Sábado, 2 de Agosto de 2008

Vida corrida – Inteligência

Kart, melhor escola para formar pilotos. Esse sou eu em 1977

     Quando tive vontade de ser piloto de automóvel procurei a melhor escola de pilotagem da época, do Expedito Marazzi. O “velho” era uma figura adorada e sua escola de pilotagem uma adaptação dos ensinamentos de outro adorado piloto, o italiano engenheiro Piero Taruffi, o inventor da escola de pilotagem. Deixando as traças de lado, posso afirmar que 50% de tudo que sei sobre competições aprendi naquele curso feito em 1979. Os outros 50% aprendi um pouco com o professor, Walter Travaglini, em 1977 na escolinha de kart; mais um tanto com Aurélio Barros, tio de Alexandre Barros e muito com Freddie Spencer no curso que fiz nos EUA, os dois últimos já nos anos 90. Como se vê, passei 30 anos aprendendo a pilotar – e acho que ainda faltou muita coisa, porque competição é um aprendizado eterno.
     O Marazzi costumava arrolar as qualidades humanas que definiam um bom piloto. Dos cinco sentidos ele enumerava quatro, porque não conheço nenhum piloto que tenha de lamber uma vela para acertar a mistura:
      a)  Visão – um bom piloto precisa necessariamente ter uma ótima acuidade visual e preferencialmente ser isento de qualquer lente corretiva. Hoje as cirurgias de correção são simples, baratas e rápidas. Mas 30 anos atrás quem usava óculos sofria para ser piloto!
     b) Audição – claro, é preciso ouvir cada rotação do motor, não basta ler o conta-giros, é preciso ouvir se tem qualquer alteração no som do motor. Mesmo com tampões de ouvido o piloto consegue ouvir quando um escapamento trinca, por exemplo.
     c) Olfato – você pode me achar louco, mas sim, é preciso perceber se tem alguma coisa queimando, porque até sentir o calor na bunda pode ser tarde demais. Ou então “farejar” quando o carro ou moto à sua frente está queimando óleo demais, sinal e quebra iminente.
     d) Tato – que pode ser substituído por sensibilidade, é a capacidade de sentir na pele todas as reações do veículo.
     e) Memória – sim, essa é uma parte importante, porque o bom piloto precisa decorar cada detalhe da pista o mais rapidamente possível para depois usar o tempo de treino apenas no acerto da máquina. Enquanto o piloto não estiver com 100% da pista na cabeça não consegue definir nem a relação de câmbio que vai usar. Claro, isso facilita a vida de qualquer um. Além disso, durante a corrida o piloto só sabe seu tempo com uma volta de atraso (quem não tem cronômetro no painel, nem comunicação com o box). A equipe mostra a placa com o tempo da volta anterior. Então o piloto precisa refazer a penúltima volta mentalmente para saber onde acertou ou errou e se concentrar em acertar a volta atual. Complicado? Isso não é nada!
     f) INTELIGÊNCIA – Assim mesmo, tudo em maiúsculo e grifado porque é a principal característica humana que faz a diferença entre o bom e o mau piloto. Nesse capítulo engloba tudo: rapidez de raciocínio, estratégia, sensatez, calma, capacidade de previsão, concentração e uma dezena de outros atributos.
     É sobre inteligência emocional que vou comentar. Como já escrevi antes, piloto burro nasce morto, mesmo assim até os gênios têm seus dias de antas. Quem não se lembra do Ayrton Senna batendo no retardatário Satoru Nakagima em Interlagos? Ou do Michael Schumacher simulando uma batida no treino de Mônaco para impedir o Alonso de fazer a pole-position. Ninguém está imune a erros, mas errar é diferente de persistir no erro.
     Não há qualquer dúvida que o kart é a melhor escola porque depois da largada o piloto tem pouco auxílio da equipe. Ele tem de decidir tudo sozinho, bolar a estratégia, analisar os adversários, controlar os tempos de volta, as diferenças entre os adversários próximos e até saber quando é hora de mudar a estratégia. Lembro que karts (e motos) não tem espelhos retrovisores.
     Quando surgiu a moda do kart indoor eu participei de várias corridas, mas sem levar muito a sério. Correr de kart indoor para mim é como um jogador da seleção brasileira de futebol disputar uma pelada entre amigos. Aceitava correr, mas sempre com muito fairplay, inclusive dando várias colheres de chá aos meus amigos e adversários. Porém, mesmo nessas brincadeiras eu praticava tudo que havia aprendido em décadas de competição.
     Chegava mesmo a largar em último de propósito só pra dar mais emoção às provas. Ou então simulava uma quebra, entrava no box, esperava alguns minutos e saía para passar todo mundo e ganhar a corrida. Como bom ariano não gosto de entrar em qualquer competição se não for para ganhar.
     Até que a editora na qual eu trabalhava realizou um campeonato de kart indoor. A maioria dos jornalistas já tinha experiência e isso elevou o nível das disputas, o que serviu de estímulo para levar a sério. Não tinha prêmio, nem troféu.
