Sexta-feira, 24 de Abril de 2020

O papel da moto durante a pandemia do corona vírus

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Nunca os motoqueiros foram tão necessários. Foto: Tite

Como o Corona vírus colocou a moto de volta na foco da mobilidade

Há anos defendo a teoria de que os motofretistas, ou motoboys, são uma espécie de Geni* do trânsito. Quando está tudo bem eles são odiados e maltratados, mas quando alguém está com fome e não quer sair de casa são os motoboys que levam a pizza. Então, num passe de mágica, eles são adoráveis, não importando o CPF, ficha corrida, comportamento e educação.

Essa história se repete há mais de três décadas. Odiados por uma parcela da cidade, são eles que de certa forma estão salvando milhares de pessoas durante o período de confinamento. E a moto entra com aquilo que ela tem de mais destacável que é a mobilidade a baixo custo, acesso fácil em áreas densamente habitadas e, cereja do bolo, é um veículo naturalmente feito para atender o isolamento social, porque as motos de carga só levam uma pessoa. E quando levam duas, ambas estão de capacete.

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Alguns comerciantes estão facilitando e ajudando os motociclistas profissionais. Foto: Tite

Os aplicativos de entrega de mercadorias, refeições e documentos não pararam e houve até uma correria em busca de mais motociclistas. Os atacadistas registraram uma queda de vendas de até 70% nas primeiras semanas, mas passados quase 30 dias recuperaram e registram um faturamento apenas 30% menos. Parte dessa recuperação veio dos restaurantes que passaram a atender em regime de delivery e aí que entraram os “cachorros loucos” com suas motos.

Imagine o que é manter as pessoas em casa em uma cidade como São Paulo que tem 12,5 milhões de habitantes, população maior que a de Portugal e Bélgica. Se as pessoas não podem sair de casa, o jeito é levar os produtos até elas! Uma grande atacadista de São Paulo, a PMG, abriu as vendas para pessoa física com entrega em casa. Por isso, o mercado de alimentos conseguiu sobreviver em plena pandemia.

Herança maldita

O estigma dos motofretistas não é de hoje. Eu mesmo fui motoboy no final dos anos 1970 quando a indústria brasileira ainda gatinhava. Motoboy era a ascensão profissional do office boy. Ter uma moto em São Paulo fazia o dia render muito mais porque não precisava passar horas se deslocando em ônibus lotados e desconfortáveis.

Mas a primeira moto nacional de 125cc só veio em 1976. De forma muito discreta começávamos a ver algumas delas paradas em frente aos bancos, cartórios, fóruns etc. A indústria foi crescendo, a facilidade de aquisição aumentando e nos anos 1990 os motoboys já eram uma realidade. Pipocaram empresas especializadas em entregas rápidas e a atividade deu um salto gigantesco a partir do ano 2000 quando os problemas de mobilidade nas grandes cidades já estavam muito mais evidentes.

Quando começou, a atividade de motoboy era bem remunerada e atraía estudantes – como eu – e aqueles que simplesmente não se adaptavam a um ambiente de escritório – como eu de novo. Foi graças a essa atividade que consegui pagar os primeiros anos da faculdade de jornalismo. Também era uma atividade para apaixonados por motos. Tinha um ar de rebeldia e liberdade que atraiu muita gente. E eu ainda era um motoboy de luxo porque rodava de Honda CB 400Four!

Quando o dono do escritório (meu pai!) me promoveu para trabalho interno entrei em depressão e pedi demissão! Virei jornalista!

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Num dia normal os motoboys disputam espaço com os carros. Foto: Tite

Mas deixa lembrar como era o mercado nessa época. Em 1992 o total de vendas foi de pouco mais de 90.000 motos no ano. Quando rompemos o século 21, mais precisamente em 2005 o mercado atingiu essa cifra de 90 mil unidades por mês! E chegou a um milhão/ano neste mesmo ano. Esse crescimento veio no embalo de um programa de liberação de crédito que inundou as cidades de motos.

Com a facilidade de acesso, rapidamente o número de motoboys cresceu exponencialmente. Como em tudo no mundo, o aumento na oferta de mão de obra fez o valor das tarifas despencarem. Só para título de comparação, em valores de hoje, eu recebia uma média de 20 reais/hora. Hoje, passados quase 30 anos, o valor é de mais ou menos R$ 8,0 a hora. Porém, com uma diferença: hoje os aplicativos pagam por quilômetro rodado, um perigo porque estimula o aumento da velocidade.

No meu tempo era perfeitamente possível trabalhar seis horas por dia, de segunda a sexta, estudar e ainda sobrar tempo livre para lazer. Hoje um motociclista profissional passa até 12 horas por dia, sete dias por semana, em cima da moto para chegar a um “salário” de R$ 4.000. Com muito esforço!

E vieram os problemas naturais dessa expansão. Um deles foi o aumento no acidente com vítimas. Mas esse mito caiu por terra quando a Faculdade de Medicina da USP e a Abraciclo, realizaram uma pesquisa para identificar o perfil da vítima. Para surpresa geral, os motoboys representavam apenas 28% das vítimas. Algo difícil de entender quando se observa a forma quase suicida como pilotam.

Na verdade é uma ilusão. Calcula-se que circulam cerca de 250.000 motociclistas profissionais em São Paulo, dentro de uma frota de mais de um milhão de motos. Os motoboys rodam todos os dias, muitos quilômetros e essa vivência traz habilidade. Já o motociclista que usa a moto apenas como meio de transporte roda poucos quilômetros e demora mais para obter habilidade. Isso gera dois tipos de perfis: o habilidoso sem responsabilidade e o responsável sem habilidade! E quando se trata de sobrevivência no trânsito a habilidade é mais determinante do que a responsabilidade.

Não é só isso. O motoqueiros irresponsáveis representam uma pequena parcela. A imensa maioria pilota de forma responsável. Porém mais uma vez entra em cena a ilusão. Quando um motociclista responsável passa por um motorista ou pedestre a moto nem sequer é percebida. Se passarem vinte “normais” ninguém percebe. Mas se passar UM fazendo barulho, buzinando, batendo no espelho será lembrado por muito tempo. Isso causa a sensação de que tem mais maus do que bons motociclistas.

E ainda tem o aspecto da imitação. Como já mostrei, os motoboys adquirem habilidade rapidamente, enquanto um motociclista “civil” demora mais. Porém esse novato acaba imitando o arquétipo do motoboy e tenta acompanhar esse ritmo sem ainda ter adquirido experiência. O resultado é o que ficou demonstrado na pesquisa: 72% das vítimas são de usuários comuns e não motoboys!

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Não pense que é fácil trabalhar com moto. É pau, pedra, chuva é o fim do caminho! Foto: Tite

Amor em tempos de vírus

Eis que chegamos ao ano 2020 com uma surpresa: um vírus letal que se espalhou rapidamente pelo mundo e fez o brasileiro experimentar uma tal de quarentena. A recomendação de isolamento social obrigou mais da metade da população a ficar dentro de casa (segundo censo da Prefeitura na primeira semana de abril), enquanto a outra parte trabalha para ajudar quem fica isolado. Assim o brasileiro redescobriu a importância do motoboy!

Com os novos aplicativos de transporte com moto, como iFood, Uber Eats, Loggi ou Rappi essa atividade permitiu, facilitou e até incentivou a quarentena. E como na fábula da Geni e o Zepelim o motoboy passou a ser admirado, respeitado e recompensado.

Em Belo Horizonte, MG, os moradores começaram uma campanha – rapidamente disseminada para outras cidades – de solicitar um lanche e dar ao próprio motociclista! Foi uma ação de reconhecimento porque muitos desses motociclistas não tem tempo nem de parar para se alimentar. Em São Paulo eu vi uma cena inesquecível: um motoboy tirou um pacote de geléia de mocotó em barra do bolso e começou a comer enquanto estava parado no semáforo! E ainda me ofereceu!

As gorjetas também aumentaram. Dos tradicionais dois reais saltou para cinco e até dez reais! Um reconhecimento pela importância desse trabalho. Alguns motoboys iniciaram a campanha “fique em casa” pelas redes sociais e com avisos em suas enormes mochilas. Outra consequência da pandemia foi o aumento expressivo de mulheres na atividade! Principalmente jovens em idade escolar. Isso eu percebi pelo aumento de mulheres procurando o meu curso ABTRANS. A boa notícia é que mulheres se envolvem muito menos em acidentes!

Outra boa notícia é que os acidentes diminuíram quase a zero, porque as cidades estão praticamente vazias de carros, mantendo apenas caminhões e ônibus em circulação. Sem os carros não há necessidade de transitar no corredor entre eles, uma das principais causas de acidente. E nem precisa se arriscar, porque sem carros a média horária das motos aumentou naturalmente e o motoboy circula sob uma pressão bem menor.

Ao contrário do que se imagina, não é o excesso de velocidade que causa acidentes entre moto e carro, mas a DIFERENÇA de velocidade! Imagine uma via que tem limite de 50 km/h. Se o trânsito está carregado e os carros circulando a 15 km/h, uma moto rodando a 45 km/h está dentro do limite de velocidade, porém está três vezes mais rápida do que um carro. É isso que causa os acidentes.

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Seja gentil com os motoqueiros, dê gorjeta! Foto: Tite.

Para piorar essa equação, a 45 km/h (ou 12,5 metros por segundo) uma moto em ótimas condições, pilotada por um motociclista habilidoso, percorre cerca de 10 metros até parar totalmente. Dez metros são mais ou menos cinco carros, mas a fechada vem do motorista que está a dois carros de distância! O resultado dessa matemática é a batida. Por isso, nos meus cursos eu recomendo usar o corredor entre os carros no máximo a 30 km/h.

Pelo menos durante esse período de quarentena, com a pandemia do Covid-19, os motociclistas estão vivendo uma condição inédita de cidades praticamente vazias e apenas as motos em circulação. Surgiram várias ações espontâneas para ajudar e melhorar a vida dos motoboys. Alguns shopping centers permitiram o funcionamento de restaurantes para atendimento delivery e liberaram a entrada apenas de motos.

No centro de São Paulo os estacionamentos, que normalmente não aceitam motos, abriram as portas para os motociclistas cobrando valores simbólicos. Prédios residenciais que antes proibiam a entrada de motos já estão permitindo. A concessionária Honda Remaza manteve parte da oficina atendendo basicamente motofretistas e ofereceu sistema de entrega de peças aos clientes. Além de uma campanha nas mídias apoiando o trabalho destes profissionais. Até a imprensa, que normalmente costuma massacrar os motoboys, passou a mostrar reportagens positivas.

Ou seja, toda a cidade está percebendo a importância da moto como ferramenta de mobilidade quando todo mundo está parado. Só faltou mesmo um pouco de sensibilidade por parte do CET e Detran que poderiam liberar as motos novamente nas marginais e até estacionamento nas calçadas.

