Lugar de correr é na pista, não importa o tamanho da sua moto e sim o tamanho da sua responsabilidade
A segurança na pista
Sempre que entro neste tema surgem as manifestações de revolta. Como se a existência de motos e carros de alto desempenho só se justificassem se seus donos atingissem os limites. A receita para a cura desta febre da velocidade é mais fácil do que se supõe. Hoje em vários autódromos brasileiros são organizados track-days tanto para motos quanto carros. Não é caro, como se alega, mas mesmo que fosse, qualquer atividade de alto desempenho só pode ser cara. Não existe mágica nisso. Velocidade barata só se descer a ladeira de bicicleta sem freio!
Por valores que variam de R$ 180 a R$ 500 um motociclista pode levar sua esportiva para um autódromo, devidamente equipado, cercado por uma equipe de profissionais, médicos e para-médicos e desfrutar de mais de uma hora de treino em alta velocidade. Nenhum ser humano, por mais condicionado que seja, é capaz de manter-se concentrado em uma pista no limite por mais de uma hora sem parar. Motos esportivas são cansativas, sem contar o desgaste mecânico e dos pneus.
O passo seguinte é se inscrever em uma das várias categorias amadoras e competir. Fico feliz quando vejo ex-alunos meus competindo de moto. Sei que é um a menos correndo nas estradas. Muitos inclusive optam por usar a moto esportiva apenas na pista e adotam um pequeno scooter como veículo de uso urbano. Gigantesca prova de sensatez.
Uma curva a 120 km/h na pista é muito mais emocionante do que uma reta a 300 km/h na estrada.
Mais uma vez discordo sobre o custo deste “lazer”. Não há, no mundo motorizado, uma competição “barata”. E gasta-se infinitamente menos competindo do que em uma semana de internação na UTI particular. Correr de moto na pista não é caro, perto do valor da vida e da integridade física. Quase todo ano recebo propostas para voltar a correr, mas respondo da mesma forma: depois de passar 22 anos desafiando os limites sem nenhuma seqüela me considero no enorme lucro, não quero jogar isso fora para satisfazer um desejo adormecido há mais de 10 anos.
Meu principal conselho para quem gosta de velocidade é: corra, mas na pista. Até cerca de 10 anos atrás os pilotos de motos eram predominantemente jovens, aventureiros, que depositavam todas as economias em motos de corrida. Hoje eu vejo vários homens beirando os 40 e até 50 anos, profissionais bem qualificados, com ótimo saldo financeiro e que fazem das corridas uma forma de desafiar os limites com segurança e responsabilidade.
Pode parecer loucura recomendar as pessoas que corram nas pistas, mas é infinitamente mais seguro do que na estrada. Em autódromos as velocidades raramente chegam ao limite da moto, mas quando chegam permanecem poucos segundos, porque logo vem uma curva. Já na estrada o motociclista pode travar o acelerador a 300 km/h e permanecer pelo tempo que quiser. Os equipamentos de segurança evoluíram muito, mas seria ingenuidade acreditar que o capacete, por melhor e mais caro que seja, resista a uma batida (note que escrevi BATIDA) a mais de 250 km/h. Bater contra outro veículo ou objeto nesta velocidade provoca uma desaceleração tão brutal que o capacete só servirá para evitar que a massa encefálica se espalhe pelo asfalto.
Além disso, depois que alguém experimenta a emoção de competir em uma prova oficial, ou dê apenas algumas voltas no autódromo, nunca mais conseguirá correr na estrada, pois perde a graça. Não dá barato acelerar a 300 km/h numa reta depois de experimentar o que significa fazer uma curva a 180 km/h. Por mais contraditório que pareça, correr em autódromo é o melhor remédio para a doença da velocidade.
Voltando ao universo da escalada, acho interessante que todo equipamento destinado para esta atividade vem acompanhado de uma advertência sobre a possibilidade de risco, acidente grave e até a morte. Inclusive nas revistas e nos comerciais esta advertência aparece claramente. De um simples mosquetão, passando por cordas, capacetes, todo equipamento tem um manual e a primeira mensagem que se lê é a possibilidade de morrer durante a atividade. Acho curioso que mensagens deste tipo passem longe dos equipamentos e motos de uso esportivo – embora apareça em quadriciclos fora-de-estrada.
