motorista frear.

 

Como julgar esse motorista que praticamente teve uma participação meramente acidental, por estar no lugar errado na hora errada? Não há justiça dos Homens capaz de absolver.

 

 (Desenho de autoria da minha filha Luna)

 

Mais respeito com a morte

Tive a oportunidade de presenciar três acidentes fatais, todos por atropelamento. No primeiro tinha cerca de nove anos e estava na porta da escola quando meu colega de classe atravessou a rua e foi atingido pela carroceria de um caminhão. Pude ver o desespero do pai e do motorista do caminhão. Não tem instrumento capaz de medir a dor. Não há como dimensionar qual daqueles dois homens sentiu a maior fisgada no coração, sentiu suas entranhas se emaranharem como um novelo com mais intensidade.

 

No dia seguinte, no velório, a nossa professora de matemática me abraçou, me sufocando no meio dos seios, chorando copiosamente e repetindo "oh, meu Deus, eu pensei que tinha sido você". Quase afogado pelo perfume dela eu quis mesmo morrer porque os pais do menino ouviram e até hoje aqueles olhares indignados não saem da minha memória. Para mim aqueles pais deveriam estar pensando "sim, por que meu filho e não o filho dos outros?".

 

E o motorista do caminhão? Será que passou o resto da vida lembrando da cena do menino caído no asfalto, o rosto branco, a cabeça inchada em meio ao sangue?

 

O segundo acidente foi na rodovia Presidente Dutra. Uma mãe foi atravessar a estrada com um bebê no colo e, claro, não chegaram do outro lado. Só lembro de ver o corpo girando no ar e algo pequeno logo atrás. O motorista do carro pegou o bebê no colo e saiu por entre os carros chorando e gritando por socorro. Não havia o que socorrer, a não ser ele mesmo, que levou para toda a vida aquela imagem de angústia e desespero.

 

E o terceiro acidente é aquele descrito no começo desse texto. Até hoje posso ouvir claramente os gritos da mãe e como ela evitava chegar perto da filha com medo do que iria ver. Mas eu vi. E nunca esqueci, porque eu era o motociclista.

 

Quer saber como é? É olhar uma cicatriz no pescoço refletida no espelho todos os dias e lembrar de um acidente no qual uma vida foi interrompida. É passar uma existência se perguntando por que não esperou mais 30 segundos para sair. Por que não acelerou ou reduziu a velocidade só 1 km/h? Por que um semáforo não fechou ou abriu no percurso? É ver suas filhas chegarem à mesma idade daquela menina e imaginar como seria se eu as perdesse.

 

E pensar como ela seria se nada disso tivesse acontecido. O que ela estudaria, qual carreira seguiria, se teria marido, filhos, família... E a mãe dela? O quanto ela se culpou e lamentou pelo destino? Como a família a julgou?

 

A outra vítima de um acidente não morre, mas leva a morte estampada na alma, como uma coceira que não passa. A outra vítima não merece compaixão, como se apenas aquele que morre tem o mérito de ser velado. A outra vítima não é perdoada, por mais que seja absolvida pelos Homens. Ela espera pelo perdão só no dia do juízo final, literalmente, quando terá a chance de encontrar sua vítima e pedir desculpas.

 

Essa é a visão de quem recebe a missão de vetor do destino. Precisava estar lá, naquele instante, para mudar a vida das pessoas.

 

Por tudo isso me revolta como a imprensa e as pessoas tratam os acidentes de trânsito com vítimas fatais. Com exceção dos evidentes e comprovados crimes de trânsito, nos quais o dolo fica explícito, quem se envolve em um acidente fatal não o fez de propósito e merece o respeito de ao menos a compaixão e consolo.

 

Infelizmente, como escrevo há três décadas, as relações humanas desandaram que nem uma maionese aguada. Nem bem uma celebridade morre e vira motivo de chacota nas redes sociais. A morte não tem graça. Seja acidental ou natural. Ela está sempre ali, do nosso lado, mas queríamos que fosse ignorada, como quando tínhamos seis anos. A criança demora cerca de sete anos para conhecer o significado da morte. Eu lembro como se fosse ontem quando percebi que um dia eu, meus pais e meus irmãos, todos um dia iríamos morrer, comecei a chorar aos soluços e meu pai me pegou no colo com todo carinho e colocou na cama até eu pegar no sono.

 

Era assim que queríamos viver: confortado nos braços dos nossos pais na certeza da vida eterna. O que resta para a outra vítima é esquecer que um dia participou da morte de alguém. Por isso, se você não é capaz de respeitar a vida, respeite ao menos a morte.

