Terça-feira, 31 de Outubro de 2023

Prostatite 3: então, qual vai ser?

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Vista da janela de um hotel em Amsterdã: viajar é bom, com alguém junto é ótimo. (Foto: Tite)

A difícil decisão sobre qual procedimento para o câncer de próstata

A vida é feita de escolhas. Dã, pensa numa frase mais clichê! Só que traduz exatamente o que é viver. Sempre tive muita dificuldade para decisões e isso me causou tanto problema que uma das vantagens de envelhecer é que na maioria das vezes é a vida que decide por você.

O que gosto no horóscopo é que posso colocar toda a culpa dos meus erros no signo. Escolhi errado, ah é porque sou ariano. Gastei dinheiro com bobagem? Ah, quem mandou ser ariano. Meteu o louco e brigou na rua? Típica coisa de ariano. Tratou mal a mulher (ou qualquer pessoa)? Logo se vê que é ariano. Obrigado astros!

Mas a verdade é que algumas pessoas são mais assertivas do que outras, punto e basta. Os signos só servem para justificar quando deu errado, porque não se escuta alguém elogiando tipo “ah ele é super carinhoso e altruísta porque é ariano”. Não, os astros só atuam nas cagadas.

Uma vez na região da Toscana, na Itália, tive uma crise decisiva. Estava já havia uma semana viajando a passeio depois de uns dias de trabalho. Viajei muito na minha vida de jornalista, mas 90% das vezes a trabalho. Só fui começar a viajar a passeio depois de 10 anos de relacionamento com a Maria*, que me convenceu a gastar dinheiro em viagens. Eu mesmo já tinha rodado por muitas cidades, na maioria das vezes totalmente sozinho.

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Pôr do sol na Mantiqueira: gaste seu dinheiro com viagens, porque é para sempre! (Foto: Tite)

Viajar sozinho é um saco! Fazer qualquer coisa sozinho é um saco. Nas primeiras viagens eu até curtia, porque sou ariano, mas depois começou a ficar meio triste não ter com quem dividir. No filme “Na Natureza Selvagem”, o personagem à beira da morte, depois de enfrentar uma aventura sozinho, chega a conclusão que “a felicidade só é completa quando compartilhada”. Um dos grandes ensinamentos da vida.

Nunca contabilizei quantos países já visitei, porque na maioria das vezes era chegar na quinta, trabalhar sexta, sábado e domingo e voltar na segunda. Posso dizer que não conheci mais de 30 e menos de 40 países. Mas desta vez na Toscana eu estava novamente sozinho, com um mapa na mão (época pré-smartphone). A cidade era San Gimignano, conhecida por ter os melhores sorvetes do mundo, pena que eu não gosto tanto assim de sorvete.

Estava tão angustiado para decidir pra onde ir que surtei. Fiquei prostrado no quarto do hotel, vendo televisão, sem qualquer movimento, enquanto começava uma garoa que deixava tudo ainda mais melancólico. Até decidir sair pela porta sem destino. Fui até os muros de uma fortaleza medieval, de guarda-chuva cobrindo parte da visão, quando percebi algo diferente na paisagem. Era um motociclista todo ensopado, sem capa de chuva, empurrando uma moto antiga.

– Pronto, achei algo pra fazer, pensei já me dirigindo ao motociclista.

Fui ajudar a empurrar a moto e recebi um enorme sorriso de volta, com agradecimento em alemão! O cara era alemão oriental, viajando com uma moto russa Ural 500cc, imitação de BMW. Com o pouco de alemão que aprendi consegui entender que ele não era um colecionador, mas era a moto normal de uso dele, viajando pela Itália em férias. Ele não falava nenhuma outra língua além do alemão que, como até as pedras sabem, é um idioma que se fala exclusivamente na Alemanha e Áustria. E que estava numa baita roubada.

Esta é uma Ural 500cc feita a Rússia, cópia da BMW. Ainda existem muitas rodando até hoje. 

Empurramos até um posto de gasolina e ajudei a explicar aos frentistas que ele só precisava de um lugar coberto porque já tinha as ferramentas e conhecimento para resolver qualquer problema da moto. Traduzi tudo que deu pra entender e fui tomar um sorvete com a sensação de que o meu dia já estava recompensado para quem nem sequer queria sair do quarto.

Mas o vazio de viajar sozinho permanecia.

Na manhã seguinte remarquei minha volta pro Brasil e encerrei minhas férias com uma semana de antecedência. Foi neste momento que decidi parar de viajar sozinho. Quando se viaja sozinho é preciso estar disposto a falar com todo mundo, principalmente com o “baixo clero”, pessoas que estão nos servindo: camareiras, balconistas, motoristas, comerciantes, caixas de supermercado, cobradores de ônibus etc porque eu tenho uma timidez seletiva e não consigo falar com pessoas desconhecidas de "alta patente".

Na verdade eu preciso de alguém não só pra conversar e dividir a felicidade, mas para decidir por mim. Tomar decisões me deixava doente.

O xixi tá fraquinho? corre pro urologista!

Qual vai ser?

Muitos anos depois estava sentado diante do chefe da cadeira de Urologia da Universidade do Grande ABC para decidir qual procedimento adotar diante do diagnóstico de câncer de próstata. Ele me recebeu com toda atenção e gentileza que faltaram aos médicos do SUS.

Com papel e caneta este médico desenhou a anatomia da próstata, explicou pra que servia e deu uma aula que nunca mais vou esquecer. Olhou meus exames, trocou informações com outros dois médicos residentes e pediu para fazer o exame de toque. Sem problema fazer este exame. Ninguém fica mais ou menos homem se passar por isso, mas pode salvar a vida, como salvou a minha.

O residente confirmou a hiperplasia e então o chefe me apresentou as três opções:

1) Como ainda estava muito embrionário eu poderia deixar assim mesmo, fazer exames de PSA a cada seis meses e, se constatar um aumento considerável nos números, decidir pelos próximos dois procedimentos. Porém, a preocupação era o câncer entrar pela corrente sanguínea e se espalhar, causando a metástase, palavra que me arrepiou os pelos do toba.