É importante informar aos praticantes que competições motorizadas são realizadas sob constante risco de perder a vida. Por isso defendo que caso o piloto venha a ter um acidente fatal dentro de uma pista não há de se buscar culpados, porque ao sair do box e entrar na pista ele assumiu o risco. A exemplo de todas as outras obsessões, a velocidade, mesmo com todos os controles e precauções, também pode matar.
Motorista "profissional" estaciona o caminhão em local proibido: contra este tipo de cidadão não adianta multar, precisa mandar de volta pra escola!
Um desafio: reduzir 50% em 10 anos*
Tentar achar um responsável pela carnificina que ocorre todos os dias no trânsito é fácil. Todo mundo tem sempre um culpado na ponta da língua: é o Estado, as vias mal conservadas, idade avançada da frota, falta de preparo dos instrutores, corrupção na emissão de carteiras de motoristas etc etc...
Só que desde março deste ano acabou o prazo para encontrar culpados. A meta, agora, é encontrar soluções. E não se trata de uma decisão aqui, interna. A ordem veio de cima. Bem de cima. Lá na ONU – Organização das Nações Unidas – por meio da OMS – Organização Mundial da Saúde. Em março de 2011 foi lançada a campanha em caráter mundial pela redução em 50% nas vítimas fatais de trânsito em todo o mundo na década que se encerra em 2020. Contra essa estatística pesa uma outra ainda maior: o crescimento das economias emergentes colocarão mais veículos motorizados nas ruas. Como equacionar com sucesso o aumento no número de veículos com a redução de acidentes?
Os números são assustadores: hoje 3.500 pessoas morrem por dia no trânsito em todo o mundo. Uma tragédia. Não precisa ser muito genial para saber que quanto menos desenvolvido o país, maior o número de acidentes. Então já se tem aí um dado para começar: instrução reduz o número de vítimas. Ou, se preferir uma visão mais otimista, quanto mais educada é uma sociedade, melhores são os motoristas (e entenda-se por “motorista” todo condutor de veículo motorizado, incluindo motociclistas).
Com base nessa aparente óbvia constatação veio a mais elementar das conclusões: para reduzir o número de acidentes é vital melhorar a qualidade dos motoristas, seja por meio de melhores instrutores, seja na educação de base. Em suma, toda a sociedade terá de se empenhar para melhorar os motoristas não apenas na formação técnica, mas como cidadão! Aqui começa o maior e mais importante trabalho dessa ação.
E aí a OMS bateu na velha e conhecida tecla da EDUCAÇÃO. Não apenas na educação formal, mas na educação cidadã. A ONU está de olho não mais neste motorista que já está nas ruas, mas naqueles que serão formados nos próximos 10 anos. O motorista que completar 18 anos em 2020, hoje está com oito anos. É neste pequeno ser que estão projetadas as esperanças pela redução nas vítimas de trânsito.
Finalmente está sendo colocada em prática no mundo uma iniciativa que visa ir além das convencionais endurecidas nas leis de trânsito. O objetivo agora é melhorar a qualidade do ser humano. Formar pessoas melhores para que possam melhorar o mundo todo.
E no Brasil?
Aqui o desafio não é educar futuros motoristas, ciclistas e pedestres. O grande desafio da administração pública brasileira é simplesmente educar! Quando se fala em investimento na educação é sempre a mesma cantilena de falta de verba, de salários humilhantes aos professores e das dificuldades de um país de dimensão continental. Mas se a idéia é organizar um evento mundial de futebol ou atletismo milagrosamente este dinheiro que não existia cai do céu.
Em palavras mais simples e menos educada, o que falta mesmo é INTERESSE!
Se não há interesse em pura e simplesmente dar educação básica, quem dirá educação social? Se mal conseguimos levar ensino básico às nossas crianças, como esperar que ainda possamos ensinar regras de cidadania? No meu tempo de escola havia uma disciplina chamada Educação Moral e Cívica. Apesar de o título flertar com o regime militar da época, era uma forma de mostrar aos pequenos alunos um pouco de noção de cidadania. A matéria desapareceu do currículo. Talvez fosse o momento de voltar, não mais como forma de manipulação política, mas de formação de caráter mesmo.
Os principais especialistas em segurança são unânimes na relação acidente x economia. Cerca de 80% das vítimas de trânsito estão nos países em desenvolvimento e revelam uma face cruel, porque são justamente os países que recebem menos investimentos em saúde. Mais do que isso, os números revelam que crescem os óbitos em três categorias de agentes do trânsito: pedestre, ciclista e motociclista. Mais ainda, que são quase totalmente de homens na faixa de 18 a 25 anos.