Conversei com vários motoboys durante esse período. Sem anotar nomes, apenas um bate-papo entre um farol fechado e outro. O que ouvi foi basicamente que estão trabalhando mais, porém com menos pressão, mas que o excesso de gente no ofício fez cair a rentabilidade individual. Mas todos foram unânimes em afirmar que o trânsito sem carros ficou uma maravilha!

Qual seria o melhor cenário? Que ao fim dessa pandemia a população continuasse a olhar para estes profissionais com o mesmo respeito e carinho. Claro que existem os maus, mas é assim em qualquer atividade, da medicina à engenharia, passando por todas as áreas. Isso é da condição humana.

Mas lembro um conselho que aprendi com um adestrador de cães. Trate com carinho que receberá carinho de volta. Trate com brutalidade e vai levar uma mordida! Isso funciona com gente também!

A história da Geni e o Zepelim termina quando ela salva a cidade, mas no dia seguinte toda a população acorda e volta a desprezá-la e humilhá-la. Não deixe isso acontecer com os motoboys. Respeite, agradeça e ajude os motoboys, porque você vai continuar precisando deles.

* Geni era a personagem da peça Ópera do Malandro, escrita por Chico Buarque. Nesta fábula existia uma cidade onde todos desprezavam e humilhavam a Geni por ser uma prostituta que se deitava com qualquer um. Mas quando a cidade foi ameaçada por um comandante doido em um zepelim cheio de bombas quem salvou foi a Geni, por quem o comandante se apaixonou e desistiu da ideia de destruir a cidade. A letra começa com todo mundo jogando pedra na Geni, repetindo a frase “maldita Geni”. Mas quando ela salva a cidade mudam a estrofe para “bendita Geni”. O que pouca gente sabe é que na versão original Geni era um travesti, mas a censura da época não permitiu.

Para conhecer a música Geni e o Zepelim clique AQUI.

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publicado por motite às 16:03
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Sábado, 18 de Abril de 2020

A História da Foto: comparativo entre CBX 750F e RD 350

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Uma viagem emocionante e vibrante com dois ícones da indústria nacional (Foto: M. Bock)

A atividade de piloto de teste de motos nos primórdios da civilização era penosa, arriscada e emocionante. Tudo era ainda muito novo para nós, desde os instrumentos de medição compostos pelos mais diferentes ímetros, ômetros e ógrafos que tínhamos de aprender a usar, até a sensibilidade de perceber, identificar e solucionar problemas nas motos no meio de uma viagem.

Quem chegou agora nesse ofício nem imagina o que é pegar uma moto com defeito e descobrir só durante o teste, numa estrada entre nada e coisa alguma, debaixo de chuva, à noite, sem lanterna e só com as ferramentas originais da moto. Mais do que isso, hoje em dia seria inimaginável o que aconteceu nessa aventura-teste em dezembro de 1986, quando a Yamaha nos entregou uma RD 350LC cheia de problemas, justamente para comparar com a rival Honda CBX 750F!

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Uma das edições mais vendidas da história da Duas Rodas.

Mais uma vez coube a mim a inglória missão de buscar a moto na sede da Yamaha, na República Distante de Guarulhos, numa sexta-feira à tarde, dia que milhões de motoristas decidem circular pela Via Dutra, único acesso para São Paulo. Depois do tradicional chá de cadeira, peguei a moto com precisos 4 km marcados no hodômetro. Isso mesmo: ela saiu da linha de montagem, foi para o pátio da fábrica, deu algumas voltas para um check-down tradicional e chegou diretamente nas minhas mãos para uma viagem-teste de 2.500 km até o vizinho Paraguai.

Hoje em dia isso seria impensável. Os fabricantes rodam centenas de quilômetros antes de entregar uma moto para teste. Checam até o ar do pneu. A qualidade, não a calibragem. Dizem as más línguas que essas motos de teste eram “preparadas” antes, mas isso é balela. Porque se for verdade o que aconteceu nesse teste comparativo foi o único caso de fabricante “despreparar” uma moto pra teste.

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Olhe nossas carinhas de bons moços limpinhos na Paulista. (Foto: Mario Bock)

Para completar, esta RD 350 seria a nossa primeira avaliação da versão nacionalizada. Até este dia nós só tínhamos rodados nas versões pré-série e todas estavam impecavelmente perfeitas. Eu fui mais além: cheguei a pilotar uma RD 350 japonesa em Interlagos, antes de ver uma “made in Brazil”. A minha lembrança daquela RD japonesa era de uma TZ 350 com farol e lanterna!

Foi com essa doce lembrança e o coração saindo pela boca de tanta ansiedade que dei a partida (a pedal) na RD 350 brasileira, engatei a primeira e entrei na Dutra, de novo...

Nessa data eu era um jovem de 28 anos, mas já tinha muita experiência com moto. Comecei aos 12! Por isso não precisei rodar nem 100 metros para perceber alguma coisa muito errada na RD 350. A frente estava “pesada” e eu precisava fazer muita força para virar. Tudo bem que os semi-guidões eram esportivos, mas estava demais. Parei num posto de gasolina para conferir a calibragem e... bingo! O pneu dianteiro estava com 12 libras, quando deveria ter 28. Foi um sinal do que viria pela frente.

Num trecho mais livre da Dutra consegui chegar a 100 km/h e percebi uma vibração muito anormal. O Gabriel Marazzi vinha de CBX 750 atrás de mim e fazia sinais como se quisesse saber “que cazzo está acontecendo”? Paramos mais uma vez e eu expliquei pro Gabriel que a moto estava balançando demais. A frente chacoalhava como se estivesse tudo solto. E no dia seguinte pegaríamos a estrada para o Paraguai!

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Anúncio veiculado pela Yamaha bem no meio do teste. Infeliz coincidência!

Chegamos a pensar que era culpa dos pneus Pirelli Phanton nacionais com câmera. Mais experiente do que eu (ele praticamente nasceu em cima de uma moto), o Gabriel achou melhor levar a moto a uma revenda Yamaha. Constatamos uma série de problemas: os parafusos das mesas e a porca da coluna de direção estavam com mais torque do que deveria e a porca do eixo dianteiro estava solta!!! E eu a 120/140 km/h na Dutra no meio de caminhões com a porca do eixo dianteiro soltinha da silva! Era mais um sinal!

Clima tropical

No dia seguinte nos preparamos para fazer a foto da “largada” na avenida Paulista com objetivo de rodar cerca de 1.100 km e chegar no mesmo dia em Foz do Iguaçu. Rodar 1.000 km num dia era moleza para nós, jovens, naquela época que não existia radar de controle de velocidade e com duas motos que passavam de 190 km/h fácil. Mas...

Como sempre tivemos um atraso, dessa vez por minha culpa. Ou melhor, por culpa da imprecisão do marcador de gasolina da CBX 750F que indicava ainda um pouco de gasolina no tanque, mas era mentira! Fiquei sem gasolina com uma moto pesada no meio do corredor Norte-Sul. Felizmente um motoqueiro socorreu mas perdemos um tempo precioso.

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Bastava programar uma viagem teste para começar a temporada de chuvas. (Foto: Tite)

Chuva

Quando finalmente colocamos a proa rumo ao Sul, entramos na rodovia Castelo Branco e... começou a chover! Só pode ser praga, pensei, porque bastava programar uma viagem-teste e o nosso clima tropical justificava o nome inglês “rain forest”. Eu comecei na Honda CBX 750 e o Gabriel na Yamaha RD 350.

Mesmo com asfalto molhado mantivemos uma média horária alta porque a rodovia era segura, as duas motos estavam com pneus novos e nossas viseiras ainda estavam perfeitas. Pena que isso durou bem pouco. Eu me sentia super seguro na chuva a 160 km/h com a CBX 750: ela era muito firme, confortável e os pneus Pirelli Phantom (os mesmos da RD, mas medidas diferentes) passavam muita confiança, o que me levou a inocentar os pneus com relação aos problemas daquela Yamaha.

Até que chegamos na região do Paraná e pegamos as estradas de pista simples, com uma camada de terra vermelha que, misturada com a água, formava uma tinta que grudava na viseira dos capacetes. Nestes idos de 1986 os capacetes nacionais não tinham a qualidade de hoje e um dos itens que mais dava problema era justamente a viseira. Feitas de material simples elas riscavam só de olhar! Imagine passando a luva com uma camada de terra vermelha!!! A uma certa altura eu não enxergava mais nada e para piorar meus óculos de grau embaçavam. Se eu abrisse a viseira sujava as lentes do óculos, se fechava embaçava tudo. Quando vinha algum veículo em sentido contrário a luz do farol batia na viseira riscada e formava umas estrelas cintilantes que nem árvore de natal.

No meio desse inferno, já começando a escurecer, fui ultrapassar um caminhão em meio ao spray de tinta vermelha quando peguei um baita buraco que quase me mandou pro espaço. Fiz sinal pro Gabriel parar e decidimos desistir da ideia de chegar em Foz no mesmo dia. Dormimos no primeiro hotel de beira de estrada que encontramos. Putos da vida porque não conseguimos cumprir os 1.000 km num dia como era o planejado.

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O nome do rio já era um sinal de algo de errado não iria dar certo. (Foto:Tite)

Fizemos de tudo para chegar em Puerto Stroessner (atual Ciudad de Leste) no sábado para pegar as lojas abertas fazer algumas compras – pouca coisa, afinal estávamos de moto – e voltar já sem compromisso de rodar os 1.000 km num dia. Vivíamos a época da proibição de importação e eu estava babando para conseguir um toca-disco a laser, sonho de consumo de todo audiófilo do planeta. Pouca gente sabe, mas o Gabriel Marazzi era – e ainda é – um roqueiro raiz. Ele era o DJ das festas de 15 anos da maioria dos vizinhos, muito antes de inventarem o termo DJ. O CD tinha acabado de ser lançado pela Philips e – hoje posso confessar – toda essa viagem foi planejada com o claro objetivo de comprar os CD players no Paraguai.

Que passa? No passa!

À noite o tempo melhorou a chegamos até a ver o céu estrelado. Legal, pensei, amanhã vamos ter sol e descontar o atraso. Santa inocência...

Assim que terminamos o café da manhã voltou a chover! Sabe o que é pior que chuva? Vestir macacão de couro e capacete encharcados! Mesmo com capa de chuva o macacão molhou e ficou pesando uma tonelada e meia. Naquela época não tínhamos acesso aos equipamentos de hoje, tudo era gambiarra, improviso e resultado de anos de “pesquisa” se ferrando de várias formas. Um desses aprendizados foi o verdadeiro papel da imprensa: forramos toda nossa roupa com jornal! Até na cueca, ponto nevrálgico e limite da decência de qualquer motociclista na chuva. Cueca molhada é o desconforto máximo e quando isso acontece normalmente é o momento que entrego meu destino a Deus. Nada mais pode piorar.

Pode sim. O capacete molhado! É nojento, frio, desconfortável e sinal que o Homem pode descer a níveis de higiene bem rasteiros. Não tínhamos (ainda) as balaclavas e não dá pra colocar jornal por dentro do capacete.