2) Tratamento com bombardeio de radiação. A radioterapia atinge a próstata e a resseca como uma uva passa ou um maracujá de gaveta. Não é invasivo, não demanda pós operatório, porém (sempre tem um porém) as sequelas são as mesmas da cirurgia aberta, com a possibilidade de o câncer voltar porque a próstata ainda ficaria ali, encolhidinha no meu corpo.

Fundação do Câncer inicia área de Educação com a formação de profissionais  em radioterapia - Fundação do Câncer

Radioterapia: deita aí, não se mexe que vamos te bombardear!

3) Cirurgia aberta. O médico me abre, fuça lá dentro, retira a próstata e o tumor, me costura, me enche de drenos e sondas e eu fico no hospital por uma semana até receber alta. As sequelas são as já conhecidas incontinência urinária e disfunção erétil. Porém (e este porém é bom) eu ficaria livre de qualquer probabilidade de reincidência do câncer. Por garantia ainda ficaria cinco anos fazendo PSA para só então receber alta.

O clima na sala estava absolutamente calmo. Nada se mexia. Eram três médicos esperando qual decisão eu tomaria. E nem fazia ideia por onde começar até que o chefe percebeu minha cara de desespero e explicou:

– Não precisa decidir nada agora. Vai pra casa, conversa com sua esposa. Saiba que você não poderá mais ter filhos.

– Mas eu já não podia, doutor, fiz vasectomia há mais de 25 anos!

– Mas ainda poderia ter filho por inseminação, se quisesse...

– Pelo amor de Deus, não diga isso para a minha mulher! Que fique só entre nós, ela pensava que eu não podia mais ter filhos...

Foi o único momento menos sisudo da conversa, até que eu perguntei:

– Doutor, se você estivesse sentado aqui no meu lugar, qual procedimento escolheria?

Sem a menor hesitação, ele respondeu:

– A cirurgia!

– Então é esta que vai ser. Não preciso conversar com mais ninguém, o senhor é o terceiro médico que me indica a cirurgia, que assim seja então.

Pela primeira vez tomei uma decisão que se mostraria acertada, sozinho e sem a menor dúvida. A vida decidiu por mim. Já saí da consulta convencido a operar, mas as palavras incontinência urinária e impotência ainda reverberavam forte na minha mente. Até que confessei pro médico:

– Sabe, doutor, a minha maior preocupação não é a impotência sexual, mas a incontinência urinária. O sexo a partir dos 55 anos nem é tão frequente assim, mas fazer xixi na cama é um pesadelo que não gostaria de viver.

Ele até esboçou um sorriso, mas me acalmou:

– Olha, você é jovem. Hoje em dia temos remédios para a disfunção erétil que devolvem a atividade sexual. E a incontinência urinária pode ser controlada com fisioterapia. 

Em resumo: Viagra ou Cialis + exercícios físicos. Hum, nada mal, pena que não foi tão simples assim...

Saí do hospital sozinho, abatido, desesperançoso, apavorado, com minha cabeça a 1.000 por hora e começou um processo de desconstrução do Tite que levaria muito anos para passar.

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das pessoas envolvidas.

Para ler a parte 1 clique AQUI.

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(continua)

 

publicado por motite às 02:06
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Terça-feira, 24 de Outubro de 2023

Prostatite parte 2: sobre escolhas

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Esta foi uma das fotos que fiz à bordo de uma coisa estranha que voava*.

Ah as escolhas. Uma das poucas certezas da vida é que sempre achamos que fizemos a escolha errada. Porque não tem como apertar a tecla fast foward e avançar nossa história para saber como seria se tivesse feito a outra escolha. Não dá. O cinema até tentou retratar estas condições em filmes como “O Feitiço do Tempo”, “Efeito Borboleta” e o bobinho “Controle Remoto”.

Apesar de a ficção criar formas de avaliar como seria se tivéssemos feito a outra escolha, na vida real não existe essa chance. Escolhas significam renúncias e não adianta se julgar pelas escolhas do passado porque éramos outras pessoas. Só posso garantir que de pouco adianta se perguntar “como seria se eu tivesse feito a outra escolha?”, porque agora estaria fazendo exatamente a mesma pergunta.

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Efeito Borboleta: o personagem do filme só consegue corrigir os erros do passado magoando a pessoa que amava.

Algumas pessoas de elevada grandeza procuram ajuda na hora das escolhas. Outras seguem um instinto e a grande maioria vai no impulso. Sorte quando a escolha pode ser revista e permitir voltar atrás, mas quando a decisão é irreversível o peso da escolha é eterna. Nada retrata mais essa angústia do que o filme genial “A Escolha de Sofia”.

Com o pedido de biópsia nas mãos fui para o posto de saúde agendar o procedimento. Diante de tanta recomendação parecia que eu faria uma cirurgia. É quase isso. O paciente é anestesiado e o médico introduz um tubo com uma agulha na ponta. Ah introduz pelo rabicó mesmo, na falta de outro orifício nas redondezas. Retiram uma porção do tumor que será examinado no laboratório. Como é feito um corte, isso sangra e precisa cicatrizar, porque não tem como enfiar a mão lá dentro (ainda bem) pra costurar.

Por isso o pré e pós procedimento são praticamente iguais aos de uma cirurgia, porém sem a internação. Entra de manhã, leva o ferro, acorda e vai pra casa. Não, não pode ir de moto, nem dirigir. Precisa levar um acompanhante maior de idade e se prepara, porque depois de passar o efeito da anestesia vai doer muito.

Escolhemos ir de Uber porque eu não queria me preocupar com estacionamento, nem voltar dirigindo. Desta vez fui acompanhado da minha mulher, que respeitou minha vontade de não falar sobre o assunto.

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Nunca a arte retratou tão bem a angústia de uma escolha como no filme A Escolha de Sofia.

No caminho lembrei da minha vasectomia, feita no final dos anos 1980. Já tinha as minhas duas filhas e decidi que seria o procedimento mais eficaz, até porque eu não queria mais ter filhos mesmo. E também é uma cirurgia menos invasiva e bem mais simples do que a laqueadura para a mulher.

Só que eu tinha 30 anos e nenhum médico queria operar um jovem de 30 anos porque, segundo eles, minha vida poderia mudar muito ainda. Um deles até foi irônico:

– Imagine se você se separa, conhece a princesa de Mônaco, ela se apaixona por você, mas só casa se tiver um herdeiro?