Aqui no Brasil, tanto nas cidades grandes quanto nas pequenas, os acidentes envolvendo motociclistas está causando um caos na saúde. Parte pela ocupação de leitos nos hospitais, tirando a vaga dos atendimentos médicos de outras naturezas, parte pela dificuldade em reabilitar os pacientes com seqüelas, muitas vezes permanentes. A ponto de a produção de próteses não dar conta da demanda. Hoje está difícil internar um paciente com apendicite porque os hospitais estão cheios de motociclistas!
Em São Paulo, o número de acidentes é alto, mas proporcionalmente, em relação à quantidade de motos, é muito menor do que nas cidades do centro-oeste e nordeste. O problema em São Paulo está no número absoluto, que é gigantesco. Mas, pasmem paulistanos, o trânsito em São Paulo é muito menos violento do que em muitas outras cidades. Já nas pequenas cidades o problema reside na absoluta falta de informação e formação. Aliado a questões regionais, como algumas pequenas cidades nas quais é simplesmente proibido usar capacete. Isso mesmo! Tem cidade no Brasil onde é proibido usar capacete por causa do uso de motos por pistoleiros de aluguel.
Como a secretaria de Segurança não consegue acabar com essa categoria de “profissional”, achou-se por bem proibir os motociclistas de esconderem o rosto. Como já foi em La Paz, na Bolívia, 25 anos atrás!
A campanha da ONU e OMS é louvável porque conclama todas as áreas da administração pública. Das secretarias de Saúde aos ministérios de Transporte, de Prefeituras às secretarias de Educação e de Segurança Pública. E para incentivar a participação destas entidades, existe uma premiação de caráter mais política do que social. Uma vaga permanente no conselho mundial da saúde da ONU, cargo de grande potencial de exposição política. Graças a esse “prêmio”, muitas prefeituras e secretarias que hoje se mostram omissas terão de mostrar serviço, pois a cobrança, mais do que nunca, será federal. E no ano que vem teremos eleições... municipais!
O maior medo nesse momento de “buscar resultados” é imaginar o que pode vir na garupa das ações cheias de boas intenções. Como os números são mais fortes do que qualquer análise qualitativa, uma prefeitura despreparada pode querer reduzir os acidentes por meio de canetadas das mais malucas possíveis. Corre-se o risco de decisões arbitrárias como proibição de circulação de motos em corredores de carros, limitação de acesso das motos às rodovias por tamanho de motor, ou proibição de levar garupa. Todas essas idéias já passaram pela câmara de vereadores de São Paulo e podem facilmente voltar.
Como especialista arrisco a dizer que será uma missão tão difícil que precisará da adesão de cada pessoa, do pedestre ao motorista; do policial aos professores. E aqui vejo que o pequeno trabalho de cada um fará a diferença. Não dá mais para admitir o motorista que pára em fila dupla “só por um minutinho”; motoristas que levam crianças soltas dentro dos carros; pedestre que atravessa por baixo de uma passarela construída para salvar a vida dele; motociclista que insiste em rodar em alta velocidade nos corredores e até atos de simples educação formal como um motorista de ônibus escolar que buzina na porta das casas para chamar as crianças. Ele é o exemplo que balizará a educação dos seus passageirinhos.
Sem mudar a atitude como ser humano, ninguém conseguirá formar uma nova geração de motoristas. Um exemplo bem simples: não adianta um pai passar horas explicando aos filhos que não é legal dirigir depois de beber se ele mesmo toma uma caipirinha no restaurante com a família e depois sai dirigindo! Quando a mãe pára o carro sobre a faixa de pedestre a criança absorve isso como normal, como o padrão.
No campo da administração meu maior medo são as resoluções na base da “canetada”. A forma mais simples de resolver problemas de trânsito é por meio de todo o tipo de proibição, seguida de multas pesadas. Nenhuma forma de educação na base da punição produz o efeito desejado. Não se educa por castigo, mas por informação. No lugar da multa, educação. Mas como convencer as autoridades a mudar de estratégia? É melhor não esperar nada em caráter “oficial”, mas pensar no individual.