 

 

publicado por motite às 14:22
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12 comentários:
De Fernando Mazzanti a 14 de Agosto de 2014
Sinto muito Tite. Fernando
De Daniela a 14 de Agosto de 2014
Quando eu tinha 8 anos, recebi a notícia da morte da minha avó por atropelamento. Ela atravessou na faixa de pedestres, com o farol aberto para ela, mas o que ninguém sabia é que o farol estava aberto também para o carro que descia a ladeira e que não conseguiu frear em tempo quando viu minha avó. Me lembro de, quando tive entendimento para isso, ter questionado meus pais o motivo deles não terem processado o motorista do carro. A resposta foi simples: porque a culpa que ele vai carregar por ter tirado a vida de alguém já é punição suficiente. O texto é excelente Tite, e sinto muito pela dor que você carrega até hoje. Numa sociedade sedenta de sangue e tragédias, o respeito deu lugar às piadas e teorias conspiratórias. Triste realidade, muito muito triste.
De Francisco Teixeira de Almeida a 14 de Agosto de 2014
Só não lamenta a morte aquele que não tem empatia alguma (i.e. um psicopatia). Eu já vi uma quantidade razoável de mortos em trânsito e, mesmo não tendo vínculo algum com os envolvidos, sempre senti profunda tristeza pelo morto.

Morte por doenças ou por velhice também são tristes, embora sejam mais compreensíveis. Por velhice porque fica claro que não se vive para sempre e que o morto teve muitos anos de vida. Por doença porque a alternativa de se viver com dores ou como alguém que não pode mais sentir coisa alguma também é muito triste.

Mas a morte violenta, por acidente ou crime, não tem consolo. Não é possível racionalizar isso porque é absurdamente sem sentido. Quem sobrevive é obrigado a suportar a culpa, o trauma e/ou a sensação de perda. Isso vale também para os "sortudos sobreviventes, cujo motivo de sobreviver é tão aleatório quanto o motivo de morrer.
Enfim, a morte não deixa nenhum vivo incólume.
De Paulo a 14 de Agosto de 2014
Lamento o ocorrido tite, faz muito tempo? Estou lendo este texto no trabalho, e quase que me escapa uma lágrima. É uma pena que ninguém pense que um acidente fatal, o outro lado também sofre muito (como você disse, salvo as pessoas sem caráter) .... Como sempre ótimo texto.
De motite a 15 de Agosto de 2014
Sim, faz mais de 30 anos...
De Marcella a 16 de Agosto de 2014
Após ler esse texto.. gostaria sinceramente de te dar um abraço....Fabuloso,não consigo me expressar...
De motite a 16 de Agosto de 2014
Já me senti abraçado, obrigado!
De Thiago Martins Mariani a 20 de Agosto de 2014
Fica em paz, busca o bem. Acredita que houve um motivo e que você foi um instrumento deste motivo. Sinta-se amparado. A luz divina está em você sempre. Abraço forte
De Silas Freitas a 21 de Agosto de 2014
Tite sinto muitíssimo, não posso imaginar o peso que vc carrega, eu como vítima de um acidente com sequelas permanentes (paraplégico) já havia tentado me imaginar do outro lado da situação que ocorreu comigo, mas acredito que deva ser pior do que ser a "vítima", pelo que entendi no texto vc acredita em Deus, então acredite que ele sabe que vc não teve a intenção, ninguém nunca tem, porém as coisas ocorrem conosco por uma razão que, talvez, só um dia iremos entender...

Um abraço,
Silas
De Sanzio a 22 de Agosto de 2014
Muito triste sua história, Tite. Tenho mais ou menos uma ideia de como deve ser sua dor. Me questiono constantemente sobre o porquê de não ter saído um pouco antes ou um pouco depois, mas em nenhuma dessas indagações está uma vida que se foi.
Tudo o que posso te desejar é que, a mesma força que teve para seguir a vida até aqui, você tenha para continuá-la.
Grande abraço!
De Rodrigo Raizer Zendron a 26 de Agosto de 2014
Impressionante como suas palavras atingem diretamente a alma das pessoas!!! admiro seu desabafo e a coragem de tornar isso publico!!! Da pra ter ideia do seu sofrimento!! e de fato quase ninguém pensa na outra pessoa!! a que fica!! Um grande Abraço Tite e eu tenho certeza que você já foi perdoado... principalmente pela criança pois aquele coraçãozinho puro não tinha espaço para o rancor..
De Victor a 26 de Setembro de 2014
Já me envolvi em acidente, me lembro das noites que não dormi relembrando a cena daquele homem estirado ao chão, do semblante do socorrista do SAMU me respondendo sobre a situação do paciente e da cólera dos curiosos que ficaram em volta do acidente. Passei alguns meses sem dirigir, fiquei um pouco mais aliviado em saber que aquele homem não havia morrido mas que tinha sequelas do acidente. Ainda assim me pergunto como ele está hoje, em que afetou sua vida aquele dia. Não o procuro pois sua família não quer nenhum contato.

Ainda me assombra só imaginar que ele poderia ter perdido a vida... Te desejo força Tite.

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