Ayrton e Nina. Foto: Tite
Aquele primeiro de maio
É a primeira vez que escrevo sobre esse assunto: minha convivência com Ayton Senna. Na verdade a convivência foi bem pequena e reservada, porque os dois eram extremamente tímidos e vivíamos em lados opostos da cidade. Eu só via o Ayrton em dias de treinos e corridas no kartódromo de Interlagos, o que representava pelo menos uma vez por semana.
Quando comecei a freqüentar o kartódromo, em 1975, Ayrton já era praticamente um veterano. Já tinha vários títulos e todo mundo ali sabia que ele era um fenômeno na pilotagem e no acerto do equipamento. Só não era – nem nunca foi – muito paciente.
A primeira vez que vi Ayrton pilotando foi inesquecível. Assim que cheguei ao kartódromo, meu amigo Nelsinho Freire, que por um tremendo azar corria na mesma categoria do Ayrton, me levou na curva da balança e falou: “Olha o 42 fazendo essa curva!”. O 42 era o Ayrton! Ele veio na reta, meteu o pé no freio, travou a traseira e veio controlando a derrapagem até o meio da curva. Depois fincou o pé no acelerador e entrou na reta dos boxes. Olhei estarrecido pro meu amigo e perguntei:
- C*****, Nelsinho, eu também quero fazer isso. Você sabe derrapar assim???
- Mais ou menos, às vezes dá certo ...
Esse sentimento de resignação era comum em toda geração que correu na fase Ayrton: muito piloto ali podia até ser mais rápido do que ele; alguns tinham o mesmo estilo de pilotagem, como Chico Serra, mas só o Ayrton fazia isso com tanta naturalidade que parecia estar brincando de carrinho no tapete da sala.
Um ano depois era minha vez de sentar num kart e brigar horas seguidas para aprender a derrapar daquela forma. Em algumas curvas de algumas pistas eu até conseguia derrapar daquela maneira, mas em todas as curvas de todas as pistas só mesmo Ayrton conseguia. (Um parêntese: ele era conhecido como “Beco” entre os amigos daquela época, mas nunca consegui chamá-lo por esse apelido...).
Minhas conversas com Ayrton foram poucas, sempre sobre assuntos relacionados aos karts e às corridas, eventualmente falávamos de moto, autorama, mas sempre tinha corrida no meio. Uma vez estávamos tomando um lanche no domingo, esperando a largada das nossas categorias, quando as motos largaram no autódromo de Interlagos. Corremos pra subir no muro e ver as motos passando, saindo da Curva 2. Depois que as motos passaram o Ayrton olhou pra mim e comentou:
- Putz, tenho maior vontade de correr de moto!
Quem diria! Dez anos depois era eu quem estava passando naquela curva com uma moto de corrida...
Brother
Eu fico doente quando leio comentários de jornalistas que apareceram muito tempo depois e escrevem verdadeiras cretinices sobre o comportamento do Ayrton. Ignorância, falta de documentação, mas sobretudo inveja alimentam muito desses comentários. Falar que Ayrton só ganhava porque era “filhinho de papai” e tinha uma montanha de equipamento é um atestado da mais alta inveja. Se existia alguém que podia ser chamado de “filhinho de papai” era Mário Sérgio de Carvalho Filho, ninguém menos que o filho do fabricante de karts Mini. Ele tinha um estilo maravilhoso de pilotar e contava com uma fábrica inteira à disposição. Com um estilo mais redondo e cerebral, era o único que fazia frente ao Ayrton. As corridas se resumiam ao seguinte: “quem vai ganhar, Mário Sérgio ou Ayrton?”
Se existe alguém neste planeta que pode dar o melhor depoimento do que foi Ayrton nesta época, sem dúvida, chama-se Mário Sérgio de Carvalho Filho.