De todas estas possibilidades a única que se concretizou é que poucos anos depois eu me separei mesmo. O resto foi devaneio. Mas gostei da possibilidade de casar com a Stéphanie Mari Elisabeth Grimaldi. Eu esconderia o fato de ser vasectomizado até passar a lua de mel, claro.

Sem poder operar nos médicos convencionais apelei para o meu cunhado da época. Pense numa família que tem médico! Ele topou, mas fez a cirurgia no consultório, com ajuda de um anestesista. A cirurgia correu bem, com anestesia local, mas ele não me disse para ir de taxi e fui dirigindo meu Passat sem direção hidráulica.

Na saída do consultório ele me deu uma receita e avisou que, se doesse, era pra tomar aqueles remédios. Saí meio claudicante como quem leva uma baita bolada no saco e fui embora. Assim que pisei na embreagem e engatei a primeira senti uma pontada como se estivessem arrancando minhas bolas.

A dor foi aumentando a ponto de não conseguir mais dirigir. Parei na primeira farmácia, desci e fui quase engatinhando até o balcão. Entreguei a receita pra farmacêutica e fiquei de cócoras implorando para me darem alguma coisa bem forte pra acabar com a dor.

Deram. Uma injeção de qualquer coisa que diminuiu a dor, mas ainda tinha de dirigir aquele Passat duro que nem uma carroça medieval, tentando desviar até de palito de sorvete. Cheguei e capotei no sofá!

Por isso, desta vez, para fazer esta biópsia decidi respeitar todas as regras recomendadas, até porque 27 anos a mais de vida nos deixa um pouco mais experiente.

Fui pra biópsia ainda sem a menor noção do que seria feito. Simplesmente tirei a roupa, vesti um avental que deixa a bunda de fora e deitei numa cama. Uma enfermeira gorda, negra e muito engraçada me levou pro centro cirúrgico perguntando sobre tudo que eu fazia. Foi tipo uma entrevista e isso me deixou bem mais relaxado. Ela explicou o procedimento, mas não prestei atenção porque estava ouvindo a conversa de dois médicos.

Um deles estava literalmente puto da vida porque antes das consultas os pacientes pesquisam no Google e ficavam questionando os diagnósticos. Na verdade eles queriam apenas uma segunda opinião.

Enquanto isso o anestesista já tinha me espetado e aconselhou:

– Pense apenas coisas boas!

Antes de empacotar chamei o médico e aconselhei:

– Doutor, se alguém pesquisar no Google e vier aqui apenas em busca de uma segunda opinião pede pra ele pesquisar no Yahoo!

Apaguei ouvindo o som das risadas no centro cirúrgico.

Apesar de anestesiado senti mexerem no meu corpo até começar a sonhar. Não sei o que colocaram naquela anestesia além de óxido nitroso, porque sonhei que estava numa estrada americana viajando de Harley-Davidson, quando a enfermeira me acordou.

– Ufa, ainda bem que você me acordou, achei que essa sensação dolorida no meu rabo era a vibração de uma Harley!

Dias depois, quando saí daquele mesmo lugar com o resultado positivo para câncer e a palavra "impotência" reverberando no meu cérebro, chegava o momento de fazer uma escolha irreversível: morrer de pau duro ou viver de pau mole?  

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Eu aumento, mas não invento: estas pernas trêmulas são minhas mesmo, num ultraleve, em direção a uma tempestade manauara! Logo ali embaixo está a fábrica da Honda.

No ar

Nunca saltei de para-quedas, mas tenho vontade. O que me impede é o medo. Só de pensar naquele avião a 4.000 metros, de porta aberta já estremeço. Não gosto muito de coisas que avuam. No entanto, a profissão de jornalista e fotógrafo me obrigou a voar muito. Muito, alto e em coisas que nem eu acredito, como em Manaus (AM), nos anos 1980 que precisei fazer uma foto aérea da fábrica da Honda, numa aeronave tão rudimentar que faria o Demoiselle parecer um jato.

Procurei o aeroclube local mas o preço pra alugar um helicóptero era muito acima do meu apertado orçamento. Um cabra ouviu a conversa, me chamou de lado e soltou:

– Eu posso te levar pela metade do preço!

– Fechado!

Só esqueci de perguntar qual a aeronave. Era um ultraleve. Aberto, sem chão, sem teto, sem janelas porque também não tinha portas. Aquela trapizonga era uma asa delta com motor de Fusca e dois lugares. Sem tempo, nem juízo, aceitei a oferta e nem precisei mais de 30 segundos para me arrepender profundamente.

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Lindo dia para morrer engolido pela tempestade! Mas não morri!

Até este dia eu achava que tinha sentido medo. Besteira, medo eu tenho de barata. O que passei naquele projeto de coisa que voa (em alemão flugzeug) superou muito o sentimento de medo, desamparo, saudades do colo de mãe. Principalmente quando olhei pra frente e vi uma tempestade se aproximando.

“Por que eu não gastei o dinheiro do cliente e fui de helicóptero? Por que eu faço tantas escolhas erradas?” pensava enquanto tentava fotografar, me contorcendo para manter a máquina fotográfica estabilizada.

Como você pode ver, eu não morri. Mas meu espírito ficou em algum lugar da selva amazônica junto com minha dignidade.

O silêncio da inocente

Escolhas. E se eu simplesmente não operasse a próstata, continuasse sexualmente ativo, esperando que a natureza seguisse seu rumo, até definhar e morrer como aconteceu com Frank Zappa? Tinha de escolher qual procedimento adotar e se eu queria mesmo operar.

A palavra impotência é cruel. Ela cai na nossa cabeça como um sino de catedral. Entra na corrente sanguínea e se aloja no cérebro como um parasita de cisticercose. O diagnóstico de câncer de próstata vem atrelado aos dois principais efeitos colaterais: incontinência urinária e, para ser elegante, disfunção erétil.

Depois de receber o diagnóstico daquela maneira fria e insensível, saí do centro de São Paulo, até a minha casa, na zona sul, tentando me concentrar na pilotagem da moto com as palavras câncer e impotência na minha cabeça. Precisava chegar em casa e contar pessoalmente para a minha mulher. Mas como dar essa notícia? Os médicos e assistentes sociais não nos preparam pra isso. Nem a Igreja, nem a escola, nem os pais. Ninguém nos prepara pra esse momento.

