Para quem se acha imortal: a kryptonita do motociclista é o pára-choque de um caminhão
A síndrome de Highlander
Nos anos 80 o psicólogo e professor Dan Kiley surpreendeu o mundo científico com a publicação do livro Síndrome de Peter Pan, no qual defendia a doentia incapacidade de alguns homens em crescer, no sentido do amadurecimento intelectual e comportamental. Segundo esta teoria (já aceita como doença), os homens com esta síndrome tem dificuldade de aceitar que já entraram no mundo adulto e continuam se comportando como adolescentes, de forma irresponsável, rebelde e quase sociopata.
Bom, nem precisava escrever um livro, porque até a Eva já tinha percebido que o Adão e todos os homens que vieram a seguir nunca passaram dos 15 anos de idade!
Aquilo que as mulheres tanto detestam na mais evidente característica masculina, e causa principal das eternas crises conjugais, é também responsável pela fila cada vez maior nos hospitais e agências funerárias. Sim, quem me conhece sabe que não compartilho o tabu geral da mídia especializada ao tocar no tema morte. Motociclistas morrem sim.
Quando eu dava aulas de fotografia na faculdade de jornalismo costumava começar com uma pegadinha: qual a condição essencial para enxergarmos os objetos? A quase totalidade dos alunos respondiam “ter luz”. Então eu usava uma imagem comum nos filmes policiais: imagine que você está sendo interrogado em uma sala escura. À sua frente um detetive joga um facho de luz bem forte nos seus olhos, você será capaz de vê-lo? Não, obviamente, no entanto tem luz! A condição para vermos os objetos é que haja a reflexão da luz. A luz atinge o objeto que volta para meio e seus olhos podem vê-lo.
Hoje, no meu curso de pilotagem de moto SpeedMaster eu faço a seguinte pergunta: qual a condição essencial para um motociclista morrer? E as respostas são variadas, como imprudência, negligência, imperícia etc. Mas a resposta certa é apenas uma: a condição essencial para que qualquer pessoa morra é estar viva, apenas essa, mais nenhuma!
Mas é disso que muitos motociclistas esquecem: nós somos mortais!
A partir daí desenvolvi a teoria da Síndrome de Highlander, aquele personagem do filme do mesmo nome, que atravessa a história como imortal. Ele só morre se cortarem-lhe a cabeça. A imortalidade já foi tema de inúmeros livros, filmes e permeia a história da humanidade desde os primórdios. Um bom livro (e filme) a respeito é “Orlando, a mulher imortal”, de Virgínia Woolf.
O problema está na extrapolação da ficção para a realidade e pessoas agirem como se fossem imortais. É isso que vejo hoje em dia nos vários filmes na Internet com motociclistas em motos esportivas pilotando a 300 km/h nas estradas como se fosse a coisa mais normal do mundo. Em um destes filmes pode-se ver o motociclista ultrapassando os carros pela direita a mais de 290 km/h e ainda por cima com a postura errada, equipamento inadequado e total ausência de técnica.
Pouca gente sabe, mas até para correr a 300 km/h na reta é preciso técnica, porque nós, pessoas, quando colocadas em cima da moto somos o pior apêndice aerodinâmico possível.
E não pense que estou falando de filmes europeus ou americanos, onde começou esta mania, mas são imagens feitas no Brasil, em estradas bem perto de suas casas.
Ah, doce adrenalina
A principal característica a Síndrome de Highlander é a prepotência, padrão de comportamento que transborda nos homens na faixa de 15 a 25 anos. É aquela famosa sensação de que as coisas ruins só acontecem com os outros. A fascinação pelo perigo vem daí e do fanatismo por histórias de personagens heróicos como Super-Homem e outros.
Por isso o exército recruta jovens na faixa de 18 anos. Tem nada a ver com o vigor físico, porque um adulto de 30 anos pode ser mais bem preparado fisicamente do que um sedentário de 18. Na real é para aproveitar essa prepotência e mandar o moleque em direção ao campo minado porque ele tem certeza de que só os outros explodirão pelos ares.
Quando vejo essas imagens de motociclistas aparentemente adultos, muitas vezes esclarecidos, donos de empresas, bem posicionados financeiramente (uma moto destas custa mais de R$ 50.000) e até inteligentes não consigo entender em que parte da vida ele deu uma guinada de volta à adolescência.
