(Já perdi a conta de quantos testes fiz na vida...)
A internet trouxe à superfície do conhecimento uma série de especialistas. Tem especialista de tudo, em tudo e sobre tudo. No meu tempo de estudante, se quisesse saber o PIB da Mauritânia precisava me enfiar numa biblioteca e só acharia dados tão velhos quanto os pesquisadores.
Hoje está tudo à distância de um clic. Só que antes a gente buscava informações em documentos ou pessoas comprovadamente credenciadas. Eram professores, cientistas, diplomatas, estudiosos do assunto. Hoje é capaz de alguém fazer um site sobre a Mauritânia sem nunca ter visitado o país. E ainda se dizer especialista.
Com o nosso objeto de paixão, as motos, não seria diferente. Hoje qualquer pessoa registra um nome no www.registro.org, aprende meia dúzia de comandos e faz um blog, site, qualquer meio para batizar de “veículo especializado”. E ai de quem se atrever a chamá-lo de “mais um blog”. Ou “mais um site”.
As pessoas que escrevem sobre motos se dividem em:
1) Usuários – São os donos de uma determinada moto (ou adorador de uma marca). Um deles cria um fórum e a partir daí dá ao veículo virtual toda caracterização de imprensa especializada. Faz testes, publica artigos, interpreta dados, analisa defeitos, corrige problemas etc. E convida os usuários daquele produto (ou admirador da marca) a participar com testes, depoimentos, avaliações etc. É uma fonte enorme de pesquisas, mas falta um fator elementar em todo veículo especializado: imparcialidade.
Os donos de motos são suspeitos para analisar motos! Sejam as deles, sejam as dos outros. Sobretudo no Brasil, onde as motos são proporcionalmente mais caras, muitas vezes o usuário ralou pra caramba pra realizar o sonho de ter o almejado modelo. Ninguém admite que comprou uma moto ruim, mesmo que tenha feito isso, pelo simples fato de não querer passar atestado de salame.
Só pra ilustrar, cerca de dois anos atrás, um amigo resolveu comprar uma Buell, logo que chegaram as primeiras unidades. Perguntou pra mim e para outro jornalista especializado, que não posso citar o nome, (mas tem apelido de um anelídeo minhocofórmico) o que achávamos da moto. Naturalmente eu dei minha opinião sincera: “um lixo!”. Meu colega jornalista foi mais político e deu várias voltas para convencê-lo a comprar outra moto. Mas ele foi à loja e fez um cheque de 40.000 reais!
Ele amava aquela moto! Só tinha elogios e me enchia o saco porque eu tinha aconselhado outra coisa. Era capaz de partir pra briga se falássemos mal dela. Depois de um ano e de enfrentar problemas mecânicos, elétricos e de falta de peça de reposição, decidiu vendê-la. Após meses de tentativa conseguiu passá-la adiante por R$ 20.000. Hoje se alguém pronuncia a marca Buell perto dele é capaz de ter uma crise nervosa...
Da mesma forma que nenhum pai gosta de passar metade de uma reunião na escola ouvindo dos professores as piores qualificações a respeito do filhote, dono de moto nunca admite que tem um abacaxi nas mãos. Por mais que a casca seja grossa, cheia de espinhos, difícil de descascar e com uma coroa serrilhada na ponta!
Em suma, não adianta se basear em usuários para avaliar um produto, porque atestado de otário é um documento que ninguém quer ostentar. A exceção à regra são as informações valiosas sobre pós-venda, tais como disponibilidade e preço das peças, atendimento nas concessionárias, garantia etc. Não se pode confiar na opinião de usuário quando se tratar de durabilidade e resistência porque esses dados dependem fundamentalmente da forma como a moto é tratada.
2) Especialista amador – Esse é aquele que teria tudo para ser um jornalista especializado, menos o conhecimento. Ele estuda tudo sobre a moto, incluindo Física, mecânica dos movimentos e todas as teorias sobre construção de chassi. Sabe de cabeça todas as fichas técnicas das motos fabricadas nos últimos 40 anos. Identifica motos pelo som e, se bobear, adivinha a cor pelo ronco do motor! Enfim, é um estudioso! Porém não pilota as motos! Seu repertório é restrito a alguns modelos que passaram pela sua vida. Mesmo assim cria um blog (ou mesmo site) para avaliar os novos modelos. Invariavelmente é o que chamamos de “piloto de ficha técnica”: o cara pega a ficha técnica e tenta adivinhar como a moto se comporta sem jamais ter sentado nela.
Ao observar a técnica de uma custom, por exemplo, conclui, pela grande distância entre-eixos, que aquela moto não é boa para curvas de baixa velocidade. Não diga! E os leitores, então, ficam impressionados pela capacidade de interpretação de uma ficha técnica!
3) Especialista avançado – Esse é o que vive de e para as motos. São os palpiteiros pagos para... palpitar! Os jornalistas especializados se encaixam nessa turma, assim como todo pessoal que trabalha seriamente com moto, como mecânicos, preparadores, engenheiros, pilotos de teste etc. Esses últimos são os palpiteiros que mais têm referência para dizer como é uma moto, do ponto de vista técnico e não achológico. O pilotos de teste não nasceram de um dia pra outro. Não foram colocados nessa posição por acaso, nem por falta de opção na vida, mas foi algo que estudou, pesquisou e batalhou pra conquistar.
