Quarta-feira, 20 de Julho de 2016

A moto e o tempo

Scooterzinho.jpg

Quer andar ou ficar parado?

Como fazer para conquistar o bem mais valioso da vida 

Qual o bem precioso que não pode ser dado, nem tirado, nem comprado, alugado, emprestado, oferecido ou distribuído? O tempo! Hoje as pessoas se desdobram para articular suas vidas de forma a aproveitar ao máximo as 16 horas do dia em que ficam acordados. Nesse período precisam administrar o tempo para se alimentar, trabalhar, estudar, se divertir, se exercitar, ficar com a família de forma a sobrar oito horas para dormir. Nem todo mundo consegue. 

Lilian*, 24 anos, tinha um sonho: ser enfermeira. Mas para conseguir era preciso fazer um cursinho pré-vestibular, o que a estava torturando porque para pagar o cursinho era preciso trabalhar duro. Ela mora na zona leste, trabalha na zona sul e estuda no centro de São Paulo. São 32 quilômetros de distância que ela percorre para ir de casa para trabalho. E mais 32 para voltar, com a parada no cursinho. Para fazer esse percurso de ônibus Lilian precisava de duas horas e quinze minutos em média apenas em um sentido. Ou seja, quatro horas e meia para se deslocar de casa para o trabalho, estudo e voltar. 

- Sobrava menos de quatro horas para dormir e estudar! 

Até que Lilian percebeu que a saúde estava prejudicada porque simplesmente não conseguia se alimentar direito, se exercitar e muito menos dormir. O estresse a fez engordar quase dez quilos em apenas um ano e a perspectiva era piorar esse quadro, até que viu uma saída bem debaixo dos seus olhos. 

- Quando eu estava no ônibus, vi uma moça passando com uma motoneta entre os carros e ela foi embora, enquanto eu fiquei ali, parada um tempão! 

Depois de convencer a família, Lilian decidiu comprar um scooter usado, fez a moto-escola, tirou habilitação e fez a experiência de atravessar a cidade em duas rodas. 

- Sempre tive bicicleta a vida toda, adoro a sensação de liberdade que dá, mas nunca tinha pensado numa moto. Foi uma mudança radical na minha vida. Na primeira vez que fui para o trabalho com a ‘motoquinha’ cheguei tão cedo que fiquei esperando a empresa abrir! 

Mais acostumada com a dinâmica da scooter e com o trânsito, Lilian passou a fazer aquele mesmo percurso em 45 minutos! Ela ganhou três horas por dia, todos os cinco dias da semana, usando o scooter em vez de ônibus. 

- Minha vida mudou muito! Consigo dormir mais, estudar e ainda tomo café com a minha família, que não conseguia há mais de seis anos! 

E se alguém perguntar qual foi a maior conquista que a “motoquinha” lhe deu? 

- Qualidade de vida! Entrei na faculdade e ainda consigo fazer academia!!!

transito.jpg

Os carros param, as motos circulam, sem pressa... 

Como comercializar o tempo?

Esta personagem é real, como ela existem centenas de milhares de Lilians, Marias, Antônios, Josés que convivem com o drama da “falta de tempo”. São pessoas que deixam de estudar, de crescer profissionalmente, cuidar da saúde, ficar com os filhos porque passam muito tempo se deslocando no trânsito. Se pudessem comprariam mais tempo. Mas o tempo é uma grandeza que não é comercializada, quer dizer, em vez de comprar mais tempo, pode-se perder menos tempo. 

O deslocamento nas grandes cidades é o grande desafio para administrar o tempo. Hoje já se detectou que essa necessidade é tão importante que os jovens não se preocupam mais com automóveis ou casa própria. Descobriram que o maior benefício do aluguel é a possibilidade de morar perto do local de trabalho. E desprezam o automóvel porque as grandes cidades não estão mais comportando tanto carro nas mesmas vias. Reduzindo o percurso casa-trabalho pode-se até mesmo abrir mão de veículos motorizados e partir para meios como bicicleta ou mesmo taxi. 

Neste contexto a moto ganhou uma nova abordagem. Para alguns ela é essencial para melhorar a qualidade de vida. Passam menos tempo se deslocando e usam o tempo para atividades mais nobres. Ou enxergam a moto como um veículo de fim de semana, só pelo prazer de viajar em duas rodas. Assim como os barcos, alguns tratam a moto como um bem essencialmente voltado ao lazer. 