     Por força de vários compromissos profissionais eu e meu mais direto adversário tivemos de faltar em algumas etapas. No final das seis etapas eu estava liderando o campeonato com 4 pontos de vantagem. Para ele ser campeão precisava vencer e eu terminar até terceiro lugar. Com essa combinação de resultados terminaríamos empatados e ele seria campeão pelo critério de desempate. Ambos tínhamos uma vitória cada e um descarte de resultado. Tudo estava rigorosamente empatado. Essa última prova adquiriu contornos de uma final de mundial de F1.
     No dia da corrida meu adversário apareceu com um “convidado”. Espertamente ele contratou um amigo para me atrapalhar, mas eu estava confiante porque era muito rápido naquela pista da decisão. Ao final do treino o “convidado” fez a pole-position para espanto de todo mundo. Como a largada era logo após o treino não pude contestar o resultado, mas depois ficamos sabendo que ele tinha realmente cortado caminho!
     Ele largou ao meu lado e assim que deu a luz verde o cara veio pra cima e me fechou para deixar o meu adversário passar pra primeiro. Fiquei louco da vida, em terceiro e quase voei na traseira dele pra acabar a corrida dos dois, mas quem tinha a perder nessa história era eu mesmo.
     Nessa hora começou o que chamo de “jogo de xadrez” das competições. Precisei analisar todas as jogadas para dar meu xeque-mate. Era impossível ultrapassar o segundo colocado porque ele me colocaria pra fora da pista sem a menor dúvida. Se a corrida terminasse naquela posição eu perderia o campeonato. Precisava ultrapassar o cara de qualquer jeito.
     A corrida tinha 40 voltas e isso me dava bastante tempo para pensar na estratégia. A pista tinha um painel luminoso com o tempo de volta de todos os pilotos. A cada volta eu analisava aquele painel e percebi que demoraria algo perto de 20 voltas para chegarmos nos retardatários. Era uma chance: aproveitar algum retardatário para passar o segundo colocado. A estratégia era arriscada porque deixaria poucas voltas para partir pro ataque.
     Pelo painel eu vi que nas primeiras voltas o meu adversário era em média de 2 a 3 décimos de segundo mais rápido, mas que perto da metade da corrida os tempos eram quase iguais, ou seja, ele estava com a corrida sob controle, com quase 10 segundos de vantagem. O quarto colocado estava também a uns 10 segundos atrás de mim, que continuava grudado no pára-choque do segundo colocado esperando um erro ou os retardatários.
     Assim que chegamos nos retardatários os bandeirinhas foram exageradamente eficientes ao sinalizarem – fato raro – e os pilotos abriam para passarmos. Meu plano “A” tinha ido pro vinagre.
Foi então que, ao passar pelo painel das voltas, caiu uma enorme ficha! Nosso regulamento previa um ponto extra ao pole-position e para o autor da volta mais rápida. A pole já tinha sido feita pelo convidado, sobrava o ponto extra pela volta mais rápida e isso eu ainda podia conquistar. Principalmente porque o primeiro colocado estava num ritmo confortável ciente da minha terceira posição.
     Faltando cinco voltas parti para o plano “B”: fazer a volta mais rápida! Para isso eu precisava me afastar do segundo colocado para ele não me travar, fazer uma volta derrapando bastante para aquecer bem os pneus e teria duas voltas para minha flying lap.
     Em uma volta eu forcei todas as frenagens e saídas de curva para aquecer os pneus e me afastar do segundo colocado. Na volta seguinte – a penúltima – ainda dei um espaço maior para não ter chance de ser atrapalhado e joguei tudo na última volta, porque assim o líder não teria tempo de revidar. Entrei na última volta absolutamente concentrado: não pensava em nada, apenas em frear-virar volante-acelerar. Foi a volta perfeita, daquelas que ficam na memória por dias seguidos. Cada centímetro de pista foi completamente aproveitado. Foi uma pilotagem limpa, sem nem um errinho sequer.
     Recebi a bandeirada em terceiro e respirei aliviado porque tinha certeza de ter feito a volta mais rápida. Meu adversário e seu convidado estavam festejando o título, todo mundo cumprimentando o “campeão” enquanto eu desci do kart, totalmente suado e fui na torre de cronometragem. Peguei a folha de tempo, olhei, dobrei e fui me encontrar com os meus adversários. Cheguei perto do “campeão” e perguntei:
     - Você lembra do regulamento todo?
     - Claro, por quê?
     - Lembra que o autor da volta mais rápida ganha um ponto?
     Silêncio total...
     - Então – continuei – sinto estragar a festa, mas o campeão sou eu!!!
     E mostrei a folha da cronometragem, com uma estrelinha na frente do meu nome e a devida observação: * volta mais rápida. Meu adversário pegou a folha, olhou um tempão, bateu na testa e gritou:
     - PQP, NA ÚLTIMA VOLTA!!!
     Inteligência, meu caro, um bom piloto precisa ser mais do que rápido, precisa pensar sempre um passo à frente dos outros. É como um jogo de xadrez: você precisa antecipar as jogadas do seu adversário.
 