Não é possível que um homem adulto, com dependentes à sua espera, com um futuro inteiro pela frente, muitas vezes calçado na competência profissional e intelectual seja capaz de se atirar numa estrada a 300 km/h disposto a matar ou morrer só pelo efêmero prazer da velocidade!
Quando estou com muita vontade de correr vou pra pista e deixo a vontade passar!
É inaceitável que a bordo destas motos estejam pessoas que dirigem uma empresa, que educam filhos, que controlam administrações públicas, mas que voltam à adolescência só para provar aos amigos que tem um brinquedo mais bacana ou é mais corajoso. Tenho a clara impressão de que no momento que este homem adulto veste o macacão de couro, luvas e botas ele incorpora o super-herói dos quadrinhos. O seu macacão é o equivalente à roupa do Super-Homem. Acorda, aquilo era ficção! A kryptonita do motociclista é o pára-choque de um caminhão!
Pode parecer inacreditável, mas eu, com toda experiência de 40 anos como motociclista, sendo 22 anos como piloto de competição e razoavelmente experiente morro de medo de correr na estrada! Meus amigos até brigam comigo porque sou muito lento para os padrões da maioria, mesmo quando estou montado em uma esportiva de 180 cavalos. Sem falar que odeio pagar multas.
E não me venham com aquele papo de que quem compra uma moto esportiva quer acelerar tudo que ela dá porque isso é desculpa muito da esfarrapada. Eu tive arma de fogo por mais de 15 anos e nunca matei ninguém! Lembro de ter comprado a arma (um rifle de caça) porque achei-a bonita, bem acabada e fácil de acertar os alvos que criava no sítio: latinhas de alumínio, garrafas pet e abacates. Mas vendi a arma porque concluí que seria incapaz de atirar em uma pessoa ou qualquer outro ser vivo.
Portanto é perfeitamente possível ter uma moto esportiva pela beleza das linhas, pela tecnologia, pelos aspectos mais diferentes, sem se deixar seduzir pela velocidade insana, em local inadequado. Eu tive uma Honda CBR 1000RR por anos e rodava com ela na estrada super numa boa, só pelo prazer de curtir a moto com todo aquele motorzão!
Muitos psicólogos já tentaram definir esta necessidade que temos em competir com veículos em alta velocidade. Nenhuma destas teorias chegou nem perto da realidade, porque psicólogos não são pilotos. Mas Platão foi o que melhor definiu, ao dizer, quatro séculos antes de Cristo, que o sonho de todo homem é ser herói.
Os verdadeiros heróis são aqueles que perceberam a reles condição de mortais e decidiram curtir a velocidade de suas esportivas no local certo: na pista de corrida. Hoje já existem vários cursos de pilotagem específico para motos esportivas em várias cidades, realizados em autódromos seguros. Também são feitos track-days para que o motociclista possa extravasar essa sanha por velocidade, sem correr o risco de levar mais algum inocente junto.
Não tem nada mais gratificante do subir no pódio, mas a foto é montagem!
Durante uma corrida, ultrapassar um adversário é o momento mais sublime. É a prova de coragem a habilidade ao mesmo tempo. E melhor: está todo mundo vendo o seu feito heróico. Subir ao pódio e levar para casa um troféu é a recompensa pelo heroísmo. E vencer é a glória total que nos coloca efetivamente na condição de super-herói para todo mundo ver e respeitar. Então porque fazer isso na estrada onde poucos estão vendo e a maioria odiando aquilo?
Aliás, quando vejo estes filmes no youtube de motos a 300 km/h na estrada, não consigo achar o sujeito corajoso nem habilidoso, só vejo um louco sem noção. O melhor lugar para provar coragem e habilidade é na largada de uma corrida, com 15 motos na frente, mais 15 atrás e você ali no meio, com o coração a 220 bpm, pressão arterial em 18:12, encharcado de adrenalina, mas absolutamente excitante. Confesso a você leitor(a) que uma das situações mais difíceis de um piloto é parar de correr, porque a adrenalina vicia, mas como qualquer droga pode matar!
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