Mas quando olhamos para os números recentemente anunciados pela ABRACICLO – associação que reúne fabricantes de motos e bicicletas – vemos algo que não combina com essa realidade: as vendas de moto estão despencando em um ritmo assustador. Segundo dados da entidade, nos seis primeiros meses de 2016 houve uma queda de 33,4% nas vendas em relação a igual período de 2015, que já foi ruim! 

Como explicar que um veículo que pode promover a qualidade de vida está vivendo um período de queda nas vendas que é quase 50% a menos do que quatro anos atrás? Bom, parte está na conjuntura econômica que tirou não só os empregos (e dinheiro) dos brasileiros, mas também a confiança no futuro. Quem tem dinheiro guardado simplesmente não gasta porque não sabe o dia de amanhã. Mas acredito que também falta mostrar aos brasileiros o quanto a moto pode melhorar suas vidas. 

Basta ver como são feitas hoje as propagandas de motocicletas. São voltadas para a venda ao varejo, com anúncio de descontos, maior garantia, revisões grátis, troca de óleo grátis, parcelamento sem juros, troca com troco etc. A indústria e o varejo focam toda a publicidade apenas em cima de custo x benefício, mas esquecem de mostrar o real benefício.

O que a indústria precisa vender não é moto, mas tempo!

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Quer mais tempo para passar com os filhos? Perca menos tempo no trânsito. 

Trauma x ensino

Nos cursos da ABTRANS – Academia Brasileira de Trânsito – tem aparecido uma quantidade muito grande de novos usuários de motos, especialmente mulheres. O perfil do novo consumidor de moto mudou e parece que só a indústria não percebeu. 

Uma dessas alunas contou uma história chocante. Marisa* é dona de um buffet que presta serviços para eventos como festas de casamento, aniversários, cerimônias de empresa etc. Apesar da crise em todo o País, os negócios prosperaram e ela precisava visitar vários endereços por dia para apresentar a empresa, acompanhar a montagem, visitar fornecedores e prospectar novos clientes. Mas numa cidade como São Paulo, esse trabalho de carro limitava sua operação, por isso também decidiu comprar um scooter e quando foi se habilitar veio o choque. 

- O instrutor me perguntou se eu sabia andar de bicicleta e dirigir carro. Depois me colocou numa moto 250cc, mostrou a embreagem, o câmbio, mandou ligar e sair. A moto empinou, foi em linha reta e bateu em mais duas. Ele me xingou de tudo que foi nome e saí chorando, constrangida. Nunca mais voltei 

Aí está outro gargalo para a indústria: como vender algo tão precioso como o tempo se não for capaz de ensinar a ferramenta do jeito certo? Um instrutor de moto-escola mal treinado pode acabar com horas de trabalho de um bom vendedor de moto. Como vencer o desafio de vender algo se não ensinar como manusear? 

Felizmente a Marisa fez um curso ABTRANS, tirou a habilitação, comprou um scooter pequeno e hoje consegue visitar o dobro de endereços no mesmo tempo e ainda sobra tempo para ficar com a família. O que a fez perder o trauma foi um paciente e didático método de aprendizado que só foi possível em uma estrutura feita 100% para atender o novo motociclista. Porque a “formação” promovida pelas moto-escolas limita-se a um adestramento para passar na prova de habilitação e algumas leis de trânsito. O resto, o novo motociclista aprenderá na rua, se der tempo.

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Curso de pilotagem ajuda a entender que moto se pilota sem pressa. 

Tem um tempo aí?

Outro equívoco promovido não só pela indústria como pela mídia especializada (e eu me incluo nela) foi vender a ideia de que moto serve para ganhar tempo, por ser um veículo ágil no trânsito. 

Esta proposta, que aparentemente parece lógica e inofensiva, trouxe na garupa um componente perigoso, porque a agilidade é um conceito primo-irmão da velocidade. Além disso, o conceito de ganhar pressupõe que também pode-se perder. Colocando esses dois conceitos lado a lado temos aí sim a perigosa mensagem que moto é feita para ganhar tempo, por isso você precisa correr. Mas não é verdade. 

Ninguém ganha tempo, porque além de ser uma medida abstrata, o relógio tem um limite físico que são os 60 segundos. O máximo que podemos fazer é não perder tempo. Por isso o conceito a ser trabalhado precisa mudar de foco: a moto não é um veículo feito para ganhar tempo, porque com ela nós não perdemos tempo! 