A família do Ayrton tinha grana sim. Mais do que da maioria, mas menos do que muitos do que estavam ali! Tinha filhos de industriais, políticos, altos executivos de multinacionais, milionários tradicionais e outras categorias do topo da pirâmide e que nunca se tornaram piloto de carro. O pai do Ayrton era um comerciante que se deu bem porque abriu uma loja de material de construção em um bairro nobre que estava em plena expansão. E, ao contrário da maioria dos pais daquela época – inclusive os meus – não deixava Ayrton dirigir sem carteira de habilitação. Eu ia para a pista com meu próprio carro. Aos 17 anos! Sem habilitação!!! Para viajar pelo interior de São Paulo contava com meu primo Irineu, um ano mais velho e já habilitado. O Ayrton rodava pela cidade porque tinha um motorista.
Eu era mais “filhinho de papai” do que ele!
Duas cenas me marcaram nesta época. A primeira quando eu estava quebrando a cabeça para acertar meu kart, desesperado, tentando tudo e nada funcionava. Pedi pro Ayrton dar uma volta. Nem precisou, em meia volta ele descobriu que tinha quebrado um parafuso de sustentação do eixo. Essa ajuda iria se repetir em outra ocasião. Ele fazia isso várias vezes, com os novatos. Era o nosso grande irmão, no bom sentido.
A segunda cena foi numa pista do interior. O Ayrton estava sentado em volta de uma pilha de pneus, com uma fita métrica na mão, medindo o perímetro de todos eles. Olhei aquilo e perguntei:
- Mas que c*** você está fazendo?
- Escolhendo os pneus!!! Essa pista só tem curva para direita, os pneus do lado esquerdo vão gastar antes, por isso precisam ter mais borracha.
Voltei pro meu box, olhei pro único jogo de pneu que dispunha e sentei resignado, esperando a largada...
Minha carreira no kart foi muito curta, mas me prmitiu conhecer um gênio.
15 anos depois
Bom, a trajetória do Ayrton é conhecida do mundo inteiro. Só lamentei não ter pego o endereço dele quando foi pra Inglaterra, pois eu teria escrito e certamente ele teria respondido. Mas... sempre a timidez f**** minha vida!
Quando Ayrton foi bi-campeão mundial, em 1990, (ou quando foi tri-campeão, em 1991, admito que não lembro), ele fez uma super festa na fazenda de Tatuí, interior de SP. Nesta época eu era colaborador do jornal Shopping News e o assessor de imprensa do Ayrton, meu amigo Roberto Ferreira, me mandou duas credenciais. Uma delas era para Livio Oricchio, que abriu mão do convite. Olhei pra minha filha, Nina, então com 5 (ou seis) anos, peguei meu velho Opala Coupé 1981 e lá fomos pra Tatuí.
A festa era tão suntuosa, grandiosa e fabulosa que os seguranças olharam muito desconfiados pra aquele Opala e não fizeram a menor cerimônia em revistar o carro todo, inclusive no porta-malas!
Não lembro muitos detalhes da festa: tinha uma dupla sertaneja cantando, várias tendas enormes, muitas celebridades na época pré-Caras e uma corrida de kart na qual Bruno Senna foi o vencedor. Eu estava animadíssimo porque comentaram que teria uma corrida de kart para jornalistas e eu era o papa-tudo destas corridas. Mas foi alarme falso.
E também lembro de uma cena engraçadíssima que virou lenda na família. Todo mundo ganhou um kit composto de boné, camiseta e credenciais. E todo mundo pedia pro Ayrton autografar na camiseta. A Nina olhou aquilo, sem entender muito bem o que se passava e perguntou:
- Por que aquele homem fica rabiscando a camiseta de todo mundo?
A explicação não a convenceu muito. Quando estava lá, zanzando o Ayrton me reconheceu, olhou pra Nina, com jaleco de “press” e fez algum comentário sobre a “menor jornalista do evento”. Foi quando ele a pegou pela mão para tirar uma foto. A Nina se escondeu atrás de mim e não queria de jeito nenhum. E eu:
- Vai, Nina, hehe, vai do lado do tio Ayrton, vamos fazer uma foto. Ele é piloto de Fórmula 1...