 
Esse aí na frente sou eu, 20 anos depois...

 

publicado por motite às 00:51
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9 comentários:
De Adalberto a 2 de Agosto de 2008
Fantastico texto, bacana mesmo.
Eu ainda estou me devendo um curso de pilotagem.
Eu participava de um campeonato "corporativo" por anos a fio, e sempre os mesmos adversarios, mas em kartodromo com karts de aluguel, a passei por situacoes parecidas.
Corridas com chuva eu costumava ganhar por um simples fato, nao errava! E no fim era o mais rapido.
De Rogério Miron a 2 de Agosto de 2008
...
Hahaha... Legal de mais essa história Tite.. !!!!!

Tite, pq vc não escreve um livro sobre Teorias Técnicas e Práticas da Pilotagem Esportiva de Motociletas !??..

Lógico que niguém vai aprender a pilotar uma moto esportivamente APENAS lendo um livro.. Mas com certeza daria grandes noções..

Eu sempre procurei informações teóricas (literatura) sobre pilotagem, mas só encontrei em algumas revistas de forma muito sucinta.

Quando lia sobre alguma técnica,, assistia corridas de MotoGP tentando observar (enxergar) a teoria sendo aplicada e depois saía às ruas com minha moto e tentava executar na prática.

Para quem nunca fez um curso com eu, até que aprendi muito sobre detalhes do tipo - contra-esterço, pêndulo, postura na moto, regulagem básica de suspenções, entradas/meio/saídas de curvas, coisas assim..

Quando puder, farei um curso, mas enquanto isso seria bom ir lendo sobre as teorias..

Valeu Tite.
...
De motite a 2 de Agosto de 2008
Roger

Já pensei nisso, mas sem querer jogar água na fervura, NINGUÉM aprende pilotar lendo um livro.

Na verdade esses textos da série "Vida Corrida" é um eboço para um segundo livro. As histórias de competição ajudam muito na vida e no mundo corporativo, tipo um auto-ajuda competitivo.
De Ronaldo ARRIGHI a 3 de Agosto de 2008
Órfão...

Pow Tite!...

Pode até parecer egoísmo de minha parte (e de outros), mas, fiquei feliz em saber que você esta retomando os seus "ofícios" junto ao mundo das motocicletas e derivados.
Não que eu ache que você não deva aceitar novos desafios ou algo do gênero, mas é que a lacuna deixada (quando você se retira) é tão grande que a palavra que (talvez) melhor poderia descrever isso é "ÓRFÃO".
Acho que é esse o "sentimento".
É como perder o pai das informações com conteúdo. Como descobrir que sua mãe por engano jogou fora seus livros de consulta cheios de anotações relevantes.
Sem puxa-saquismo, mas, não relacionar o Geraldo "Tite" Simões ao motociclismo, gera um desconforto e uma insegurança muito grande. Limita e muito a nossa confiança em algo com uma diversidade de opiniões tão vasta quanto incoerentes.
Você além de um grande conhecedor do assunto é um dos mais confiáveis formadores de opinião do país. E como se não bastasse ainda nos brinda com aulas gratuitas de língua portuguesa, outro "assunto" que és dominador.
Resumindo, seja muito bem vindo em seu retorno, e principalmente, SUCESSO em suas novas empreitadas.
E se por acaso resolver aceitar algum novo desafio fora do “mundo das duas rodas”, não nos abandone totalmente, ok?

Realmente muito sucesso e saúde pra você amigo Geraldus Titeanicus Simoneus, o resto é conseqüência.

Abraço brother.
De Dudu a 4 de Agosto de 2008
Afff, parei na parte que começou a inteligência emocional... Que coisa de baitola.
De André a 6 de Agosto de 2008
/\
/\
/\ Como era a frase mesmo? Piloto burro nasce morto? Acho que é a melhor explicação para o Dudu.
De Paulo Ricardo a 8 de Agosto de 2008
por ESSES e por outras que o Tite não volta pro motonline, e PENSA em voltar pro mundo das motos... Um P** dum texto, e o cidadão me fala que é baitolice...

mas, o tite disse... "PILOTO BURRO NASCE MORTO
De Rodrigo a 15 de Setembro de 2008
A "vingança" é um prato que se come frio.
Mais vale um regulamento na cachola do que 2 nas mãos.
São alguns ditados que me vem a mente ao ler esse pusta texto.
Essa narração da escalada para a vitória daria um ótimo final de um filme de corrida.
De Geovanni Guido Di Bello a 18 de Setembro de 2014
Emocionante! Adorei a história da corrida de kart. Parabéns pelo texto e principalmente pela vitória do campeonato!

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