O cérebro é uma meleca cinzenta totalmente programável. Assim como um computador, ele precisa que sejam fornecidos dados certos para administrar e gerenciar as ações. Dependendo da forma como esses dados são imputados o resultado pode ser o benefício ou a – literal – dor de cabeça. Daí a importância vital de apresentar a moto de forma que o cérebro assimile o que ela tem de bom a oferecer e não a possibilidade de visitar o pronto-socorro. 

É por isso que fico visceralmente enraivecido quando vejo “profissionais” de segurança exibindo acidentes com motociclistas, na crença ingênua de que a imagem servirá de lição. Eles se esquecem que o cérebro é programável e assimilar o acidente (o lado ruim da moto) pode não apenas servir para absolutamente nada em termos de ensino, como causar um trauma que irá tirar a naturalidade de pilotar. 

Sim, vender moto não é fácil, sobretudo em um período de recessão econômico. Talvez se fábricas e entidades ligadas a ela mostrassem o maior benefício das motos as coisas poderiam mudar. Pense na Lilian. Ela só conseguiu melhorar de vida depois que aprendeu a valorizar o tempo e isso foi obtido graças a moto. Quem, nesse mundo, tem CINCO horas para usar apenas em deslocamento? As três horas a menos que ela conquistou foram vitais para estudar e entrar na faculdade. Hoje ela é enfermeira, bem sucedida, graças apenas a uma mudança de postura. 

Engana-se quem vende a moto como um veículo feito para ganhar tempo, porque com ela a gente simplesmente não perde tempo. Esse é o conceito que o cérebro precisa assimilar para traduzir em uma pilotagem segura sem necessidade de correr. As pessoas que você vê correndo e se acidentando no trânsito são pessoas que correriam e se acidentariam com qualquer veículo, ou até a pé. Porque o cérebro delas foi programado para ganhar tempo a qualquer custo, mesmo que o preço a pagar seja a vida. 

Em mais de 40 anos pilotando moto em São Paulo posso dizer que já devo acumulado tempo correspondente a alguns anos. Pena que não posso dar esse tempo para ninguém. 

* Os nomes foram alterados para preservar a identidade.

 

publicado por motite às 16:50
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5 comentários:
De Renato Campestrini a 20 de Julho de 2016
Muito boa a abordagem.
Sou testemunha de que o veículo proporciona o ganho do tempo.
No meu trajeto, a diferença entre a motocicleta e o automóvel é de trinta minutos aproximadamente, isso sem qualquer abuso ou risco desnecessário.
Infelizmente muitos vêem a motocicleta como veículo que para ser útil, precisa correr.
Parabéns pelo texto, Tite.
De Wellington Cassiano a 21 de Julho de 2016
Mais uma vez, excelente texto, Tite. Outra coisa que ajuda em nada é a grande mídia que só menciona moto para divulgar estatísticas negativas. Lembro-me da excelente pesquisa feita pelo Hospital das Clínicas que apontou não apenas números dos acidentes, mas os culpados também, o que normalmente é omitido nessas "notícias". E lembro-me mais ainda de certos grandes telejornais usarem essa pesquisa parcialmente, apenas para continuarem a salientar o lado negativo da moto. Não é à toa que nossos polititicos só propõem bobagens quando tentam legislar sobre motos.
Reforma na maneira de preparar os novos motociclistas é algo que já deveria ter entrado em pauta e sido aprovado. A máfia das auto-escolas no Brasil precisa de data para acabar. Forte abraço!
De walterjundiai a 26 de Julho de 2016
Ótimo texto.Pórem a queda na venda das motocicletas novas não é so culpa da crise econômica,o preço das motos está sofrendo reajustes.A mesma moto de baixa cc que custava uns 8.000 reais a poucos anos atrás hoje custa mais de 10.000 reais
De Clóvis Brito a 9 de Setembro de 2016
Depois da experiência de sofrer um assalto, mais vezes tenho optado por algumas horas no conforto do meu carro. Isso é triste, admito. Deve ser coisa de quem tá ficando velho, mas quando um assaltante encosta uma arma na cabeça de alguém para subtrair um objeto, ele leva com ele muito mais do que isso.
Algo precisa ser feito, efetivamente, em especial em relação ao comércio de peças usadas (roubadas) e aos pancadões. Ambos bastante conhecidos da polícia.
De Anderson a 8 de Dezembro de 2016
Poxa amigo, excelente matéria.

Sou motociclista recém habilitado e muitas dúvidas e receios ainda passam pela minha cabeça.

Materias como essa me deixam mais sereno.

Obrigado de novo e continue nos prestigiando com sua excelente literatura e valoroso conhecimento.

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