Quarta-feira, 27 de Fevereiro de 2013

O lobo, a galinha e o escorpião

(As galinhas pira!)

Era uma manhã bem agradável de primavera e decidi ajudar meu grande amigo Daniel Rosa a preparar uma nova área de escalada em Socorro, cerca de 140 km de São Paulo. Tínhamos de roçar o mato e abrir uma trilha que permitisse o acesso às vias. O capim gordura é nojento, porque deixa a gente todo melecado como se tivesse mesmo saído de um pote de manteiga.

Sempre que trabalho na roça vou preparado para qualquer situação de emergência, com rádio, botinas, luvas, óculos, muita água etc. Quando percebi uma laca solta na parede de granito decidi arrancar porque é mais seguro e no lugar fica uma agarra perfeita para escalar. Assim que tirei observei uns bichinhos amarelinhos que nem barata, mas sem meu óculos de aproximação chamei o Daniel que olhou de longe e fez apenas um comentário bem relaxado: "ah, são escorpiões!".

Putz, achei o máximo! Nunca tinha visto um escorpião antes e tinha encontrado logo seis de uma vez. Afastei os cinco e decidi levar um comigo pra mostrar pra minha filha bióloga. Esvaziei o pote de magnésio, coloquei o escorpião dentro, joguei dentro da mochila e continuei carpindo e limpando a via com a maior calma do mundo.

À noite voltei pra São Paulo de moto, com o escorpião na mochila, no meio de toda a tralha de escalada. Era uma agradável e estrelada noite de sábado!

Assim que cheguei em casa peguei uma caixa de madeira, enchi de terra, coloquei uns pedaços de telha, soltei o escorpião lá dentro e fui chamar minha filha. Ficamos observando o cara por um tempão, vendo se ele conseguia fugir da caixa. Sim, conseguia escalar fácil a parede de madeira e eu usava uma velha pinça cirúrgica para colocá-lo de volta. Passamos o domingo brincando com ele e tive de esperar até segunda-feira pra levar ao Butantan e descobrir mais informações sobre meu novo pet.

Já estava tão íntimo dele que coloquei de volta no pote, joguei na mochila e toquei pro Butantan, de moto, como sempre. Assim que cheguei na ala dos peçonhentos de casca falei pro estagiário:

- Achei um escorpião na área que costumo escalar e queria saber se ele é venenoso.

Coloquei o pote em cima de um balcão. O jovem examinou e sem olhar pra minha cara explicou:

- É um Tityus serrulatus, conhecido como escorpião amarelo.

- Que simpático, pensei, Tityus e Tite, podemos formar uma dupla sertaneja!

Mas o biólogo interrompeu meu devaneio:

- É o mais venenoso que existe!   

Dei um passo pra trás do balcão e perguntei:

- Como assim o mais venenoso que existe? Você quer dizer o mais venenoso que existe em cima deste balcão? O mais venenoso que existe na minha mochila? O mais venenoso que existe nesta sala?

- Não, ele é o mais venenoso que existe no mundo! Quanto menores as pinças mais venenosos eles são!

- No mundo todo? Até na África? Na China? Nos Estados Unidos???

- Sim, mais venenoso que existe no sistema solar!

Deu vontade de sair pulando, comemorando essa conquista nacional, afinal tínhamos o escorpião mais venenoso do mundo bem diante de mim e saído de dentro da minha mochila! Se eu soubesse que era uma celebridade no mundo da peçonha teria reverenciado mais o campeão.

O jovem deu uma aula de escorpião, inclusive a cada vez que reforçava o grau de toxicidade do veneno eu lembrava de quanto tempo fiquei cutucando o bicho sem luva nem nada. Segundo ele não havia inseticida que desse conta de acabar com o escorpião, que é um dos animais* mais antigos do planeta, da época dos dinossauros, e que se alimenta de baratas. Mas tinha um predador que era muito mais eficiente que qualquer inseticida: galinha! O escorpião está para a galinha assim como a lagosta está para nós. Bastava encher a casa de galinha e nunca mais se preocupar.

Bom, se debaixo de uma laca eu tinha achado seis escorpiões - e deixado cinco vivos e livres - dava para imaginar que aquele lugar estava infestado. Achei melhor tomar uma atitude e voltei na semana seguinte munido de uma gaiola.

Passei na casa rural e comprei duas galinhas lindas, branquinhas, dessas de granja. O homem achou que eu iria comer as galinhas (no sentido digestivo) e escolheu duas bem saradas. Soquei na gaiola, amarrei na moto e subimos a estrada de terra largando pena pra todo lado.

Segundo o biólogo, a galinha tinha uma tática pra comer escorpião. Ela pegava pelo rabo, perto do ferrão. Chacoalhava até arrancar o ferrão, cuspia e depois mandava o lagostim pro bucho. Quis ver isso de perto, claro!