A moto foi sozinha pra casa porque não lembro de nenhum centímetro do percurso. No caminho passava pela minha mente pensamentos que devem ser comuns a todos que recebem essa sentença: por que eu? por que Deus me escolheu? O que fiz de errado pra isso acontecer? Será um castigo divino por eu ter sido tão promíscuo? Não pode ser um erro do cara que fez o laudo? Será que trocaram meu exame no laboratório? E se eu jogar a moto agora desse viaduto e me espatifar lá embaixo pra evitar tudo que virá pela frente?

Confesso que não lembro muito desse dia (devia ter feito um diário), mas entrei em casa e contei o resultado para minha mulher que manteve-se forte e elegante como sempre. Não falamos muito e aí começou o que considero o maior erro de postura que tomei durante anos seguidos: o silêncio!

Existe um provérbio árabe que ensina: o silêncio é pedra; pedra constrói muros e muros separam. Nunca li tanta verdade em uma frase tão curta. Pena que só aprendi isso tarde demais.

Não é minha intenção fazer um livro de auto-ajuda porque não acredito em livros de auto-ajuda, mas aqui fica minha primeira e valiosa dica para quem vive junto: converse! Saiba a hora, o lugar e como conversar. Não vale, por exemplo, depois do sexo, quando a pessoa está encharcada de endorfina, adrenalina, dopamina, ocitocina, vaselina etc um dos dois virar e falar:
– Então, sobre o natal na casa da mamãe...

Não, definitivamente depois do sexo não é hora de conversar. Deixe os hormônios fluírem.

Também não espere uma explosão de sentimentos para conversar, porque é fácil descambar pra discussão. Espere um momento que ambos estejam de boas. E pare de achar que discutir um assunto é uma disputa, na qual se tem necessidade de “ganhar” ou “perder”.

Outro filme genial "A Profecia Celestina" mostra a troca de energias que acontece quando duas pessoas discutem e como essa energia flui de um para o outro. A sensação de vitória ou derrota em uma discussão reduz ou aumenta esse fluxo de energia.

Nossa sociedade – e a mídia tem um papel importante nisso – nos inculcou a ideia de que conversa de casal é discutir a relação, a tal “DR”. Também nos empurrou goela abaixo a mensagem de que é sempre a mulher quem deve puxar assunto, ganhando a pecha de “chata”. As mulheres naturalmente chamam para a conversa porque faz parte da liturgia do cargo. Homens preferem o silêncio, porque não sabem como falar, ou, geralmente, porque preferem manter guardado. Homens escondem os sentimentos porque aprenderam que “homem não chora”.

Outra dica: no caso de um problema de saúde que afete um dos dois, conversem, porque não está em jogo apenas a saúde de um dos cônjuges, mas na verdade o que fica doente é a relação. Na vida do casal, o câncer adoece os dois. Saber como conduzir, procurar ajuda terapêutica, deve ser extensiva ao casal. Mas isto eu não sabia quando cheguei em casa naquela manhã de julho. Por não saber como fazer adotei a pior postura possível: me fechei como uma ostra.

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No filme "A Profecia Celestina" a cena mostra a troca de energia quando conversamos

Procedimentos

Mesmo sabendo que minhas células cancerígenas estavam se reproduzindo como taradas no cio, eu não sentia nada de errado. Sim, já tinha percebido que estava difícil fazer xixi e que o jato saía fraco. Mas eu creditei na conta do envelhecimento natural. Quando eu tinha 10 anos olhava para meu avô de menos de 60 anos como se ele fosse um fóssil vivo.

A noção de velhice mudou ao longo da última década. Aos 55 anos eu me achava tão ativo quanto aos 35. Mas a natureza tem formas desonestas de me corrigir. E uma delas era esse xixi fraco, que nunca associei a hiperplasia prostática, até porque nem sabia da existência dessa palavra. Na real, deveria ter começado os exames de PSA aos 45, pelo histórico familiar, mas também não lembrava que meu pai tinha sido operado. No dia da cirurgia dele eu estava viajando a trabalho e quando voltei não tocamos no assunto.

Agora, com o diagnóstico feito, cada xixi era uma testemunha de acusação, como se minha uretra dissesse: “ae, mano, eu te avisei!!!”.

E só um esclarecimento que poucos médicos explicam. Não é só o jato de urina que fica fraco. A ejaculação também! Não sai um jato explosivo como um míssil balístico, mas escorre devagar que nem os chafarizes da piazza Navona. Mas este não é um assunto pra ser gozado.

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Chafariz da Piazza Navona: fraquiiiinhos...

Por não sentir nada, e até mesmo rejeitar o diagnóstico, demorei para procurar um especialista. Sem plano de saúde, a consulta pelo SUS estava marcada para quase 40 dias depois, como se fosse apenas uma micose de praia. Até que um dia falei com meu irmão e mandei o laudo da biópsia via Whatsapp. Assim que apareceram as duas barrinhas azuis no aplicativo ele me ligou:

– Vem pra cá que o chefe da Urologia quer falar com você. Mas fica tranquilo...

Ah tá. O pica das galáxias da urologia do hospital onde meu irmão trabalhava falou pra eu ir lá no dia seguinte, mas fica tranquilo... Passei a noite tão tranquilo quanto  um sentenciado no corredor da morte, escolhendo qual procedimento menos agressivo!

No dia seguinte de manhã estava sentado na frente do chefe da Urologia, acompanhado de dois outros médicos residentes para saber quais opções eu teria: câmara de gás, fuzilamento ou forca?

(Continua...)

*Fotos originais feitas em Kodak Ektachrome

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publicado por motite às 00:21
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Quinta-feira, 19 de Outubro de 2023

Prostatite: como é a vida pós remoção da próstata (parte1)

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Sim, acredite, já acarpetaram uma rua em São Paulo. (Foto: Veja)

Descendo a Rua Augusta numa manhã de julho de 2018 lembrei de várias histórias desta que é uma das mais icônicas ruas de São Paulo. Inspirada nas grandes avenidas fashions da época, já foi berço da moda na capital paulistana, com butiques chiques e marcas renomadas. Todas as novidades no mundo da moda estavam na Rua Augusta.