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Na tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai. (Foto: Leitor)

Assim, molhados, fedidos e humilhados tocamos rumo à fronteira. Chegamos até relativamente cedo a ponto de fazer uma foto no marco da tríplice fronteira Brasil/Argentina/Paraguai. Um dado curioso: nesse local encontramos um leitor de Duas Rodas que sabia tudo das nossas vidas. Foi quando comecei a ter respeito e admiração muito maior pelos leitores.

Já sem a chuva para nos infernizar finalmente chegamos à fronteira e... surpresa! Não podíamos entrar com as motos porque não estavam nos nossos nomes! Essa era uma burocracia na época que causou muito transtorno na minha vida e fez com que eu nunca fizesse a famosa viagem à Patagônia: eu só viajava com motos de fábrica e nas fronteiras da Argentina e Paraguai havia a exigência de o veículo estar no nome do condutor.

Fizemos meia volta, mas não desistimos do contrabando, afinal TODA aquela viagem tinha como objetivo comprar os CD Players, mas esta burocracia infernal nos fez perder muito tempo e só conseguiríamos voltar no dia seguinte, domingo, com as lojas fechadas!!! Pensa numa dupla desesperada! Todo nosso plano foi – literalmente – água abaixo por causa da chuva e da burocracia.

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A famosa foto em frente às cataratas do Iguaçu. Hoje não pode mais entrar de moto. (Foto: Tite)

Mas não desistimos! Sugeri ao Gabriel fazer turismo no domingo, visitar o Parque Nacional, fazer fotos na cachoeira, jantar um belo churrasco e deixar a contravenção para segunda-feira, mesmo sabendo que o Roberto Araújo comeria nosso fígado com cebola, afinal o teste era para edição de janeiro e o mês de dezembro era mais curto por causa das festas de fim de ano. Perder um dia de trabalho significava muito nos tempos de fotolito, fotocomposição e past-up.

Mesmo assim decidimos ficar mais um dia. Seria muito cruel voltar do Paraguai sem as nossas muambas, ainda mais porque eu tinha deixado para comprar os presentes de natal naquelas lojas. Imagine a ansiedade! Só que isso nos obrigaria a voltar os 1.100 km num dia, mesmo que isso custasse nossas vértebras em cima daquelas motos.

No vácuo a 200 km/h!

Mal o dia raiou na segunda-feira, já estávamos na “ponte da amizade” rumo às compras. Mas assim que passamos pela fronteira, surpresa: ERA FERIADO NO PARAGUAI!!! E, claro, as lojas estavam fechadas!

Olhei pra cara do Gabriel e meu primeiro pensamento foi me jogar nas águas lamacentas do rio Paraná. Todo nosso esforço, os 1.000 km debaixo de chuva, os riscos na estrada, a possibilidade de ter nossos fígados servidos numa bandeja de prata pro Roberto e Josias Silveira devorarem, tudo isso por NADA?

Mas se existe no mundo uma dupla que não desistia de nada era nós. Esta fase da Revista Duas Rodas foi uma das melhores do jornalismo especializado: Geraldo Simões e Gabriel Marazzi! Só hoje entendi a dimensão dessa dupla no jornalismo. Éramos tipo William Bonner e Fátima Bernardes (sem conotação sexual, por favor). E a Duas Rodas era a Globo da imprensa especializada. Por isso decidimos que não poderíamos voltar do Paraguai sem um CD Player ou presos por descaminho. Nossas honras estavam em cheque.

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Mais uma foto famosa na Internet: o primeiro teste da CBX 750F nacionalizada. (Foto: M. Bock)

Assim que pisamos na rua do comércio percebemos que os paraguaios tinham dado um jeitinho de vender, mesmo com as portas fechadas: camelôs! Isso mesmo, os lojistas montaram barracas e colocaram os produtos mais procurados à venda. Graças a esse jeitinho achamos um CD Player, mas apenas UM e era do tipo walkman, portátil. Comprei pelo equivalente a US$ 100.

Só tínhamos que decidir quem passaria com a muamba pela fronteira, sabendo que os policiais faziam uma revista randômica. Nós dois tínhamos cara de contrabandista, mas eu decidi colocar na mochila e tentar a sorte. A menos de 500 metros da fronteira o Gabriel teve um momento sensitivo, me parou, pegou o aparelho e colocou dentro da calça, alegando que nenhum policial colocaria a mão ali.

Deu certo! O policial me revistou, mas deixou o Gabriel passar! Nosso principal objetivo estava alcançado, só restava voltar pra casa e chegar no mesmo dia.

Pensa numa viagem doida. Nós trocamos de motos e eu voltei pilotando a RD 350 e o Gabriel na CBX 750. Essa RD estava muita estranha. Não passava de 180 km/h e vibrava tanto que perdemos várias porcas e parafusos no caminho. A qualquer momento a carenagem poderia desprender. Mesmo assim tocamos de volta num ritmo frenético. Viajar com o Gabriel era perfeito para devoradores de asfalto, porque ele só para pra abastecer ou se pegar fogo na moto.

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Na metade do caminho parou de chover. Quando chegamos na parte duplicada da rodovia colocamos os aceleradores na posição ON e viemos dando final a maior parte do tempo. Como a RD não passava de 180 decidimos que o Gabriel iria me puxar no vácuo, assim conseguimos chegar a 200 km/h comigo naquela RD que vibrava tanto que minhas bolas não paravam na cueca. Claro que não recomendo isso a ninguém, mas eu confiava plenamente no Gabriel e vice-versa.

Quando finalmente chegamos na Marginal Pinheiros senti a traseira da RD balançar sem motivo aparente, mas creditei ao meu cansaço. Parei na garagem de casa anoitecendo, fiz a famosa foto deitado na garagem que seria publicada em outra ocasião.

No dia seguinte corri comprar um CD e lembro claramente que foi um disco do Queen! Quando olhei pra roda traseira da RD o susto: o regulador de tensão da corrente de transmissão tinha pulado e a roda estava desalinhada. Por isso aquela balançada esquisita na Marginal. Só não sei se já estava assim nos trechos acima de 180 km/h!

O mais surpreendente deste teste foi o texto. Nenhum dos problemas da Yamaha RD 350 foi omitido, pelo contrário, foram descritos minuciosamente. Mais do que isso, o Roberto Araújo fez um editorial esculachando a Yamaha, inclusive citando nominalmente o diretor comercial da empresa. Se isso fosse publicado hoje em dia a revista fecharia. Mas naquela época a Duas Rodas tinha um peso enorme. Os executivos das fábricas nos tratavam com muita reverência. Mas o fato de a Yamaha estar cheia de problemas e a Honda não ter apresentado nada de errado, começou neste comparativo o boato de que a Duas Rodas (e seus jornalistas) recebiam um “por fora” da Honda.

O que os Yamahistas não aceitavam na época – e até hoje – é que a Yamaha tinha problemas sérios de controle de qualidade. Até a decisão de ir para Manaus, os produtos da Yamaha tinham tantos problemas que o valor de revenda era muito baixo. Pior que isso: algumas concessionárias Yamaha não aceitavam uma Yamaha usada em troca! Acredita nisso? Certamente algumas cabeças rolaram depois da publicação deste comparativo, porque sintomaticamente nunca mais pegamos uma moto da Yamaha tão problemática.

Com relação ao contrabando, quase 20 anos depois eu dei esse CD Player de presente pro Gabriel que o conserva até hoje.

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publicado por motite às 17:25
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Terça-feira, 14 de Abril de 2020

A história da foto: perdidos em Minas

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Eu e Mário Bock, uma dupla com milhares de kms rodados e histórias!

Uma aventura-teste com a Agrale SXT 16.5 e Yamaha DT 180

Fotos: Mário Bock

Nos meus primeiros anos como jornalista especializado o mercado de motos ainda estava bem embrionário. Poucas marcas, poucos produtos, já dominado pela Honda, mas com boa participação da Yamaha. Até que uma empresa de Caxias do Sul, criada por filhos de imigrantes italianos apaixonados por motores, lançou-se nessa briga com uma marca já conhecida no universo agrícola: Agrale!

Foram buscar tecnologia na Itália e bateram na porta da Cagiva, nome adorado por todo mundo que tinha sangue de verdade nas veias. Dessa parceria nasceu a Agrale SXT 16.5, uma trail de 125cc, motor dois tempos, arrefecido a líquido que mexeu com a minha testosterona logo à primeira vista. Uma 125cc naquela época tinha 12,5 CV e esta chegou com 16,5 CV e o radiador.

Nunca escondi minha paixão pela marca, pela família Stedile* (donos da Agrale), especialmente a filha Dolaimes Stedile Angeli, linda, loira, olhos azuis, inteligente, elegantérrima, simpaticíssima e de uma gentileza rara. Não tinha homem na face da Terra que não se apaixonasse por este pacote completo. Mas ela mantinha o distanciamento digno de uma rainha diante do séquito. Inacessível aos mortais. Infelizmente nos deixou de forma precoce em 1995.

Daria para escrever um livro inteiro sobre a família Stedile – se não foi feito ainda – e essa admiração fazia de nós, jornalistas, fãs de carteirinha da marca Agrale. Era uma fábrica nacional, feita com a coragem dos imigrantes italianos, com a paixão de quem ama o que faz e a gentileza de verdadeiros lordes. Nunca, nos meus quase 40 anos de jornalismo, fui tão bem tratado e respeitado, quanto pela família Stedile, incluindo o patriarca, Francisco, os filhos Carlos e Franco (que apoiavam todas as minhas loucuras) e até os netos! Contrastava demais com a frieza dos executivos japoneses e alemães que convivíamos até então.

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A foto da capa foi num raros momentos de sol já no final da viagem.

Logo nos primeiros testes com a Agrale SXT 16.5 percebi que era uma moto com grande potencial, mas tinha muito o que melhorar em vários pontos, principalmente o sistema elétrico que dava paus inexplicáveis. Mas era uma moto pra quem gostava de esportividade e batia de frente com a Yamaha DT 180, ícone off-road, dominadora das trilhas e responsável por romper o hímen de muita gente no fora-de-estrada. No meu caso era hímen complacente porque precisei de duas DT 180 até aprender!

Nada mais natural que fizéssemos um teste comparativo entre a recém chegada Agrale e a já dominatrix Yamaha. O ano era 1985 e o mês de dezembro, claro, com todos os implicativos das datas festivas. Mas não era um teste qualquer, feito no quarteirão, queríamos algo mais marcante. O editor na época era o Roberto Araújo que permitia todo tipo de insanidade, desde que voltássemos com uma história boa. Levávamos muito a sério o conceito de “Aventura-Teste” e tinha de reunir todos os ingredientes para uma narrativa que prendesse leitor logo no primeiro parágrafo. Tudo decorado com fotos de situações dramáticas, coisa que nem precisava esforço quando tinha a parceria do Mário Bock.

Eu tinha acabado de voltar do Enduro da Independência (em setembro) e, como sempre, preservei uma cópia da planilha (mapa roteirizado) dos quase 1.000 km de trilhas. E tive a ideia insana do mês, do ano, da década: repetir parte do roteiro do Enduro da Independência, começando por asfalto em São Paulo, entrando na trilha em Três Corações (MG), terminando o trecho de terra em Lavras, (MG) e retornando pela rodovia para São Paulo. Daria mais de 1.500 km por todo tipo de situação, em dois dias, com pernoite em Lavras.