E praticamente empurrei a Nina, que fez maior cara de desconfiada, mas foi. A foto é esta que ilustra este artigo, mas repare como ela está toda torta, querendo fugir dali.
Feita a foto, perguntei:
- Mas Nina, por que você não queria tirar uma foto do lado do Ayrton???
- Porque eu não queria que ele rabiscasse minha camiseta!
Tive um ataque de riso que devem ter considerado como uma espécie de incontrolável histeria fanática... Abracei minha filha e fomos comer churrasco. (Sim, nessa fase a Nina ainda não era vegetariana, mas já olhava pra salada com mais volúpia do que pra lingüiça).
Na hora de ir embora, sem me dar conta de que estava presenciando um evento histórico, foi a vez da vergonha. Um engarrafamento na saída da fazenda fez o velho Opala ferver! E lá fui eu, com uma leiteira na mão, atrás de uma torneira, deixando o segurança de vigia porque a Nina dormia tranqüila no banco de trás.
Na manhã da segunda-feira, 2 de maio de 1994, na inocente tentativa de falar alguma coisa que diminuísse minha tristeza, Nina me telefonou e comentou:
- Agora aquela foto deve valer uma grana!
Só consegui responder:
- Eu preferia que ela continuasse valendo apenas como uma simples folha de papel.
De Diego - Cipó a 1 de Maio de 2009
Pow Tite, ótimo texto...
deve ter tido uma experiência mt boa com essa figura que marcou o nosso Lisarb...
Precisamos de mais figuras como Senna nesse país...
Abraço
De Octavio a 2 de Maio de 2009
Muito legal, Tite.
A Nina não querendo tirar foto para não ter a camisa "rabiscada" é o máximo.
A lógica das crianças encanta, é sábia.
Vc leu por acaso o "Ayrton", do Ernesto Rodrigues?
É um belo livro.
Grande abraço, bom feriado.
Aproveitando: vai ter mesmo o SpeedMaster preventivo no dia 9/5? Se tiver, dancei. Mudou a escala na TV e tô trabalhando 19 dias corridos.
Mas se for dia 16/5 ou 23/5, tô dentro.
Ou então em junho. Pelo jeito vc vai fazer o feriado de Corpus Christi, não?
Grande abraço
De Octavio a 3 de Maio de 2009
Blz, obrigado. Pela escala, estou de folga. Se não mudar, já estou inscrito no curso. Abs
De Marcio "Japoneis" a 2 de Maio de 2009
Belas linhas Tite.
Parabéns!
De Ramon Portela a 2 de Maio de 2009
Pois é tite, acho q o 1o de maio é uma data que entristece muito a maior parte dos brasileiros, pois o Ayrton foi um ídolo das multidões e, hoje, tornou-se uma lenda para aqueles que não o viram correr... embora criança, eu cheguei a vê-lo em ação, o cara era fantástico, sem igual, realmente soube fazer a diferença em uma época em que a tecnologia não colocava pilotos tão distantes uns dos outros, quando o verdadeiro talento erguia os melhores... 15 anos sem o Ayrton para mim seria algo bem triste, mas esse seu "post", mostrando o lado humano dele me trouxe boas lembranças!
um abraço!!!
De Nina Simões a 2 de Maio de 2009
nossa, eu me lembro muito dessa situação! era minha camiseta preferida, não mesmo que alguém ia rabiscar ela. lembro até qual era, uma com uma menininha com chapéu de wiking e umas florzinhas.
gostei ler a história aqui, pai.
De André Garcia a 3 de Maio de 2009
No dia 02 de maio, há 15 anos, fui trabalhar no Banco Real, era caixa, estava tão depre, que deu uma baita diferença no meu caixa, onde tive que rifar meu relógio para pagar. A morte do Senna mexeu muito comigo, depois, assisti poucas corridas de F1. Hoje, assisto mais, pois a era Schumi, foi muito sem graça.