Também era o point de paquera nos anos 1970/80, com motos, carrões desfilando e  jovens trocando olhares e xaveco mesmo, que hoje seriam considerados assédios. Ronnie Cord cantava “entrei na Rua Augusta a 120 por hora”. Mentira, aqueles carros da época eram instáveis. Se entrasse a 120 km/h meteria o côco num poste! A Rua Augusta é estreita, com um enorme desnível, tendo como cumeeira a Avenida Paulista.

Uma das histórias mais curiosas da Rua Augusta se deu no final de 1973, quando os lojistas tiveram a brilhante ideia de acarpetar um quilômetro da avenida, com placas coloridas, formando um xadrez.

Esqueceram que a época coincidia com a chuvas de verão e carpetes não são exatamente aderentes quando molhados. O resultado é que os carros não conseguiam sair na subida, nem frear na descida, causando alguns pequenos acidentes. Além de arrancar placas de carpete a cada frenagem. Eu mesmo arranquei muitas placas de carpete com o Dodge Dart do meu pai, quando eu tinha 14 anos. Sim, eu dirigia um carro V-8 com 14 anos!

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Olha a traseira do Dodge Dart aí na foto!!! (Foto:Veja)

Alguns anos depois, já na faculdade de jornalismo, frequentava a Rua Augusta para jantar no Spazio Pirandello, cantina que reunia atores, atrizes e intelectuais. Como ficava perto dos teatros, os artistas jantavam lá e a tietagem corria solta. Eu levava as namoradas lá depois da aula para jantar pratos enormes de macarrão ou lasanha. Bons tempos que não existia refluxo gástrico!

Atualmente a Rua Augusta perdeu muito do seu charme. As lojas migraram para a Oscar Freire e o “baixo Augusta” passou a ser frequentado por garotas de programa, traficantes, mas ainda um pouco de artistas e intelectuais. Todos atrás de bebida e balada. Foi nesta rua que saí pela primeira e única vez com uma garota de programa de rua num dos poucos períodos da minha vida que estive solteiro. Ela estava fazendo trottoir, palavra francesa que significa calçada, o que dava um pouco mais de romantismo à atividade.

Era uma mulher de mais de 30 anos, baixa, loira, bonita e muito discreta para a atividade que exercia. Tanto que demorei pra entender que ela não estava pedindo carona. Abaixei o vidro e gostei dela logo de cara. Negociamos o cachê, ela indicou um hotel e, quando pensei que estava resolvido, ela veio com uma surpresa:

– Minha amiga vai ficar aqui sozinha, ela pode ir junto?

A amiga não era tão bonita, mas pelo pacote econômico aceitei e foi uma noite inesquecível.

Tão inesquecível que foi justamente o que veio à minha mente quando passei de moto, naquela manhã de julho de 2018, em direção a um posto médico da Prefeitura para buscar o resultado de uma biópsia da próstata.

Se você, homem, nunca fez uma biópsia de próstata não sabe o que é uma dor lancinante numa das partes mais delicadas do ser masculino. OK, a dor do parto é maior, mas eu nunca dei a luz pra comparar. Felizmente os médicos dão um pouco de anestesia e até sonhei, mas senti alguma coisa fria e comprida entrando pelo furico e uma dor tão angustiante que apaguei!

Pensa que isso é o pior? Não, depois da biópsia o médico fez um monte de advertências e avisou: nada de sexo por 15 dias (nem manualmente) e quando fizer pode doer e sair sangue. O cara sabia bem do que estava falando, porque com 10 dias decidi testar de forma manual e quase enfartei ao ver sair sangue, como se tivesse acabado de menstruar! Fora a dor. Doeu pra c****, literalmente!

A probabilidade de a minha hiperplasia prostática ser um câncer e eu me tornar impotente aos 58 anos era muito real. Queria aproveitar o máximo antes de receber o diagnóstico. Mas ainda doeu e sangrou nas poucas vezes seguintes, já com a participação da minha mulher.

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Biópsia de próstata é feita pelo brioco e dói, viu!

Entrei no posto médico tão confiante que simplesmente me dirigi ao balcão dos resultados, tranquilo como quem vai no cartório reconhecer firma. Entregaram o envelope e me encaminharam ao médico com a recomendação de não abrir.

Epa! Por que não podia abrir? Abri. Li e não entendi nada.

O urologista que me recebeu era bem jovem. Alto, bonitão, bronzeado, típico médico de série americana. Ele me atendeu de pé e pediu pra eu sentar. Já passava de meio-dia e, de repente entrou outro médico na sala, igualmente jovem, conversando sobre o almoço como se eu não estivesse lá.

O bonitão abriu o envelope, fez uma cara meio constrangida, mas tentou amenizar o clima me chamando pelo aumentativo:

– É, Geraldão, é câncer!

Juro que foram estas exatas palavras que aquele médico disse. Olhei pro outro, que, quieto, fuçava o celular. Demorei pra entender o que aquilo significava até que perguntei:

– E agora?

Ainda com ar constrangido, sem olhar nos meus olhos, o médico explicou que eu seria encaminhado à assistente social para definir quais os procedimentos. Insisti em saber mais detalhes e perguntei “quais procedimentos”?

– Como ainda é pequeno, aconselho cirurgia para remoção total da próstata. Assim fica livre do problema pra sempre.

– E quais são as consequências desta cirurgia? perguntei já sabendo a resposta.

– Eh, incontinência urinária e impotência.

Ele respondeu exatamente assim. Não usou o eufemismo “disfunção erétil”, falou impotência mesmo. Fiquei imobilizado. Por alguns segundos nada se mexeu naquela sala, até que o outro médico perguntou “e aí, vamos almoçar?”.

Meu chão desapareceu. Minhas pernas bambearam, meu corpo ficou com duas toneladas e meia. Não conseguia me levantar, mas aqueles médicos precisavam almoçar e eu estava atrapalhando.