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Choveu durante quase todo o teste.

Valeu, São Pedro!

Pegamos as motos absolutamente zero km e teríamos de amaciar os motores na estrada até Três Corações, mantendo os limites de rotação e velocidade indicados pelos fabricantes. Teríamos 320 km para “soltar” os motores dois tempos. Nesse torturante trecho de asfalto com motos pequenas nossa média horária era ridícula e, claro, saímos bem atrasados, o que já projetava o primeiro problema de programação: chegar em Lavras durante o dia.

Se a média horária era baixa na rodovia tudo ficou pior quando chegamos em Três Corações para enfrentar cerca de 50 km de estradas de terra até São Tomé das Letras, cidade mística de duendes, fadas e outros seres esquisitos. A estrada estava “pesada” porque tinha chovido muito na véspera e o Mário não tinha muita experiência com fora-de-estrada, mesmo assim conseguimos chegar em São Tomé ainda no meio da tarde.

Fizemos a sessão de fotos em frente às tradicionais casas de pedra, lanchamos no único boteco aberto e quando olhei de relance pro céu vi que a coisa tinha ficado literalmente preta. Nuvens escuras, raios e um vento forte davam toda certeza do mundo que viria uma tempestade típica de verão.

Pior: era justamente em São Tomé que começaria o trecho de trilha de cerca de 90 km até Lavras. Eu tinha feito esse trecho no Enduro da Independência, mas a moto era uma Honda XL 250R, preparada, com pneus bem melhores e eu estava em uma competição, correndo contra o relógio. Na minha memória, a distância entre São Tomé e Lavras era um “tirico de espingarda”, coisa de poucas léguas, seja lá quanto tem uma légua.

No bar alguns poucos moradores e turista aconselharam a pernoitar e só continuar no dia seguinte. O que seria a decisão mais sensata. Só que justamente o que mais faltava a uma equipe de testes naquela época era um mínimo vestígio de sensatez. Entre os que tentavam nos demover da ideia de sair na iminência de uma tempestade estava uma mocinha muito simpática, de olhos verdes e trança no cabelo que ofereceu um quarto no casa dela.

– Vamos ficar – aconselhou o Mário Bock – a gente sai amanhã cedo e nem vai fazer tanta diferença no fim.

Só que tinha mais um componente complicativo: eu estava prestes a ser pai da minha primeira filha (que nasceria em janeiro). E isso deixava tudo mais tenso porque eu tinha de ficar colado a um telefone. E em São Tomé das Letras, no ano santo de 1984, só tinha UM telefone na praça principal. Além disso, de Lavras eu poderia pegar a rodovia e chegar em SP mais fácil e rápido do que saindo de São Tomé.

– Vamos pra Lavras, são só 80 km até lá, se a gente fizer média de 40 km/h chegamos em duas horas – insisti, numa inocência quase pueril.

Infelizmente o Mário concordou. Trocamos a companhia da mocinha dos olhos verdes, um quarto confortável, a segurança de uma noite tranquila por uma aventura que se tornaria uma grande, fedorenta, desesperadora, assustadora e interminável CAGADA!

Abduzido?

Já saímos do boteco vestindo as capas de chuva. Instalei uma prancheta na Agrale, coloquei a planilha – de papel!!! – com o nosso roteiro e assim que chegamos na primeira trilha o céu caiu sobre nossos capacetes!

Pensa numa chuva forte, fria e escura! Era perto de 17:00 horas, se fizéssemos esse trecho em duas horas, como eu havia previsto, chegaríamos em Lavras às 19:00 ainda com luz do dia porque era verão. Mas nos primeiros quilômetros percebi o tamanho da encrenca. Sem experiência em fora-de-estrada o Mário pilotava muito devagar.

Os pneus originais de motos de uso misto são feitos para rodar no piso asfalto/terra, mas sem lama. Em baixa velocidade a lama gruda no pneu, que fica totalmente liso, escorregadio e começam as quedas. Nada grave, só que a cada queda perdíamos muito tempo para levantar, montar na moto, esperar a gasolina da cuba do carburador “desafogar”, dar a partida no pedal várias vezes, até finalmente o motor pegar, engatar a primeira, rodar uns 500 metros e... cair de novo!

O único jeito de a lama não grudar nos pneus era correr. A centrifugação natural retira a lama e os pneus voltam a aderir. Mas o Mário não conseguia correr na lama e fiz uma continha básica para descobrir que nossa média horária era de mais ou menos 10 km/h! E ainda faltavam uns 60 km pra chegar em Lavras.

Fui olhar no mapa para ver se tinha uma forma de cortar caminho e pegar a rodovia. Mas depois de toda aquela chuva e lama o mapa tinha virado uma bola marrom de papier maché.  

Escureceu e chovia muito. A chuva só não era maior do que meu arrependimento. Sem mapa, naquelas motos com faróis tão miseravelmente fracos que pareciam lampiões de carbureto me dei conta do tamanho da burrada, mas não podia fraquejar. Expliquei pro Mário que numa situação dessas tínhamos de fazer que nem os mineiros: seguir o caminho mais batido que termina num bairro, vilarejo, cidade, alguma civilização.

Só que nós somos paulistanos. E foi assim que nos perdemos!

Já passava das 19:00 horas, não tínhamos rodado nem 30 km, sem a menor ideia de onde estávamos, cheios de lama, as motos derrapando tanto que num dado momento minha moto deu um giro de 1800 e fiquei de frente pro Mário! Minha vontade era sentar na beira da estrada e esperar, catatônico, até nascer o sol. Só queria chegar a algum lugar e quando achei que nada podia piorar queimou o farol da Agrale! Lembra lá no começo que comentei que o sistema elétrico das Agrale era um lixo? Pois foi minha primeira experiência com esse problema congênito da marca.

Sem o meu farol tínhamos de andar um do lado do outro pra eu aproveitar o fraco farol da Yamaha. Isso fez a média horária cair ainda mais. A maior preocupação era não cair num dos terríveis mata-burros pela estrada. Para evitar que o gado e os cavalos fujam das propriedades, as estradas eram cortadas por porteiras com diferentes tipos de mata-burro. Normalmente eles são projetados para passar carros e caminhões, não previram que um dia passariam motos a 90 km/h. Os pneus das motos encaixavam no vão do mata-burro e o piloto era arremessado longe, não sem antes quebrar braços e pernas. No Enduro da Independência eu vi muito piloto literalmente quebrado pelo caminho por conta dessas armadilhas.

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ISTO é um mata-burro, se vacilar o piloto se quebra todo. Vi muita gente se arrebentar nessas armadilhas.

No meio de toda essa tensão eu implorava o tempo todo, gritando pro Mário nunca andar no meio da estrada e tomar maior cuidado pra não cair num mata-burro até que tudo ficou escuro e silencioso. O Mário sumiu!

Olhei em volta e... nada! Tirei os óculos e... nada! Ele simplesmente tinha sumido bem do meu lado. E estávamos em São Tomé das Letras, terra de discos voadores, duendes, portais que levam a Macchu Picchu, civilizações escondidas em cavernas e o Mário tinha sumido. Pensei “pronto, o Mário foi abduzido, como vou explicar isso pro Roberto Araújo?”. Desliguei a barulhenta Agrale na esperança de que ele tivesse caído num mata-burro e ouvi um grito:

– Titeeeeeeee volta aqui!!!

O Mário tinha entrado com moto e tudo numa vala cheia de água e adivinhe: o farol da Yamaha pifou!!!

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Preto velho existe

Estávamos, literalmente, numa encruzilhada. Bem num entroncamento de duas estradinhas, em qualquer ponto dos 586.528 km2 do Estado de Minas Gerais, sem luz nem a menor ideia de qual estrada pegar. Foi quando bem longe eu vi uma luz bruxuleante, fraca, típica de lampião e o cheiro típico de lenha queimando. Era uma casinha de taipa, bem simples, no sopé de um morro.

Já com a vista acostumada com a escuridão empurramos as motos até a cerca da casinha e comecei a bater palma. Nada. Mas eu sabia que tinha gente lá dentro porque estava ouvindo vozes. Bom, mas como expliquei, estávamos perto de São Tomé das Letras e ouvir vozes era algo até contumaz naquelas paragens. Bati palma de novo e o Mário sugeriu:

– Tira o capacete!

Ah, mesmo se tratando de São Tomé não deve ser normal alguém bater na sua porta, numa noite de chuva, usando uma bola branca na cabeça, todo coberto de lama e folhas.

Tirei o capacete, bati palmas e a porta se abriu bem devagar. Vimos só a silhueta de um homem. Gritei que estávamos indo pra Lavras e nos perdemos. A porta se abriu mais e o homem veio em nossa direção segurando algo que eu imaginei um rifle, mas era uma bengala. Ele chegou perto e vi que era um senhor bem preto, com cabelos bem brancos, como aqueles quadros de preto velho das casas do interior.

– Boa noite – comecei o discurso – somos de São Paulo, estamos indo pra Lavras, mas escureceu e nos perdemos.

Ele olhou daquele jeito desconfiado que todo mineiro tem desde que nasce.

– Mas vocês estão longe demais – respondeu o velho, já com um ar mais amigável. Entrem, vamos tomar um café que e eu explico – completou.

Entramos. A casa era bem simples, mas toda arrumadinha. Na cozinha, com piso de cimento queimado, estava a mulher dele, idosa também, branca velha, sentada ao lado do fogão a lenha, de onde saía a fumaça que eu farejei como um perdigueiro cego e faminto.

Olhei aquilo tudo, me vi pisando com as botas cheias de lama naquele piso, morri de vergonha, mas aceitamos o café. O rastro de lama atrás da gente. E o preto velho explicou:

– Vocês vão seguir essa estrada pra lá (n.d.r.: mineiro não se entende bem com esse negócio complicado de “esquerda e direita”). Lá no alto você vai ver uma mangueira bem no meio de um capão de mato. Nessa mangueira o senhor vira pra cá.

Enquanto ele explicava eu olhava para as mãos para saber se o “cá” e o “lá” era esquerda ou direita.

Quando terminou a explicação ele perguntou:

– Por que vocês não dormem aqui e vão amanhã? Nessa escuridão, com chuva, vocês vão se perder de novo,

Confesso que fiquei tentado. Olhei pro Mário e ele também parecia gostar da ideia. Mas tinha aquele problema de ficar longe de um telefone, a minha mulher grávida em São Paulo, podendo dar a luz a qualquer momento e no exato instante que pensei em dar a luz o velho disse:

– Se vocês acertarem o caminho vão chegar em Luminárias!

Luz, Luminárias, aquilo só podia ser um sinal.

E era mesmo, porque decidimos seguir em frente e, misteriosamente, o farol da Agrale voltou a funcionar! Perguntei pro Mário:

– E aí, entendeu o caminho?