Lembro como se fosse hoje o primeiro título, ele saindo em último em Suzuka, passando todo mundo. No ano seguinte, novamente em Suzuka, saiu na pole, segurou o Mansell, o Berger, que saiu em segundo, foi embora, o Mansell não aguentando a pressão, pois precisava passar Senna, para chegar em Berger para ganhar a corrida e o campeonado. Mansell saiu e volta rápida, após volta rápida ele passou para 1º, continuou dando volta mais rápida do que a anterior e no final deu a vitória ao companheiro de equipe que, ainda, não tinha vencido pela Mclaren. Era show, era Senna.
Engraçado que ainda não consegui realizar o sonho de assistir uma corrida de F1 ao vivo em Interlagos.
Esteja certo, que onde ele estiver, ficou contente com o seu texto, com a lembrança e deu aquele sorriso tímido, em agradecimento.
De Ronaldo ARRIGHI a 4 de Maio de 2009
Pow Tite.
Primeiramente o meu parabéns atrasado pelo seu "níver", muita saúde e muito mais serenidade e parcimônia pra usá-la agora, a partir dos "5.0" (re,re,re).
"Segundamente" esse texto me fez recordar de um outro postado por vc aqui no blog, em que pedes um "help" ao Ayrton e parece-me que ele rapidamente detecta (again) o problema no seu pequenino bólido, pneus com prazo de validade vencido, vulgo velhos. Em suma, que o cara era "O Cara" nesses assuntos, não restam dúvidas.
Quanto ao lado pessoal desse "jovem", prefiro também acreditar somente no que de bom e inspirador se redigiu e explanou sobre ele.
"Terceiramente" recordei-me também de que em 1990/1991 eu era um jovem com "ilusão" de seguir a carreira militar no Brasil, mais especificamente na Força Aérea Brasileira (carreira essa abreviada por um deposto presidente do Lisarb, Fernando Collor TE Melo) e tive a oportunidade de assistir a pelo menos duas corridas de Fórmula 1, em Interlagos, no auge de Ayrton e gratuitamente mas,... recusei. Nas duas vezes disse, - ano que vem eu vou.
Acho que a melhor frase para exprimir esse arrependimento, seria aquela tantas vezes dita pelo Charlie Brown dono do cãozinho Snoop: “QUE PUXA!".
Hoje não recusaría, mas também não recebo mais convites, e pra bancar... o mais barato ta muito caro pra minha realidade.
"Quartamente" encerrando (até que enfim! vc deve estar pensando) o que vc acha de postar uma série de textos nos moldes dos "Vida Corrida" mas, somente abordando os seus contatos e convivência com o Ayrton? O que vc acha?
Ficamos no aguardo.
Abraço torcudo e feliz níver (atrasado) again.
De Eduardo Doege a 4 de Maio de 2009
Eu também tite, gostaria que continuasse apenas como uma foto
De
Tiago a 4 de Maio de 2009
Tite, o mundo chorou quando o Galvão disse: ele vem contornando a curva a mais de 300 quilômetros por hooooooooorraaaaa! Senna bate forte! Imagina quem teve o privilégio de vê-lo de perto, de trocar algumas poucas e boas palavras com ele, quem o viu correr, desfilando um talento divino! Imagino o quão triste tu ficaste, me recordo do post (no Motonline ainda) que disse que foi dar umas voltas de moto, sem rumo, apenas para (tentar) entender... Neste 1º de Maio fui correr meu pequeno campeonato de kart, estreando minha sapatilha do Ayrton Senna, igualzinha a que Ele usava na McLaren. Mas não estava conseguindo me consentrar, fico mal todo ano quando chega esta data... Acabei em 4º (mas pq sou ruim mesmo). Tenho certeza que você é muito feliz por ter tido a oportunidade de conviver com ele, aposto que muito te invejam (no bom sentido). Abraços Tite.
De Eduardo Zampieri a 4 de Maio de 2009
Foi o melhor texto que já li sobre e pós morte do Ayrton!! Não o coheci pessoalmente, mas toda vez piloto em Interlagos sinto que por aquele asfalto eu já rodou um ser inesplicavelmente superior a todos de sua época. Talvez por isso ele não esteja mais entre nós! Geraldo esse foi animal!!
Comentar post