Com um aperto no estômago saí correndo da sala e fui chorar no banheiro. Estava sozinho. Não levei ninguém comigo porque não esperava aquele diagnóstico. Fiquei andando pelo posto que nem um zumbi. Olhava, mas não via. Escutava, mas não ouvia. Respirava, mas não vivia. Milhões de pensamentos ao mesmo tempo. Precisava dividir aquilo com alguém.

Liguei pra minha mulher que não pôde atender. A segunda pessoa que liguei foi meu sócio Ronaldo. Ele atendeu e dei a notícia. Anos depois ele lembrou deste dia e comentou que ficou com vontade de entrar pelo fio do telefone para me abraçar. E como eu precisava de um abraço! Não lembro o que conversamos.

A assistente social me chamou. Sentei na frente dela e, antes que ela dissesse qualquer coisa reclamei do comportamento do médico. Ela se assustou e, talvez pelo ineditismo da situação, passou a me tratar com muito respeito e sensibilidade e até ofereceu um copo d’água. Ela falou, falou, explicou, escreveu, falou mais um pouco, mas eu não ouvi nada, porque só via a boca se mexendo, não escutava nada porque minha cabeça estava muito longe dali. Só pensava naquela palavra do médico: impotência.

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Essa coisinha ridícula é a próstata, mas faz uma falta...

Diagnostica eu

Só decidi fazer o primeiro exame de PSA* aos 55 anos de idade, depois de minha irmã médica insistir muito. Segundo ela minhas chances de câncer eram grandes porque meu pai tinha sido operado aos 71 anos. E a hereditariedade é o fator número um na probabilidade.

– Mas eu tenho só 55! argumentei, mesmo assim ela praticamente me intimou e eu não costumo desobedecer minha irmã.

Picada no braço pra tirar um pouco de sangue e logo no primeiro exame deu alteração. Nada assustador, mas que merecia um olhar mais profundo. Acendeu uma luz amarela. Como eu sempre fui procrastinador (nasci 16 dias depois do previsto), fui adiando a visita ao urologista até que acabei marcando. Tinha plano de saúde que nunca usava e pensei “vou gastar tudo que puder neste plano”.

O médico pediu para refazer o exame de PSA, mas pediu para eu ficar três dias sem pilotar moto, nem bicicleta, algo que pra mim era como dizer “ampute as duas pernas por três dias”. Obedeci e refiz o exame. Deu o mesmo resultado. Não lembro os valores exatos, mas era pra ter algo como 0,3 ou 0,6 e meu exame deu 3,2. Não sei as unidades de grandeza, mas agora acendeu a luz laranja.

Voltei ao médico – claro que sempre com hiatos de 15 a 20 dias porque estamos falando de uma porcaria de plano. Desta vez ele pediu ultrassom, mais alguns exames e, cereja do bolo, o toque retal, que fez ali mesmo, sem qualquer aviso prévio. Não foi traumatizante como exageram, mas ele fez uma cara muito preocupada ao explicar que “a próstata está bem aumentada”. 

exametoc.png

Onde vai com este dedo? Exame de toc não dói nada! 

Com os pedidos do exame nas mãos, aquela frase na cabeça, saí do prédio e quando me aproximei de onde tinha estacionado a moto outro choque: roubaram minha moto! Minha não, da Honda, porque era uma moto de teste. Andando de um lado pro outro, resumi aquela manhã da seguinte forma:

– PQP, hoje o dia promete, são 10 da manhã e já tomei no c* duas vezes!

Quem me socorreu? O sócio e anjo da guarda Ronaldo, que me buscou, me pagou o almoço, levou até em casa e ainda me deu um capacete novo porque o meu estava no baú da moto roubada!

Nesta fase eu ainda nem ventilava a possibilidade de estar desenvolvendo um câncer. Na minha cabeça era só um inchaço provocado pelo excesso de moto, bicicleta e pés na bunda que colecionei ao longo da vida. Levava uma vida normal, nem pensava nisso e, quando comentei com minha irmã que eu iria fazer o ultrassom ela pediu:

– Aproveita e faz outro PSA.

– Karaka, de novo?

Marquei os exames no mesmo dia. Pra fazer o ultrassom eles obrigam a gente a beber quase dois litros de água. Depois fazer xixi até a última gota. Saiu aquele xixi cor amarelo citrino que os médicos adoram.

A enfermeira e a médica eram gatas. Beeeem gatas. Quando me pediram pra deitar na maca e baixar as calças pensei no melhor. Ou melhor, no pior. A enfermeira era morena e bem novinha. Muito bonita mesmo. A médica era loira e linda. Ela me lambuzou com uma meleca e depois ficou passando um treco gelado pra lá e pra cá, bem perto do, do... dele mesmo. Passava tão perto que resvalava na ponta. Ponta que começou a crescer sem minha autorização.

Ô situaçãozinha constrangedora. Tentei pensar em outras coisas, mas não dava e foi ficando meio que indisfarçável. Acho que deve ser normal, porque tanto a enfermeira quanto a médica trocaram olhares e sorriram tipo “viu? eles não resistem”. Saí da sala delas, lambuzado, constrangido, intumescido e fui levar uma picada. De agulha!

Mais um PSA na conta...

Com o resultado dos exames fui marcar o retorno no urologista e... surpresa! Cancelaram meu plano de saúde! Verdade. A Prevent Sênior me deixou sem assistência em meio a um tratamento de possível câncer de próstata. Porque eu tinha esquecido de pagar UMA mensalidade em 10 anos de convênio. Isso mesmo: huma em 10 anos. Não deixei de pagar porque sou sovina, desonesto ou miserável. Não paguei porque confundi com os boletos dos meus pais e esqueci de pagar o meu.

Argumentaram que tentaram me telefonar no número FIXO!!! Como assim? Em 2017 os caras ligam para o telefone FIXO! Eu nem tinha mais a linha telefônica. Os boletos vinham pelo Correio. Era só mandar uma carta, telegrama, um e-mail, um SMS, mas não, ligaram num telefone fixo! Claro que foi intencional, fazem isso porque para reaver o plano eu teria de pagar mais caro, como se tivesse começando um novo plano. Golpistas! Detalhe: eu esqueci de pagar o mês de setembro, mas paguei outubro e novembro. Mesmo assim cancelaram. Vermes oportunistas. 