Fui á caça de um Tityus Serrulatus, mas desta vez de luva, casaco de couro, bota, pinça e um SBP por garantia. Foi só puxar mais uma laca e lá estavam eles, enroladinhos, dormindo como anjinhos peçonhentos. Peguei o mais gorducho e voltei para testar as galinhas.

Pena que não foi filmado, porque seria um desafio aos olhos humanos. Joguei o escorpião bem no meio das duas. Antes de tocar no chão já tinha sumido! Fiquei olhando estupefato, achando que o escorpião tinha caído na barra da minha calça, que estava dentro da minha bota, sei lá, mas a verdade é que a galinha foi tão rápida que eu tive a impressão clara de que o escorpião tinha simplesmente evaporado.

Pronto! Galinha neles!

Voltei para São Paulo feliz da vida por ter encontrado uma solução ecologicamente correta para acabar com os escorpiões. Passei a semana morrendo de curiosidade e não via a hora de voltar e avaliar o resultado de tão inegável contribuição para o equilíbrio da natureza. Já me imaginei dando palestras, recebendo prêmios da SOS Mata Escorpião, sendo entrevistado no Jô Soares e mais famoso que ex-BBB.

Mal o dia raiou no sábado, montei na moto e fui conferir o extermínio dos escorpiões em todo município. Estranhei o silêncio ao chegar na casa do caseiro, porque galinha é um bicho barulhento e saltitante. Fui falar com o caseiro e descobri, estarrecido que elas tinham sumido!

- Já sei, os escorpiões se uniram e deram fim delas?

- Não, foi o lobo!

- Ah, tá e a que horas chega a Chapeuzinho Vermelho?

- Verdade, seu Tite, o lobo comeu das duas galinhas na mesma noite que elas chegaram! Elas eram muito bobas... Ah e eu achei isso pro senhor!

E me entregou um pote de vidro com dois escorpiões dentro.

- Estavam dentro de casa...

Agora a natureza tinha me colocado em uma verdadeira cilada. Escorpião come barata, mas é comido por galinhas que foram devoradas pelo lobo. Cadê esse desgraçado???

Desencantado com a crueldade da mãe natureza, voltei pro trabalho de roçar e carpir, pensando em como dar cabo do lobo, sem ser preso, nem deixar vestígios. Descendo pela trilha, encostada em uma região de mata nativa preservada era comum a gente deparar com macaco bugio, veados, araras, mas lobo eu nunca tinha visto, apesar de saber de várias histórias, inclusive de matança por parte dos granjeiros vizinhos.

Eu jamais mataria qualquer animal, mal consigo matar um escorpião por pura questão filosófica: só os predadores podem matar, a gente, no máximo, pode comer!

No meio desse devaneio senti um cheiro forte de amônia, misturado com cachorro molhado. Vi de longe um cachorro enorme, mas grande mesmo, certamente o maior que tinha visto na vida e já preparei a enxada pra me defender. Mas aos poucos fui focando a visão e percebi que era muito grande e fedorento pra ser um cachorro, tinha um focinho curto e as patas longas e finas demais. Ele estava imóvel me olhando. Eu estava imóvel me borrando. Por uma fração de segundo nenhum dos dois se mexeu e alguma coisa na minha carga genética dizia para eu desaparecer dali, me volatizar, me teletransportar pro colo da minha mãe.

Quando o caseiro se aproximou o animal desceu a trilha e sumiu na mata, lentamente como se estivesse em casa. Perguntei pra ele:

- Você viu aquele cachorro??? Era muito grande!

 O caseiro riu e falou com a maior naturalidade do mundo:

 - Hahaha, cachorro nada, era o lobo! o mesmo que comeu as galinhas!

 Na minha imagem de conto de fadas, lobos eram um pouco maior que um cocker spaniel, com um focinho longo, pelos longos e alaranjados, patas curtas etc etc... Foi então que descobri que passei a vida inteira confundindo lobo com raposa!

Pensei quão raro era encontrar um lobo guará assim tão perto e neste momento me achei um cara de sorte. O caseiro contou que eles se acostumaram com as pessoas e rondavam as casas atrás das galinhas comedoras de escorpiões e que isso estava provocando o fim deles, porque os sitiantes caçavam com muita facilidade. Bateu uma tristeza profunda porque eu vi nos olhos do lobo séculos de solidão.

 - Pô, os caras matam um lobo por causa de meia dúzia de galinhas?

 - É, matam e mandam a gente matar!

Naquela noite voltei pra casa mais triste, porque sabia que aquele lobo não duraria muito tempo. Com a cabeça enfiada no capacete, pilotando a moto no modo automático senti vergonha de ser gente e fazer parte da espécie mais predadora do planeta.

Na moeda corrente da espécie humana a vida de um lobo vale menos que uma galinha.

* Atendendo a pedidos: escorpião não é um inseto, é um artrópode! 

 

 

 

publicado por motite às 13:31
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