– Só não entendi a parte da mangueira, é arvore ou daquela de regar jardim?

Agradeci muito ao velho, montamos nas motos, demos a partida e quando me virei pra me despedir, o susto: não tinha ninguém! Olhei de novo e nada. Nem sinal. Ele tinha sumido do nada! A casa estava escura. Me arrepiei todo, engatei a primeira marcha e gritei pro Mário:

– PUTAQUIPARIU, coooooorre daqui!!!

Naquele pavor eu não conseguia identificar mangueira, jaqueira, goiabeira, nem um pé de pau sequer. Seguimos pela estrada mais batida como bons mineiros e depois de algum tempo começamos a avistar luzes de uma cidade. Era Luminárias, a apenas 50 km de São Tomé. Chegamos às 22 horas, totalmente ensopados, enlameados e fomos direto pra primeira placa escrito HOTEL. De lá até Lavras era mais 45 km, mas eu simplesmente cancelei o resto da viagem em troca de um banho quente, jantar, telefone e cama!

Liguei para São Paulo e estava tudo dentro do previsto para o nascimento da minha filha um mês depois. Nunca fui muito bom em contas...

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A chamada de capa já trazia o aviso: teste-emoção!

Na manhã seguinte, mais calmo, encontramos com os enduristas da região que nos levaram para uma sessão de fotos no meio de um lamaçal, de novo!!! Olhei pro Mário, visivelmente de saco na lua e propus:

– Vamos voltar?

– Agora!

Pegamos a Fernão Dias para mais de 350 km de asfalto limpo, delicioso, macio e seco. Quase chegando em Mairiporã fomos premiados com uma luz perfeita, num belíssimo pôr do sol que rendeu a foto da capa.

Até hoje não sei se o preto velho foi uma alucinação depressiva depois de tanto estresse naquelas estradas de terra, se aconteceu mesmo ou se eu simplesmente inventei tudo isso. Só o Mário pode confirmar, ou não. Acho que na hora que me virei não vi nada porque o senhor era mesmo muito preto e nossas motos estavam sem as lanternas traseiras. Quando eu olhava pelo espelho só via escuridão. Mas, sabe-se lá, era São Tomé das Letras, terra de histórias extraordinárias.

Para saber mais sobre a família Stedile clique AQUI.

 

 

publicado por motite às 22:46
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Domingo, 12 de Abril de 2020

A história da Foto: Yamaha XT 600 Ténéré

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Salto alto: eu inventava as loucuras e o Mário Bock clicava!

Ténéré voadora!

No final dos anos 80 a Yamaha surpreendeu com o lançamento de uma das motos mais icônicas do mercado mundial, a XT 600 Ténéré, a bem sucedida rainha dos desertos africanos. Era o sonho de consumo de 9 entre 10 viajantes e praticantes de fora-de-estrada. Imagine a minha ansiedade para pilotar essa moto, na flor dos meus 28 anos, trilheiro juramentado e considerado – na época – um dos mais respeitados jornalistas do setor. 

Nesta época meu relacionamento com a Yamaha era ótimo e os executivos eram amigos fora do mundo profissional também. Nada comparado com hoje em dia que a relação com a marca só piora. 

Mas naqueles tempos as fábricas nos entregavam a moto e a única recomendação era extrair dela o máximo de informação, independentemente do estado que devolvesse. E muitas vezes as motos voltavam um bagaço.

Assim que liberaram a XT 600 Ténéré eu mesmo fui buscar pessoalmente na fábrica da Yamaha em Guarulhos. Ela tinha acabado de ser ativada, zero quilômetro de verdade e tratava-se de uma pré-série. Estas versões "pré-série" na verdade eram exatamente iguais às de produção em série, poderia eventualmente mudar um adesivo, um botão diferente ou outro fornecedor de parafuso. Mas no geral era exatamente igual à de série. 

A fábrica da Yamaha ficava – e ainda fica – na margem da via Dutra e lembro como se fosse ontem a minha emoção ao dar a partida naquele motor de um cilindro, engatar a primeira e entrar na Dutra em direção à capital como se estivesse flutuando a um metro do asfalto. A emoção de pilotar uma moto totalmente nova pela primeira vez e ser o primeiro a montar, antes de chegar às lojas, é inexplicável. É como se cada vez fosse uma lua de mel!

Assim que pousei na redação da revista Duas Rodas foi um furor. Todo mundo na garagem pra ver a maior trail do mercado brasileiro. O mais animado era o fotógrado Mário Bock, o maior apoiador das minhas ideias mais malucas. O Mário foi um dos fotógrafos mais abertos a ideias criativas. Imagine o sufoco que era produzir três a quatro testes pode mês, buscando soluções diferentes para cada uma.

Nosso programa favorito era descer para o litoral norte e produzir as fotos em vários cenários diferentes: estrada, cidade, praia, terra, trilha e voltar pra São Paulo no mesmo dia! Geralmente íamos em duas motos, carregando uma montanha de equipamentos, porque eu tinha de usar macacão de couro na estrada e com roupa de trilha no off-road. Além disso, nessas priscas eras a fotografia era com filme. Nós tínhamos de usar poucos rolos de filme (algo em torno de 100 fotos) para fazer a capa, miolo e, neste caso, o pôster. Não tinha margem pra erro e precisávamos acertar o máximo possível. O resultado só seria conhecido dois dias depois quando os filmes voltavam do laboratório.

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Nesse teste específico fizemos as fotos na cidade e estrada na parte da manhã e fomos em direção à Bertioga pela serra de Mogi das Cuzes, onde fizemos as fotos com o famoso macacão de couro amarelo do Capitão Gemada. 

Na região onde hoje é o balneário de São Lourenço antes era um grande matagal. Neste local foi realizado uma das mais famosas corridas de enduro da história da modalidade, o Enduro das Praias, que participei correndo com uma Yamaha DT 180 praticamente original e mal consegui dar uma volta completa!

Foi quando eu sugeri ao Mário fazer as fotos na mesma trilha e ele topou na hora. Péssima ideia – e quanto pior a ideia, mais o Mário aprovava. Se eu já tinha quase morrido com os bofes de fora em uma leve e tranquila DT 180, imagine uma pesada, alta e novinha XT 600 Ténéré! Mas a vontade de fazer as fotos na praia falou mais alto.

Vesti o uniforme de trilha e foi pura diversão, tomando maior cuidado pra não destruir a moto antes de terminar as fotos. Foi quando vi um morrinho que dava para saltar bem alto. Como expliquei antes, nessa época não dava pra ver "como ficou a foto" no display digital. A gente marcava o terreno exatamente onde eu ia passar, saltar e aterrissar e o Mário fazia o pré-foco para acertar. Mesmo assim o índice de acertos no caso do Mário Bock era altíssimo!

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Essa foto foi o pôster central da revista Duas Rodas.

Terminamos essa sessão, vesti novamente o macacão de couro e planejamos voltar pelo Guarujá. Sempre que terminava a sessão de fotos e sobrava algum rolo de filme era a hora de viajar na maionese. Primeiro a gente garantia o "arroz-feijão", depois pirava em experiências ousadas pra ver se salvava alguma coisa mais doida e foi com essa estratégia que tive outra péssima ideia, imediatamente aceita pelo Mário.

Ao sairmos da balsa de Bertioga lembrei de uma trilha que eu costumava fazer quando era criança. Passava por uma ruína da época da fundação de Bertioga que, num país normal, teria sido preservada, mas estava abandonada e vandalizada. Nunca tinha feito aquela trilha de moto e minha memória me traiu feio.

Sem paciência para tirar o macacão eu decidi vestir uma capa de chuva por cima, falei pro Mário subir na garupa e entramos nessa trilha. Que era bem mais apertada do que eu imaginava – ou eu era bem menor aos 12 anos de idade! Passamos por trechos espremidos entre uma rocha e o abismo que terminava nas ondas do mar quebrando nas pedras. Tudo isso numa moto alta, pesada e com o Mário na garupa. Uma insanidade que eu jamais repetiria na vida!

Como nada é tão ruim que não possa piorar, depois de descer uma trilha bem lisa começou a chover! Estávamos no meio do nada, sem comunicação, com uma moto pesada, numa trilha escorregadia e uma subida cheia de pedras para encarar. Coisa típica da dupla Tite-Mário Bock. Parece que a gente tinha uma capacidade inata de nos meter nos maiores perrengues.

Com uma habilidade que nunca imaginei que tivesse consegui passar ileso por toda a trilha, sem deixar a moto cair e, num trecho de granito, tive de descer e empurrar a Ténéré debaixo do sovaco, com macacão de couro, suando litros. O Mário registrou tudo, mas não usamos as fotos na matéria porque o filme era preto&branco!

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Pense num perrengue: macacão de couro, piso ensaboado, 200 kg de moto debaixo do sovaco!

 

 

publicado por motite às 21:43
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Terça-feira, 7 de Abril de 2020

Capacete, sua vida cabe aqui - Parte I

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Passei boa parte da minha vida dentro de um capacete (Foto: Claudinei Cordiolli)

Proteja sua cabeça, ela tem muita história.

Tente imaginar tudo que já viveu. A infância, o cheiro da comida da vó, o primeiro dia de escola, o vento fresco no campo. O carinho dos pais, família e amigos. Os primeiros machucados, ardidos e eternos. Pense em todo amor e frustração que já viveu. Dos prazeres mais simples aos desafios mais complexos. Uma carreira, o primeiro salário, anos de aprendizado. Imagine o tanto de conhecimento que já acumulou. Toda nossa vida está guardada em nossa mente como um computador com inesgotável capacidade de memória. Agora imagine perder tudo isso em uma fração de segundo. É o que pode acontecer quando se bate a cabeça.

Quem ainda não percebeu que o cérebro é um órgão vital? Sim, ele é tão importante para nos manter vivos e ativos quanto o coração. Daí vem a expressão “morte cerebral”, quando o indivíduo funciona da cabeça pra baixo, mas morre por inatividade cerebral. O coração bate, o fígado funciona, os rins filtram o sangue, mas a pessoa é declarada mortinha da silva. E toda a história de uma vida se vai como um sopro.

Parece óbvio que proteger o cérebro é vital! Mas não é isso que vemos nas ruas, nas casas, no trabalho. Não se dá a devida importância ao capacete como se ele fosse uma prova de fragilidade ou de falta de coragem. Assim, todos os dias, em algum lugar, uma história de vida se vai como um HD formatado. Ah, e não tem backup.

Se existe alguém no mundo capaz de comprovar a eficiência do capacete em diversas situações esse alguém sou eu. Desde a pré-adolescência já tive a oportunidade de bater a cabeça dezenas de vezes. Algumas bem graves e outras bem de leve. Em todas as atividades que pratico – moto, escalada, bicicleta e skate – já tive acidentes que teriam consequências bem graves (talvez fatais) não fosse pelo uso do capacete.