Sem plano de saúde recorri a um sistema novo na época chamado Dr. Consulta. Marquei urologista. Peguei os exames e quando entrei na sala o médico estava com uma camiseta da Harley-Davidson. Foi a consulta mais longa de todas!

Pela primeira vez um urologista conversou de forma esclarecedora. Não foi o que eu esperava ouvir, mas ele deixou claro que eu deveria fazer uma biópsia porque era uma hiperplasia que poderia ser benigna ou não.

– Mas estou sem plano de saúde! Custa caro? perguntei.

– Faz no particular mesmo, mas faz. Agora não é hora de se preocupar com dinheiro.

Acendeu a luz vermelha. Hora de ver isso com atenção.

Saí do consultório e recorri ao meu irmão médico (sim o raio pode cair duas vezes no mesmo lugar, tenho um casal de irmãos médicos). Ele conseguiu a biópsia pelo SUS e foi assim que eu fui parar naquela manhã de julho, descendo a rua Augusta de moto.

N.d.R - PSA é o exame de antígeno prostático. É feito pelo sangue, com uma rápida agulhada na veia. Não dói e o resultado não significa nada sem o laudo de um urologista. Mas uma dica: se algum parente próximo (pai, irmão, avô, tios) tiveram câncer de próstata comece a fazer o exame a partir de 45 anos, pelo menos uma vez por ano. Não se assuste com os números, fale com um médico. Não se consulte com o Google.

(Continua...)

publicado por motite às 04:32
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Terça-feira, 17 de Outubro de 2023

Segurança é filosofia

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Pensar, agir e viver de forma segura é questão de hábito

Nos últimos meses o Brasil foi surpreendido por dois acidentes de trabalho e um de trânsito que se tornaram evidentes. A explosão de um cilo de grãos em Palotina, PR, em junho; a explosão da caldeira em uma metalúrgica de Cabreúva, em SP, em setembro e o atropelamento do ator Kayke Britto no Rio de Janeiro, também em setembro. O que estas três ocorrências têm em comum? O conceito de segurança.

Esqueça os acidentes. Pense em filosofia de vida. Encontrar uma filosofia de vida é tão desafiador quanto desvendar o conceito de filosofia. Pode-se gastar milhões de caracteres e palavras sem se chegar a um consenso. Mas resumidamente a ideia de filosofia de qualquer coisa é quando a personalidade do indivíduo é regida por esse conceito. Assim, tem-se a filosofia religiosa, de trabalho, de arte, de esportes e uma pouco praticada por pessoas e empresas que é a filosofia de SEGURANÇA.

Desenvolver o conceito da filosofia de segurança é tão natural como hábitos de higiene. Ninguém precisa dizer para um adulto escovar os dentes, porque esse hábito já está incorporado no comportamento do indivíduo. Com a segurança o desafio é fazer este conceito se tornar um hábito a ponto de não exigir uma regulamentação, nem fiscalização.

Apesar de estar envolvido com várias atividades de risco, sempre levei o conceito da segurança junto comigo. Alguns amigos chegam mesmo a suspeitar de alguma psicose, mas é apenas filosofia de vida. Só para ilustrar, sou do tipo que ao entrar em uma embarcação, por mais prosaica que seja, já procuro pelo salva-vidas. Não tem? Não embarco. Quase morri afogado passeando de caiaque 40 anos atrás.

Outro exemplo: se eu entro em uma cozinha, seja de quem for, e perceber o cabo da panela pra fora do fogão, sem qualquer constrangimento vou lá e empurro o cabo pra parte interna. Se eu não enxergo o fundo do rio, da represa ou mesmo do mar, não me jogo de cabeça. Faz parte da minha personalidade.

Então imagine meu nível de desespero quando vejo pessoas se expondo a risco nas mais diferentes atividades. Mesmo dentro de casa, em atos aparentemente inocentes como subir no vaso sanitário para trocar uma lâmpada. Pouca gente sabe, mas o maior índice de atendimento do SAMU de São Paulo é de acidentes domésticos. A mesma pessoa que sobe no vaso sanitário troca a resistência do chuveiro sem desligar a chave geral!

Trabalhei 18 meses em um hospital. Foi tempo suficiente para entender que o ser humano é potencialmente falível.

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Motociclistas de aplicativos se sujeitam a riscos em nome de uma remuneração.

Segurança é hábito

O ser humano é um sobrevivente por natureza. Nós só chegamos aqui porque desenvolvemos potencialidades que garantiram a sobrevivência da galera toda. Imagine se nas primeiras pandemias não tivéssemos pessoas estudiosas que encontraram alguma forma de cura? Só de pensar que passamos por uma recente pandemia que praticamente parou o planeta, sem o mesmo grau de letalidade da peste negra ou gripe espanhola dá para entender que a humanidade aprendeu rápido a sobreviver.

E a regra número um da sobrevivência é: não morra! Parece muito óbvio, mas nossa geração passou também pela ameaça da AIDS e quantas vezes ouvi pessoas maduras se recusando usar preservativo. É uma afronta à segurança!

Entrando no nosso mundo das motos, sou de uma geração que não usava capacete. Já existia, eu mesmo tinha dois modelos F1, mas parecia literalmente um marciano, porque era o único que usava aquele penico na cabeça. Naqueles anos 1970 usar capacete era falta de macheza. Um dos caras que mais me zoava por causa do capacete era um ídolo da geração: Carlos “Jacaré” Pavan. Excelente piloto de motovelocidade, que morreu em um acidente ao disputar um racha na rua – sem capacete, porque não convinha à uma pessoa corajosa como ele usar algum equipamento de segurança.

Perdi muitos amigos em acidentes de moto, todos por falta do capacete. E hoje ainda tem gente que se recusa a usar o equipamento.

Já perdi a conta de quantas vezes o capacete me salvou a vida. E não foi só na moto! Já me acidentei também de bicicleta, skate e até escalando a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí, SP. Se estou vivo até hoje devo muito ao hábito de usar capacete em tudo que posso bater a cabeça. Aliás, tenho raiva de mim mesmo quando bato a cabeça em qualquer coisa.

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Esta foto é "de mentira": eu estou a um metro do chão, mas não parece! O capacete é de verdade!

