(Saci. Aquarela de André Toma )
Sempre prestei muita atenção a essas pessoas na estrada, talvez por ter uma alma de viajante sempre disposto a largar tudo e sair pelas estradas sem rumo. Mas de moto, claro, porque a pé nem a pau!
Como toda entidade que se preza, nunca soubemos se elas existiam de fato ou eram fruto de nossa imaginação cansada de tanto asfalto e céu, céu e asfalto!
Mas no final dos anos 80 eu vi e fui uma entidade que mudou minha vida. Nunca contei essa história antes e só lembrei recentemente quando viajava de moto por uma estradinha de terra.
Em 1988 tentei criar uma área na qual minhas filhas pudessem crescer em contato com a natureza. Surgiu a chance de adquirir um pedaço de terra dentro de um condomínio rural em Paraibuna, na região do Vale do Paraíba, SP. Era pouco mais que um terreno na beira de uma represa, mas que nos proporcionou muita diversão e uma aversão vitalícia a carrapatos.
Coincidiu com a fase que fui patrocinado por uma revenda Agrale para correr no campeonato paulista de enduro de regularidade. E também com a fase que eu testava muitas motos para as revistas especializadas.
Por um descuido da minha parte fui escolhido para ser o tesoureiro do condomínio e tinha de visitar a área durante a semana para fiscalizar algumas obras. Nessas, eu aproveitava para unir o útil ao agradável. Dependendo da moto eu escolhia o tipo de estrada: reta de asfalto, ou cheia de curvas ou misto asfalto-terra com curvas. A minha preferida era sair de SP pela Rod. Trabalhadores, até Mogi das Cruzes e de lá pegar uma estrada sinuosa de afaslto até Salesópolis. De Salesópolis saía uma estradinha de terra de
Essa estradinha de terra era minha pista de treino off-road. Entrava nela e cronometrava os trechos como se fosse um rali mesmo. Mão cravada no acelerador e bucha do começo ao fim. Passei tanto nela que decorei cada curva, reta, ponte etc. Nos trechos com casas e trânsito de animais eu reduzia e passava na boa. Depois era tamanco holandês: pau puro! A maior irresponsabilidade estava no fato de fazer isso sozinho. Na fase pré-celular se eu caísse em algum barranco só me achariam pelo acúmulo de urubus à volta.
Uma ocasião peguei a minha Yamaha XT 600 Ténéré equipada com pneus Pirelli Rallycross e entrei na estrada babando. Tinha chovido na noite anterior e o piso estava “al denti”, com uma aderência perfeita, nem muito liso, nem muito seco. Ótimo! Os pneus Rallycross nunca foram muito bem compreendidos pelos pilotos de enduro, mas eram ótimos para terra batida, bem melhores que o Garacross usados pela maioria. Mesmo no areião ele rendia bem. Só perdia no piso molhado e na lama.
Esta estrada de terra serpenteia a Serra do Mar, com belíssimas paisagens. Esconde alguns hotéis-fazenda, criações de avestruz e propriedades antigas. Em determinado trecho de reta a moto chegava a
Ao me aproximar do ponto de frenagem tive a impressão de ver uma criança negra apoiada na cerca de arame, com os olhos muito arregalados, como se tivesse vendo uma assombração. Tirei a mão, olhei pelo espelho e... nada! Não tinha ninguém. Reduzi mais ainda e virei todo o corpo e vi nitidamente que não tinha ninguém. Nem criança, nem adulto, nem animal, nada!
Intrigado, me desconcentrei e entrei na curva bem devagar. Aí foi minha vez de arregalar os olhos: no meio da estrada, brincando com uns caminhões de plástico estava uma criança de cerca de dois anos, cercada por dois cachorrinhos. Ela estava exatamente na trajetória que eu passaria se entrasse na curva como planejara. Meus joelhos amoleceram na hora. Parei a moto do lado dela, olhei em volta e via a porteira de uma casa aberta. Buzinei e uma moça saiu correndo, acompanhada de mais uma dúzia de cachorros!
- Olha, acho melhor levar a criança pra dentro e fechar a porteira!
A moça gritou, brigou com a criança e levou aquela comitiva de cachorro tudo pra dentro de casa.
Fiquei parado ali, por alguns segundos que pareceram horas, refazendo o que tinha acontecido. Não resisti e voltei pra ver se achava o negrinho da cerca, mas nada. Não havia nem sinal. Era uma entidade.
Já ouvi falar muito de Negrinho do Pastoreio, Saci, Curupira etc. Mas aquele “negrinho da cerca” eu não conhecia. Depois daquela curva passei a pilotar muito devagar até terminar a estrada e chegar o asfalto. A expressão de susto da entidade não saía da minha cabeça – e não sai até hoje – e atualmente já vejo esta entidade não mais como uma alma penada da beira da estrada, mas como um anjo. Porque se eu tivesse feito aquela curva como pretendia hoje eu poderia ter uma história muito mais triste para contar. Eu e a moça dos cachorros da estrada Paraibuna-Salesópolis.
Depois deste dia nunca mais treinei em estradas abertas. E minha carreira de piloto de enduro terminaria alguns meses depois por conta de um acidente que me deixou três meses engessado!
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