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Até para fazer manutenção em casa eu uso capacete, luvas e óculos. (Foto: Tite)

Sou tão xiita com essa questão que até mesmo para fazer manutenção em casa eu coloco o capacete, luvas e óculos de proteção. Quem me conhece sabe o pavor quase doentio que tenho ao ver pessoas subindo em telhado, em árvores ou em muros sem qualquer proteção. Já perdi um amigo e outro ficou paraplégico em acidentes domésticos tão prosaicos quanto a velha necessidade de regular a antena da TV.

Recentemente o Brasil entrou em choque ao saber da morte do apresentador Gugu Liberato em um acidente doméstico que poderia ter terminado apenas com um susto e luxações.

Em conversa com um diretor do SAMU de São Paulo, descobri que a maioria absoluta dos atendimentos são de acidentes domésticos e não de trânsito. É fácil entender: São Paulo tem 12,5 milhões de habitantes e seis milhões de veículos. Tem muito mais gente dentro de casa do que nos veículos.

Uma história de cabeçadas

Vou contar como era ser motociclista nos anos 70. O capacete não era obrigatório e só se usava muito de vez em quando nas estradas. Usar capacete era quase uma prova de covardia, de falta de macheza. Como eu tive um pai bem rigoroso, ele obrigava o uso do capacete sob ameaça de vender a moto. No começo eu não gostava, mas aos poucos fui acostumando, principalmente por vaidade: sem capacete a pele ficava ensebada, cheia de perebas e o cabelo oleoso e embaraçado (não ria!).

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Minha primeira moto em 1974, sem capacete, como todo mundo. (Foto: arquivo pessoal)

Quando o uso do capacete se tornou lei eu já usava 100% do tempo e pelo menos em uma ocasião ele salvou minha vida: peguei uma emenda de ponte desnivelada que fez a moto capotar de frente e aterrissei de focinho no chão. As marcas no capacete não deixaram dúvidas que eu podia ter formatado meu HD aos 15 anos de idade!

Depois, quando comecei a correr, primeiro de kart e depois de moto, perdi a conta das vezes que o capacete me salvou. No kart eu capotei cinematograficamente na curva mais rápida do kartódromo de Interlagos e lembro da batida seca com o cocuruto no asfalto. Nunca esqueci o barulho da fibra estalando na pancada. Em outra ocasião meu kart travou no final da reta e o piloto que estava atrás subiu nas minhas costas e deixou a marca do chassi no meu capacete!

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Note o kart de trás com as rodas no ar, depois bateria na minha cabeça! (Foto: arquivo pessoal)

Nas competições de moto nem consigo lembrar todos os acidentes, principalmente nas provas fora de estrada. Uma vez passei reto numa curva e meti a cabeça num mourão de cerca a uns 90 km/h destruindo um capacete novinho! O primeiro importado! O saldo do acidente foi um dedão quebrado.

Competição é assim mesmo. Os tombos fazem parte e todo piloto tem uma história de salvação pelo capacete.

Eu tenho uma filosofia: quem corre não racha. Quem pilota em pista não tira racha na rua. É que nem praticante de lutas marciais. Quem luta não briga na rua. A melhor coisa que aconteceu na minha adolescência foi meus pais permitirem correr porque isso evitou que me transformasse num rachador de rua.

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Corri muitos anos de motovelocidade e bati várias vezes a cabeça, mas estou vivo! (foto: Arquivo Pessoal)

Bike também machuca

Porém, por mais que eu acreditasse na importância do capacete ainda tinha muita resistência ao uso na bicicleta. Achava meio um exagero, afinal estava só dando um rolê e a bicicleta é praticamente um brinquedo. Foi só quando conheci o preparador físico José Rubens D´Elia que comecei a usar sob ameaça de violência física. Um dia ele apareceu com um capacete Bell importado, lindo, super bem acabado, jogou no meu colo e ameaçou: “se te pegar andando de bike sem capacete te encho de porrada”. Lembrou meu pai.

Empolgado com o capacete novinho, chique e cheio de charme decidi ser um ciclista politicamente correto e instalar buzina e espelhos retrovisores na bike. No caminho para a loja eu quase atropelei uma mulher com duas sacolas de compra e para desviar caí de cabeça no chão. Literalmente! Bati a testa, o nariz, ralei as mãos, os cotovelos e os mamilos (pense num banho ardido). Quando vi o capacete com a pala destruída e o casco amassado me deu aquela dor aguda na barriga e só imaginei o que teria acontecido se estivesse sem. Comprei outro capacete igual e nunca mais subi numa bike sem capacete.

Pensa que acabou? Nada! No ano 2000 comecei mais uma atividade com muita chance de quebrar o côco: a escalada! Nos primeiros anos eu simplesmente ignorava todas as recomendações de usar capacete, afinal queria um contato com a natureza e o capacete tirava um pouco da liberdade, o que não passava de uma desculpinha esfarrapada. Até que... um escalador acima de mim deslocou uma pedra que passou a centímetros da minha testa.

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Na escalada sofri uma queda e o capacete me salvou, de novo. (Foto: Leandro Montoya)

Comprei um capacete de escalada e passei a usar o tempo todo, mesmo nos trechos de caminhada perto das encostas. Só não dormia de capacete porque era desconfortável.

E veio o acidente. Em um trecho relativamente fácil, a rocha que estava me apoiando se desprendeu e caí uns 12 metros. De costas. A primeira coisa que bateu no platô foi minha mochila, que amorteceu parte da pancada. A segunda foi minha cabeça. Fez aquele estalo de plástico quebrando, meu óculos saíram voando aos pedaços e quebrei um dente. Quando vi a marca da pancada no capacete mais uma vez gelei e, apesar de todo ralado, terminei a escalada e ainda voltei pra casa pilotando a moto. Detalhe: neste dia eu tinha deixado o meu capacete em São Paulo e só não morri porque peguei um emprestado a pretexto de não queimar a careca no sol.

Pensa que acabou?

Em 2018 outra atividade entrou na minha vida. Procurando uma atividade física menos chata que academia, redescobri o skate depois de 46 anos! Só que dessa vez já usei capacete desde o primeiro dia. No começo usava o mesmo da escalada, depois comprei um de snowboard porque achei os capacetes de skate muito frágeis.

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No skate eu uso um capacete de snowboard porque acho mais seguro. (Foto: Kabé Rossi)

Como toda atividade que envolve risco de queda, no começo ninguém se machuca sério. Só depois de acreditar que já sabe tudo é que acontecem os acidentes. Foi assim mesmo: demorei pra sofrer a primeira queda mais forte, mas ela veio e fui catapultado de costas do skate, bati as costas e a cabeça tão forte que até dei uma leve apagada. O relatório de danos revelou um ralado no cóccix, mais um óculos de grau pro lixo e o capacete ralado. Comprei outro.

Duas semanas depois um garoto de 15 anos morreu ao bater violentamente a cabeça descendo a mesma ladeira.

Então o quê?

Por isso eu me desespero vendo as pessoas agirem como se fossem invulneráveis. Vejo ciclistas andando entre os carros, sem nenhuma proteção, desafiando a morte a cada quarteirão. Ou quando vejo os micro modais elétricos se popularizando sem trabalharem a devida importância ao uso do capacete. São patinetes, bikes, monociclos e scooters elétricos que, à falta de uma regulamentação, são conduzidos por pessoas sem nenhuma proteção.

Acredito que vamos assistir ainda muita notícia triste de acidentes com esses micro veículos até que se tenha consciência da importância de usar um equipamento tão simples, barato e eficiente quanto um capacete. Não existe desculpa: um capacete de bike pesa menos de meio quilo e pode ser levado em uma mochila. É o mais versátil e pode ser usado para qualquer um desses modais.

Um teste feito nos EUA mostrou a eficiência do capacete de bicicleta, comparando com outros tipos. Vale a pena ver clicando AQUI.

Só não deixe de usar. Mesmo que seja “só uma voltinha”, mesmo que seja “chato de transportar”, ou que seja “feio e desengonçado”, ou ainda “que estrague o penteado”. Nenhuma desculpa justifica o risco que representa uma batida de cabeça. Volte lá no primeiro parágrafo e reflita: vale a pena perder tudo que você já viveu?

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publicado por motite às 20:31
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Sábado, 4 de Abril de 2020

Capacete, aqui cabe uma vida - Parte II

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Capacete integral de qualidade, sua vida vale esse investimento.

Como escolher o tipo certo

Já não basta ter de escolher a moto que atenda as necessidades, ainda tem de decidir pelos equipamentos, de forma a atender a segurança sem levar o motociclista à falência. Hoje existem dezenas de marcas e centenas de modelos à venda, o que torna tudo ainda mais difícil.

O capacete é o único equipamento de segurança obrigatório por lei. Essa exigência gera controvérsias no mundo todo, sendo que em alguns países o uso nem sequer é obrigatório. Independentemente de legislação, o que determina o uso do capacete é o velho bom senso. Afinal trata-se de uma questão de sobrevivência.

Quando as motos ainda eram novidade no Brasil o capacete nem sequer fazia parte dos equipamentos. Foi só a partir dos anos 1970, quando inauguraram as fábricas brasileiras, que as cidades passaram a conviver com estes veículos em quantidade. Neste começo, a moto ainda tinha um aspecto romântico, ligado à liberdade e rebeldia. Por isso eram raros os motociclistas de capacete, apesar de já termos fabricantes nacionais.

A aceitação do capacete começou sendo uma expressão da identidade. Cada um queria ter um desenho próprio, como os pilotos de corrida. Assim, gastavam-se tubos de tinta em spray e quilos de lixa para ter um capacete exclusivo. Na garupa dessa moda, surgiram os primeiros estúdios de pintura que faziam obras de arte e isso ajudou a convencer da necessidade de usar capacete.

Logo em seguida veio a lei que obrigou o uso e daí pra frente o esquisito passou a ser rodar de moto sem o equipamento na cabeça.

Os tipos

Basicamente existem quatro tipos de capacete: integral, com a proteção fixa no queixo; aberto, sem a proteção na frente do rosto; basculante (também chamado de Robocop), que a proteção do rosto pode ser levantada e off-road, com ou sem viseira, ideal para uso fora-de-estrada.

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Os modelos abertos devem obrigatoriamente ter viseira. (foto: divulgação)

Antes de mais nada vale lembrar uma pesquisa feita por uma associação de motociclistas dos EUA que revelou um dado importante: 35% dos traumas crânio-encefálicos em motociclistas tem origem pelo maxilar. Portanto o capacete aberto, logo de cara, não é um equipamento que oferece 100% de proteção. O curioso é ver que donos de scooters e de motos custom adotam esse tipo de equipamento na ingênua crença que esses tipos de veículos não caem! Costumo argumentar que o asfalto não fica mais macio dependendo do tipo de moto; ele é sempre duro e áspero!

É bom lembrar que para usar um capacete aberto ele precisa obrigatoriamente ter viseira ou óculos específicos de motociclista, que acaba custando quase tão caro quanto o capacete!