Para que o uso do capacete se tornasse um hábito na minha vida tive a influência da minha irmã. Quando ganhei minha primeira moto, aos 12 anos, ela dizia que se me pegasse sem capacete faria meu pai vender a moto. Depois de algum tempo eu já não conseguia mais pilotar sem capacete. Vaidoso, não queria ficar com a pele oleosa...

A transformação do conceito de segurança em hábito começa sempre pela obrigatoriedade – do Estado ou da irmã mais velha – para depois se tornar um hábito. Hoje não consigo dar uma volta no quarteirão sem capacete e luvas. Sim, o uso da luva virou quase uma obsessão porque como jornalista eu dependo das mãos para viver. A menos que comece a trabalhar em rádio!

Quando a segurança se transforma em hábito a fiscalização deixa de fazer sentido. É isto que tento mostrar aos profissionais da segurança de trabalho. Os colaboradores de uma empresa precisam fazer do uso dos equipamentos um hábito tão natural como escovar os dentes. Não só equipamento, mas todas as regras de segurança precisam entrar na corrente sanguínea de forma a se tornar natural.

Atitudes como usar o corrimão da escada (outra mania que carrego), andar nas faixas limitadoras, caminhar sem olhar o celular, observar o entorno, devem ser tão naturais como respirar.

Só para aproveitar a deixa, o aparelho celular representa hoje um dos maiores empecilhos para a segurança patrimonial, de trânsito e de trabalho. O uso irracional do aparelho celular chegou a níveis tão preocupantes no mundo que o Japão instituiu multas para quem caminhar na rua olhando para o celular.

Recentemente visitei uma empresa e fiquei aguardando na sala do departamento de segurança de trabalho. Enquanto esperava observei uma moça, com jaleco da CIPA (comissão interna de prevenção de acidente) apoiando o celular no próprio carregador, enquanto carregava a bateria. Qualquer criança sabe que tanto o carregador quanto o aparelho geram calor. Quando colocados juntos a chance de superaquecimento é enorme.

Não acabou aí. O celular tocou e ela começou a conversar, mesmo com o aparelho sendo carregado na tomada, algo que é potencialmente arriscado. Isso tudo dentro de um departamento de segurança do trabalho.

Este exemplo serve para ilustrar a diferença entre a segurança de manual e o hábito da segurança. No meu escritório caseiro uso até um cooler extra para arrefecer o notebook de tanto medo de explodir a bateria!

O desafio da mobilidade segura

Agora sim vou voltar para os acidentes relatados lá no primeiro parágrafo. O primeiro caso, da explosão do cilo de grão, tratava-se de uma grande e muito bem estruturada empresa do setor agrícola. Várias pessoas testemunharam que a empresa tinha uma sólida e verdadeira preocupação com segurança, tratando o tema com absoluta seriedade. Todos os indícios preliminares apontaram para uma falha humana. Sim, por mais mecanizada que seja uma produção, em algum momento tem um ser humano operando. Humanos são falíveis.

Já na siderúrgica de Cabreúva o caso é mais complexo. Numa primeira investigação surgiram evidências de falta de alvarás, que induz a falhas estruturais mais graves. E mais uma vez o ser humano está por trás, não só na operacionalização da empresa, mas na burocracia e adequações às normas de segurança.

E finalmente o acidente com o jovem ator Kayke Britto. Novas imagens de câmeras de segurança mostram o ator em visível estado de embriaguez, pouco antes do acidente. E as imagens do acidente deixam claro que o jovem simplesmente atravessou a rua sem olhar para o lado. O motorista de aplicativo estava abaixo do limite de velocidade, parou, prestou socorro e ficou ao lado até a chegada do resgate. Depois foi submetido ao teste de alcoolemia que não detectou a ingestão de bebida alcoólica.

Mas e a “vítima”? O atropelado? Foi realizado teste de alcoolemia nele? Ele pode ser responsabilizado pelo acidente? Pode ter de indenizar o motorista? Não foi divulgado nenhum teste, porque no Brasil a única vítima de um acidente é quem se feriu. Sim, ele pode ser responsabilizado pelo acidente se ficar provado que estava alcoolizado. E sim pode ser condenado a indenizar o motorista pelos danos e transtornos causados.

No momento que soube do atropelamento comentei que ele iria sair dessa, porque é jovem, saudável e traumatismo craniano não assusta mais ninguém hoje em dia. Ele recebeu alta do hospital, está se recuperando em casa em vai sim voltar a ter sua atividade normal.

Dentro do preceito da filosofia da segurança a “vítima” foi a maior responsável pelo acidente. Mas a sociedade tende a fazer justiça sempre condenando o motorista e inocentando o atropelado. Sobre isso já escrevi um artigo “A outra vítima”, que mostra como a vida de um motorista pode ser impactada pela irresponsabilidade da vítima. E se Kayke tivesse morrido? Este motorista estaria eternamente condenado a viver com essa dor. Mas ninguém pensa nele...

Dentro das palestras que realizo sobre Filosofia da Segurança tento mostrar que muitas pessoas carregam o estigma da vítima. Relevam de tal forma o conceito da segurança que chegam mesmo a “pedir” por um acidente. Basta ver como a maioria dos motociclistas de aplicativos se comportam. Tem situações que parece que estão clamando por um acidente grave. Não pode ser normal o comportamento que adotam. Mas quem se importa?

Os “CEOs” dos apps dormem o sono dos justos, afinal não há vínculo empregatício; o Estado é omisso ao relaxar a fiscalização sob o argumento flácido do “ah, pelo menos estão trabalhando” e cabe ao sistema de saúde arcar com a sobrecarga e custos dos estropiados no trânsito.

Nesta cadeia não passa nem de longe o conceito da Filosofia da Segurança. O município de São Paulo ainda conseguiu implantar as salvadoras faixas azuis. E o que eu vejo nelas? Retardados rodando de moto a 90, 100 km/h cercado por fileiras de carros dos dois lados. O que faltou? Educação e fiscalização.

Estes jovens arriscam a vida porque é assim que a sociedade os trata. Quem pede quer receber logo. Quem vende quer entregar logo. E quem entrega quer ganhar mais. Neste caos a única certeza é que o conceito de segurança ficou lá no meio do caminho.

 

publicado por motite às 15:06
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