De tempos em tempos aparece um leitor perguntando “o que preciso para ser piloto de teste?”. E geralmente eu respondo “Primeiro, precisa gostar de ser pobre!” Montar em uma moto e dizer como ela é não faz de ninguém um piloto de teste, por melhor intencionado que seja. É preciso, acima de tudo, parâmetros. Repertório de experiências que funcionará como ferramenta na hora de analisar um novo produto.
Quem nunca passou um dia inteiro em uma pista, testando diferentes compostos de pneu não tem um repertório grande suficiente para avaliar se um pneu ficou bem casado com a moto, ou não. Ou, como costumo ouvir e ler alhures por aí, dar palpite sobre determinada marca ou categoria de pneu. Eu mesmo parei de opinar sobre pneus porque faz muito tempo que não acompanho os testes comparativos. Mas me divirto ao ouvir “especialistas” condenarem um pneu porque gasta muito, ou porque é duro, barulhento, etc.
Não é só isso. O piloto de teste também precisa estar dentro do modelo de biótipo imaginado pelo fabricante para cada moto. Um sujeito de 1,90m de altura nunca poderá julgar se uma pequena 125cc é confortável, ou se um scooter tem boa suspensão. Ele está fora do padrão para aquele veículo. Se os projetistas levam em conta um motociclista padrão de 1,80m de altura e 80 kg como posso confiar no julgamento da posição de pilotagem avaliada por um piloto de 1,60 e 100 kg???
Quando escrevo algum teste sempre faço questão de frisar “para meu peso e altura” a moto é assim, assada, cozida ou frita. E olha que nem estou tão fora do padrão...
Por fim, o conhecimento de pilotagem. Um dos aspectos mais difíceis de avaliar na moto é a frenagem, porque frear exige um padrão e nem todo mundo consegue atingir esse padrão. Um piloto pode frear uma moto a 50 km/h em 18 metros e outro em 25 metros. Quando comecei a fazer testes para a revista Duas Rodas eu levava as medições feitas pelo Gabriel Marazzi e analisava se estava muito fora ou próximas das minhas. O Gabriel era a referência dos primeiros pilotos de teste porque tinha um sistema bem meticuloso de medição. Apesar dos instrumentos rudimentares, os resultados eram avalizados pelos fabricantes. Quando fazíamos testes juntos era melhor ainda, porque tínhamos uma forma de julgar se algum dado estranho era resultado da moto ou da nossa pilotagem.
Hoje os instrumentos de medição melhoram muito, felizmente, e um equipamento do tamanho de um maço de cigarros faz todo trabalho de registro de velocidade, aceleração, retomada, com precisão e via satélite! Tempos modernos...
Nada disso adianta sem o elemento primordial: a isenção. E é aqui que tenho de separar o ofício do piloto de teste do de jornalista especializado. Algumas vezes, como é meu caso, o piloto de teste e o jornalista são a mesma pessoa. Outras vezes tem um que pilota e outro que escreve. Em qualquer caso a isenção é fundamental para evitar deslumbramentos. Por exemplo, nem a moto considerada melhor do mundo é perfeita. Se o piloto de teste não tem referências pode cometer a vulgaridade de classificar uma moto como sendo “a melhor que já pilotei na vida”. E na semana seguinte descobre, desesperado, que conheceu uma moto melhor ainda! Como contornar isso? “Er, desculpem, a melhor moto que já pilotei é essa, não aquela que avaliei no mês passado, na edição anterior!”.
Essa isenção pode até evitar o deslumbramento, mas é muito difícil evitar a pressão comercial exercida pelo departamento de publicidade. Cansei de ouvir colegas opinando de forma crítica sobre um determinado modelo, mas quando o teste foi publicado nada daquilo estava escrito. Para algumas páginas depois descobrir uma página dupla de publicidade daquela fabricante. Essa pressão muitas vezes foge do controle do jornalista, embora tenha a anuência dele.
Existe também a pressão exercida pelo leitor, que fica extremamente ofendido quando um jornalista critica de forma negativa sua moto. É a pressão do usuário. Lembro quando saiu a primeira foto da Suzuki Hayabusa e escrevi que a frente dela era feia, porque parecia um ciclope, com aquele olho no meio da testa. Os donos de Hayabusa só faltaram me linchar em praça pública! Meses depois comprei uma importante e conceituada revista americana com o teste da Hayabusa e o jornalista começava o primeiro parágrafo assim: “Essa é uma das motos mais feias já feitas pela Suzuki”. Será que ele também foi linchado?
Já escrevi inúmeras vezes que no Brasil, quando um jornalista elogia uma moto, a moto é boa. Mas se o jornalista critica a moto, o jornalista é ruim. Seja qual moto for, mesmo uma chinesa de 300 dólares!
Pronto, quando quiser saber alguma sobre moto, já sabe qual destes “palpiteiros” aí de cima você pode confiar.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. Curso Abtrans de pilotage...
. Yamaha DT 180 a água? Iss...
. O que é aventura pra você...
. O bom ficou melhor: nova ...
. Troca-troca: A Harley da ...
. Gordura boa: Como é passe...
. Outros 500: como são as n...
. Pelada e esportiva: como ...
. Moto com modos: como ser ...