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O modelo basculante é versátil para uso na cidade e estrada (Foto: divulgação)

Outro tipo que transmite uma falsa impressão de proteção são os basculantes (ou Robocop). Esse tipo de capacete nasceu para ser usado pela polícia, para funcionar tanto como proteção na moto quanto para proteger em casos de conflitos. Quando começou a ser usado por civis rapidamente se popularizou especialmente entre viajantes. A preocupação com relação a esse tipo de capacete são basicamente duas:

- Eficiência das travas da queixeira: como todo mecanismo que tem travas e molas, depois de um número de operações esses mecanismos podem falhar, tanto por desgaste natural dos materiais, quanto perda de eficiência das molas. No caso de um choque a queixeira pode abrir expondo o rosto.

- Rodar com ele aberto: obviamente que esse mecanismo foi pensado para facilitar algumas operações, mas não para rodar com a frente do capacete levantada. Principalmente acima de 80 km/h porque o vento empurra a cabeça para trás, forçando a musculatura do pescoço e ombros.

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Sem dúvida o modelo integral é o mais seguro. (Foto: divulgação)

Sem dúvida o modelo que oferece mais segurança é o integral, com queixeira fixa. Também é o mais vendido.

Por último, o modelo on-off road, com queixeira fixa, com ou sem viseira. Esse capacete é muito bom para usar na cidade, já que a velocidade é baixa. Porém, na estrada, acima de 120 km/h, a pala provoca muita resistência aerodinâmica, forçando a cabeça para trás.

Foto Capacete_5: Os tipos fora-de-estrada podem ser usados na cidade. (Foto: divulgação)

Materiais

Normalmente os capacetes são feitos de dois materiais: plástico injetado e fibras sintéticas (aramida, carbono ou vidro), que podem ser puras ou composta, (mais de uma fibra misturada).

A calota de plástico tem a vantagem de ser mais em conta pelo uso de material mais barato e pela facilidade de fabricação. Como a calota é feita em injetora a produção é de larga escala e isso reduz muito o custo final. Já os capacetes de calota de fibra tem processo industrial bem mais lento, quase artesanal e, obviamente, isso eleva o custo unitário. Além de materiais mais nobres.

Em termos de proteção, ambas as tecnologias são aprovadas pelas normas brasileiras. A grande diferença está na forma de absorção dos impactos. Por ter camadas sobrepostas, os capacetes de fibra distribuem as ondas de choque de forma mais uniforme, dissipando a energia pelo casco. Já os de plástico concentram a onda de choque no local da batida. Além disso, a calota de fibra não “quica” quando bate no asfalto, enquanto o plástico tem uma resposta elástica maior e pode quicar várias vezes.

Quando se pesquisa preços, pode-se encontrar desde equipamentos de R$ 70,00 até mais de R$ 8.000. Sinceramente, com toda experiência acumulada em quase 50 anos como motociclista, não dá para confiar a sua vida em um capacete de menos de R$ 600,00 (valores de São Paulo). Sei que não é fácil tomar essa decisão, mas se ajuda, pense em quanto custa um dia de internação na UTI.

Prazo de validade

Uma das maiores polêmicas sobre esse tema é sobre o prazo de validade. Que seja bem esclarecido: todo produto têxtil voltado para a segurança tem um prazo de validade. Os chamados EPI – equipamentos de proteção individual – tem o prazo determinado pelo fabricante, independentemente do uso. Até os pneus tem prazo. No entanto, alguns equipamentos tem prazo de validade indeterminado A MENOS QUE tenha sofrido as consequências de um acidente. É o caso, por exemplo, dos cintos de segurança dos carros, que devem ser trocados em caso de colisão.

Já sobre os capacetes essa regra do acidente é válida. Se o capacete sofreu acidente que bateu no asfalto ou em outro veículo, deve ser trocado. Jamais retocado para voltar a utilizar! Mesmo que a estrutura esteja aparentemente intacta, não se sabe se esse casco resistiria a uma segunda pancada no mesmo local. Mas sem exageros! Já vi motociclista querer trocar de capacete só poque deixou cair de uma altura de meio metro. Calma, esse tipo de queda não chega a comprometer a estrutura, mas pode matar um motociclista de raiva.

O período aceitável para aposentadoria de um bom capacete é de cinco anos, mesmo que não tenha sofrido acidentes. Porém, uma revista especializada americana foi mais longe. Pegou um capacete com cinco anos de uso e outro da mesma marca e modelo totalmente novo. Submeteu os dois aos mesmos testes de homologação e descobriu que o capacete usado apresentou rigorosamente os mesmos resultados.

Então por que trocar a cada cinco anos?

Porque fica largo! Tem itens no capacete que se desgastam com o uso e o principal deles é o poliestireno expandido – conhecido popularmente como isopor. Ele é o principal elemento de absorção e dissipação de impacto. Tem uma enorme durabilidade, porém não tem efeito memória: se apertar um pedaço de isopor ele não retorna ao formato original (como faz a espuma) e o ato de vestir e tirar o capacete, aos poucos, causa a compressão do poliestireno, deixando o capacete largo. Capacetes não podem ficar soltos na cabeça, senão o vento pressiona contra o rosto e dificulta a visão.

Algumas empresas substituem essa calota interna de poliestireno, assim como a forração, deixando o capacete praticamente novo. Não é uma solução totalmente reprovada, mas se fizer a conta de quanto é o investimento em um bom capacete, diluído pelo período de cinco anos, percebe-se que não chega a ser um custo tão alto assim por algo que salva nossas vidas.

E o que fazer com o capacete usado? Por mais que doa no coração, deve ser destruído. Isso mesmo. Ou, se for do tipo que se apega a bens materiais, guardá-lo como recordação. Jamais descartado no lixo – mesmo reciclável – porque ele vai aparecer em alguma cabeça.

Cuidados

O capacete é um item pessoal, que nem cueca! Não se empresta capacetes e cada um deve ter o seu. Por ser uma peça íntima, a higiene é uma preocupação e o cuidado é muito simples. Sempre que possível deixe o capacete virado com o interior para o sol. Também pode-se aspergir desinfetante em spray e sempre guardar o capacete com a viseira aberta para arejar.

Para limpeza do casco deve-se usar apenas com esponja, água e sabão. Pode ser polido com cera, mas cuidado com a viseira! Ela só deve ser lavada com água e sabão neutro, sem uso de álcool ou solventes. Para não acumular água de chuva pode-se polir com lustra móveis e algodão.

O maior inimigo do capacete são as bactérias. Uma reportagem do jornalista Celso Miranda fez uma revelação assustadora: ele levou um capacete de motofretista para análise em laboratório e descobriram que tinha mais bactéria do que uma latrina! Ecah!

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Guarde o capacete com a abertura para cima para evitar a proliferação de bactérias. (Foto: divulgação)

Nossa sugestão é realmente aposentar os capacetes com mais de cinco anos por questões de segurança e higiene. Ah e um recado aos românticos: nada de comprar um capacete de 70 reais para quem vai na garupa! Lembre: o asfalto é o mesmo para piloto e passageiro!

Por fim, não basta vestir o capacete, é preciso afivelar! Um capacete desafivelado tem a mesma função protetiva de um chapéu de palha. Em muitos acidentes que causaram o trauma crânio encefálico o motociclista estava usando capacete no momento do choque, porém o capacete saiu da cabeça e ao chegar ao solo o motociclista estava desprotegido. O mais difícil é vestir o capacete; faça o mais simples que é fechar a fivela. Importante: não pode haver folga entre a cinta jugular e a pele do pescoço. Para uma real proteção a cinta deve encostar na pele. Sim, num dia quente essa cinta irrita, mas não tem nada que irrita mais do que um dia de UTI.

publicado por motite às 23:00
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Sexta-feira, 3 de Abril de 2020

Customização e segurança.

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Customização pode ser uma obra de arte! (Foto: Wel Calandria)

Como fica a segurança da moto depois de alterações mecânicas e estéticas.

A moda é curiosa. Parece que as tendências vão e voltam como ondas. O tempo passa, os gostos mudam e pá! de repente o que era antigo volta a ser moderno. Hoje estamos presenciando uma onda de customizações de motos, especialmente na tendência caféracer e seus derivados. A ideia é parecer as motos dos anos 50/60, quando alguns conceitos de segurança ainda engatinhavam ou simplesmente nem existiam.

Costumo brincar com meus alunos ao explicar que um engenheiro teve de estudar seis anos, fez cálculo 1, 2, 3 etc. Passou um ano desenvolvendo e defendendo um TCC, conseguiu estágio, estudou, aprendeu, se atualizou, desenvolveu até criar uma moto em seus mais complexos itens. Aí vem uma pessoa de Humanas e muda tudo!

Claro que isso tem consequências. A moto é um veículo de equilíbrio muito delicado. Ela se apoia apenas em dois pontos, tem uma divisão de massa muito bem calculada e pensada. A simples mudança de um guidão mexe com todo esse equilíbrio. Ah, então não vamos mais mexer nas motos? Sim, vamos, mas com conhecimento e bom senso, artigos raros hoje em dia.

Vou dividir por partes para facilitar:

Pneus – Vou começar por aqui porque é o item que mais exige consciência e que mais compromete a segurança. Tenho visto todo tipo de aberração em motos customizadas. A maior delas é usar pneus on-off road em motos de uso urbano, especialmente nas dos estilos Brat e Bobber. O pneu de uso misto pode ser aplicado nas motos urbanas sem problema, mas tem critérios e limites. Por exemplo, nas motos pequenas com aro 18 polegadas é fácil encontrar um par de pneus de uso misto1. Mas nas motos maiores é quase impossível achar o dianteiro, porque geralmente as motos de uso misto tem aros de 19 ou 21 polegadas de diâmetro.

screen-4.jpg

Como frear uma moto de 900cc no asfalto com esse pneu???

Aí a criatividade e capacidade de improviso falam mais alto e o customizador instala um pneu traseiro na roda dianteira, a maior de todas as aberrações em se tratando de motocicletas. Imagine uma moto de 900cc, 48 CV, 230 kg, capaz de chegar a 180 km/h tentando frear apoiada em dois pneus TRASEIROS de uso misto!

Mesmo que seja difícil de acreditar, moto não é um carro de duas rodas! O que funciona em carro não dá certo em moto e vice-versa. Geralmente os quatro pneus dos carros são iguais. Mas nas motos os pneus dianteiro e traseiro são bem diferentes e tem de ser assim! O pneu dianteiro responde por boa parte da frenagem e pela inclinação no início das curvas. O pneu traseiro é responsável pela tração e por apoiar a moto nas saídas de curvas. Eles nasceram e serão sempre diferentes, cada um com sua função.

Não é só isso. Os pneus de uso misto tem gomos mais espaçados, mais altos e mais macios, porque previu o uso tanto na terra quanto no asfalto. Em uma moto de uso essencialmente on road estes gomos causarão muito ruído, aumento no consumo, perda da aderência em curvas e – pior de tudo – não responderão com segurança numa frenagem mais forte. Além de muitas outras consequências.

Com relação à caféracer hoje já encontramos pneus atuais feitos nos moldes mais clássicos. Mais uma vez, para ser fiel ao estilo, tem customizadores buscando pneus que se assemelhem aos dos anos 50/60. Inclusive com faixa branca2. Mas é importante frisar que nos anos 50/60 as motos não inclinavam tanto, os freios eram menos potentes e as velocidades mais baixas. Usar um pneu de desenho e formato clássicos em motos atuais terá de respeitar essas características. O piloto não poderá inclinar demais, nem frear forte.

O que é diferente no caso de restaurações! Por exemplo, motos das décadas de 60 e 70 podem rodar com pneus clássicos, porque elas foram feitas para isso. O que não combina definitivamente é uma restauração clássica com rodas mais largas e pneus esportivos de hoje em dia! Isso tem outro nome: Frankenstein. Para as motos estilo clássico também existem pneus que atendem essa necessidade de visual clássico sem comprometer a estabilidade e a segurança3.

A maior temeridade que surgiu nessa onda de customização é o uso de pneus de carro em moto! Para dar a aparência mais clássica alguns artistas apelaram para qualquer coisa que se assemelhe a um pneu antigo. Às vezes é preciso trocar a roda por uma menor para poder receber os pneus de carro. Só não quero ver como vai ficar na curva, porque carros não inclinam!

1- Para motos pequenas a Pirelli tem um pneu de uso misto que atende com segurança que é o Citycross.

2- Para motos clássicas a Metzeler tem uma opção com faixa branca, o ME 888 Marathon Whitewall

3- Para motos maiores aro 18” existe a opção do Phantom Sportscomp

- Guidão – Confesso que na minha infância motociclística troquei muito guidão de moto. O mais comum nos anos 70 era o tipo “morceguinho” que podia instalar nos suportes originais. Depois veio a moda dos Tomaselli, que na verdade são dois semi-guidões colocados diretamente na bengala da suspensão.

guidaotomaselli.jpg

Guidão Tomaselli colocado direto na bengala.

            Mudar só o guidão – alto ou baixo – mexe com o equilíbrio da moto porque muda a posição de pilotagem e o piloto vai transferir mais massa para o eixo dianteiro (guidão baixo) ou no traseiro (guidão alto). O ideal seria mudar também a posição das pedaleiras, mas nem sempre isso é fácil ou possível.

Nos dois casos será preciso trocar também os cabos e mangueiras de freio, embreagem e acelerador, além do chicote elétrico. Para guidão mais baixo apenas pela estética, porque os cabos ficarão bem maiores, fazendo uma curva maluca bem na cara do piloto. No guidão mais alto porque os cabos podem ficar esticados a ponto de quebrar. Pior: o cabo do acelerador “estica” quando vira pra esquerda e acelera a moto sozinho.

O guidão baixo exige uma atenção especial ao tanque de gasolina. Lembro de uma vez que passei horas trocando o guidão de uma moto por um par de Tomaselli para descobrir que ele batia no tanque! Pense numa raiva! A solução foi mexer no batente do guidão, mas ela aumentou muito o ângulo de esterço e ficou horrível de manobrar. Por isso é preciso medir e checar tudo cuidadosamente antes de ver aquele mundo de peças pelo chão.

Outra consequência do guidão baixo é o agravamento da carga na suspensão dianteira. Com o tronco mais pra frente o piloto força a suspensão pra baixo – especialmente nas frenagens – e tira um pouco da maneabilidade da moto. Para compensar isso pode-se adotar duas opções: aprender a segurar o peso do corpo pela pélvis (haja saco!) ou colocar banco e pedaleiras bem para trás. Mais barato aprender a usar as pernas para se segurar!

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Guidão alto dificulta as manobras e as frenagens. 

Uma das modificações mais esquisitas é o uso de guidão bem alto, tipo easy rider, ou o famoso “seca sovaco”. Só para esclarecer que esse tipo de guidão surgiu nos EUA nos anos 50/60 quando do nascimento das gangs de motoqueiros. Como os caras eram casca grossa de verdade, as brigas entre eles terminavam em carnificina. Uma das táticas usadas pelas gangs era amarrar um fio de arame entre dois postes, atravessando a largura da rua, para degolar os rivais. Técnica que nosso Lampião já usava aqui no nordeste 30 anos antes. Para não ter a cabeça arrancada do pescoço esses motoqueiros americanos criaram esse guidão alto, assim o arame pegava no guidão antes da degola.

Claro que virou moda e estilo de vida! Tecnicamente mexe bastante com o equilíbrio da moto porque concentra mais massa no eixo traseiro. É inevitável a troca de todos os cabos e mangueiras. Mas o pior desse guidão alto é que dificulta muito a frenagem, tanto pela mudança da posição do punho em relação à manete de freio, quando pela falta de apoio no momento da frenagem.

Outro dado sobre o guidão tem a ver com o princípio elementar da alavanca. Guidão ou semi guidões são nada mais do que alavancas e quanto maior menor a força para mover e vice-versa. Deve-se levar em conta que a moto pode ficar mais ou menos maneável, de acordo com a largura total do guidão.

Isso não quer dizer que é para manter o guidão original, mas antes de fazer alguma mudança muito radical analise como pretende usar a moto e o quanto isso mexe com o conforto e maneabilidade. 

Escapamento – É um dos primeiros itens a ser modificado. O que pouca gente sabe é que ele faz parte do motor e se for feito sem critério pode afetar – para pior – parâmetros de consumo e desempenho. Um dos maiores mitos entre motociclistas é atribuir o escape “aberto” ao aumento de desempenho. Mas não é bem assim. O som mais alto e grosso induz o cérebro a acreditar que está correndo mais.

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Até os escapamentos esportivos tem silenciador!

Para conseguir desempenho o escapamento tem uma série de parâmetros como curva e diâmetro dos tubos, comprimento e velocidade de vazão que tem influência direta no “caminho” que os gases fazem. Além disso, hoje em dia existe a preocupação com emissões de gases e ruído e o escapamento é o item que contribuiu bastante para reduzir a emissão de poluentes.

Os primeiros catalisadores ficavam dentro do escapamento, ocupando quase todo o tubo. Hoje em dia, já pensando na customização, a maioria das motos tem o silenciador e o conversor catalítico – bem menor – colocados antes da ponteira. Assim pode-se trocar apenas as ponteiras sem aumentar os níveis de emissões. Mas ainda tem o nível de ruído, por isso é preciso que a ponteira nova tenha o silenciador. O ronco fica mais grosso, encorpado, sem estourar os tímpanos de quem pilota ou está perto.

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Em algumas motos o catalisador e o silenciador ficam antes da ponteira.

Filtro de ar – Nem sempre a customização piora a moto. Hoje o mercado oferece várias opções de filtros de ar menos restritivos que melhoram o desempenho sem comprometer o consumo nem a durabilidade do motor. No entanto o que vemos nas customizações em geral é a pura e simples retirada do filtro de ar!

O filtro de ar não está ali só por enfeite ou firula, ele tem uma importante função de eliminar ao máximo as impurezas que chegam no sistema de admissão de combustível. Funciona como os pelos do seu nariz. Mas não é só isso. Também ajuda a reduzir as emissões de poluentes e de ruído. Na busca por equiparar as motos modernas com as clássicas, sobretudo as caféraces, tem gente simplesmente retirando o filtro e usando uma “corneta” de admissão. Isso funciona em corrida de motovelocidade porque é um ambiente limpo e o motor passa por revisões constantemente. Mas no dia a dia a pura e simples retirada do filtro condena o motor a um desgaste prematuro, além de aumentar o ruído e a poluição.

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Note o filtro de ar de elemento seco: solução que salva o motor, mas aumenta a emissão de gases.

Não precisa – e nem deve – retirar o filtro por uma questão estética. Até existem no mercado filtros de elemento seco que simulam as antigas “cornetas”. Mas uma das funções do filtro e da caixa de filtro de ar é receber os vapores do motor (óleo e gasolina), que são reabsorvidos pelo filtro de ar e não chegam na atmosfera, reduzindo a poluição.

Hoje em dia as pessoas gostam de fazer discursos socialmente corretos nas mídias sociais, mas no dia a dia não praticam o que defendem. Lutar por um mundo melhor inclui reduzir emissões de ruídos e poluentes e uma moda não pode destruir o seu meio ambiente. Cidade também é meio ambiente.

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Imagina pilotar essa clássica Honda CB 350 num dia de chuva!

Eliminação dos para-lamas – Parece piada, mas os para-lamas não são acessórios, eles tem função importante inclusive para a segurança. Um pneu quente, girando em alta velocidade, arremessa vários objetos que podem tanto atingir partes do motor da moto, como o radiador (que chega a furar), quanto o motociclista que está pilotando, assim como em quem vem atrás. Imagine uma pedra ou um pedaço de metal sendo jogado para trás ou para acima a uma velocidade absurda!
E nos dias de chuva o para-lama funciona como uma proteção. Sem o para-lama dianteiro a água do asfalto (com óleo e seujeira) atingem tanto o piloto quanto quem está atrás. Isso tira muito da visibilidade!

Não acabou! Uma das funções secundárias do para-lama dianteiro é atuar como barra estabilizadora. Sua simples retirada mexe com a estrutura da moto que pode ficar instável em algumas condições e velocidades. Mexer nessa peça sem critério é sinal de perigo!

Luzes – É importante ressaltar que as luzes das motos não são feitas apenas para ver, mas também para ser visto. Uma das tendências mais adotadas é pintar a lente do farol de amarelo e instalar protetores. Pode ficar realmente super clássico, mas como fica a visibilidade? A capacidade de iluminação cai mais de 30% só com a tinta amarela. Se ainda inserir elementos que reduzem o facho de luz isso vai piorar muito mais.

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Exemplos de lanternas com visual antigo mas luzes por LEDs.

Hoje já existe iluminação por LEDs que projeta uma luz mais intensa sem causar ofuscamento. Mexer no farol apenas por estética é um tiro no pé, a menos que limite o uso apenas durante o dia!

Outras mudanças que afetam diretamente a segurança é substituir a lanterna traseira original por pequenas lanternas estilo antigo. E remover todos os reflexivos (olhos de gato). Esses componentes são criados para que a moto SEJA VISTA pelos outros veículos. Como já foi explicado, pode até reduzir o tamanho, mas mantendo os padrões de segurança. A luz de LED consegue um bom resultado, mesmo com tamanho menor em relação à luz incandescente. E, por favor, não remova as setas!

Em suma, a customização é uma atividade que beira a arte da manufatura. Mas sempre tem de levar em conta critérios de segurança e proteção ao meio ambiente. O Brasil tem um mercado grande de motos usadas, clássicas, que ganham uma nova vida com a customização, só não pode deixar que isso comprometa a vida de quem pilota! Aliás, deixei essa informação pro final: toda mudança no moto, mesmo acessório, deve ser comunicada ao departamento de trânsito e passar por vistoria. Quem faz isso? Nunca vi! Sei que a maioria dessas motos serão usadas como peças de coleção e raramente vão às ruas. Mas saiba que pode ter sua peça de coleção guardada pra sempre no pátio do Detran!

publicado por motite às 16:53
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