Cada agente do trânsito tem seu papel nessa verdadeira guerra que está dizimando jovens em todo o mundo. Se você tem filho, evite beber e dirigir em seguida, pois pode não saber, mas nenhum discurso é mais tocante para uma criança do que a imagem dos pais. Um pai pode gastar horas educando um filho e colocar tudo a perder em apenas uma ação. Se você usa moto não precisa correr, porque nos locais congestionados as motos são três vezes mais rápidas que um carro sem passar de 60 km/h. Seja você um exemplo a ser seguido e admirado.
* Este artigo foi escrito em 2011 e, para minha surpresa, a maioria dos meus apontamentos foi referendado por especialistas no Workshop Abraciclo de Segurança no Trânsito
Para quem quiser conhecer um pouco mais dessa campanha mundial pela redução de vítimas, recomendo ver estes dois filmes no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=jx_CtZb9lwI
http://www.youtube.com/watch?v=Yt8ILl7c9zo
(Ele morreu por tua culpa!!! )
À beira do abismo*
Arriscar a vida em busca do limite não é novidade na história da humanidade. Não sei explicar se é uma herança genética, mas está presente no ser humano, independentemente de ser homem ou mulher. Mas parece que esta tendência está aflorando nas últimas décadas. Uma rápida pesquisa nos sites de compartilhamento de vídeos é suficiente para encontrar toda espécie de atividade de risco e não raro cenas de acidentes fatais com milhões de acessos.
Depois de parar de correr fui buscar a fonte de endorfina na escalada. Ao contrário do que se pensa, a escalada esportiva é extremamente segura, mas muito emocionante pelo aspecto da altura e desafios. Já não é o caso da escalada de alta montanha, chamada popularmente de alpinismo. Nos montanhas acima de 8.000 metros em relação ao nível do mar os limites do ser humano são levados a extremos que podem ser fatais pelo simples fato de estar lá.
Um fenômeno comum aos escaladores de alta montanha é a “febre do cume”, situação de quase entorpecimento quando o alpinista abandona todas as regras de segurança e se lança em direção ao cume. Não por acaso, cerca de 80% dos acidentes fatais acontecem na descida, depois de voltar do cume, porque simplesmente esqueceu que descer é tão ou mais perigoso do que subir. O cume pode até ser o objetivo, mas se não voltar vivo não faz o menor sentido.
Quando questiono o que leva um homem adulto, bem de vida, financeiramente estável e com família estruturada a correr de moto acima de 250 km/h na estrada ouço todo tipo de argumento furado. Mas se a TV noticia que homem adulto, bem de vida, financeiramente estável e com família estruturada morreu ao tentar atingir o cume do Everest a opinião pública acha um “absurdo”, “loucura”, “suicídio” etc. Para mim as duas situações são iguais.
Não existe uma explicação para essa superexposição aos limites, embora quando aconteça um acidente sempre tenha alguém disposto a buscar “culpados”. Nesta exposição de acidentes fatais com motociclistas que chegam pela Internet o processo é dividido em três partes: primeiro a notícia da “tragédia” e a surpresa pela descoberta da mortalidade; depois vem as manifestações de dor e pesar para, finalmente, terminar na busca por culpados. O acidente pode ser resultado de um motociclista que atravessou a estrada pelo canteiro central, um motorista que não olhou pelo espelho retrovisor, um pedestre que correu pela rua desatento. Raramente a culpa volta-se para a vítima. Como se correr na estrada acima de 250 km/h fosse o trivial de quem compra uma moto esportiva.
Desde que a Igreja católica criou a culpa ao afirmar que “Jesus morreu para nos redimir dos pecados” o mundo ocidental católico passou a viver a eterna condição de caçador de culpados! Já nascemos culpados por alguma coisa que não sabemos, mas que levou um santo homem à morte 2012 anos atrás, então tudo que der errado na minha vida obrigatoriamente será culpa de alguém ou alguma coisa.
A escaladora sul-africana Cathy O’Dowd viu uma americana morrer bem diante de seus olhos durante uma tentativa de atingir o cume do Everest em 1998. Em seu livro “Just for the love of it” (sem tradução em Português), ela descreve como é enfrentar este limite entre a vida e a morte, a consequente perseguição aos praticantes e a busca por culpados. O alpinismo acima dos 8.000 metros não tolera erros, nem permite resgate. Se um colega cai em exaustão profunda não há como socorrê-lo sem colocar em risco a vida de outras pessoas. É um risco solitário, assumido. Ela escreveu uma teoria que talvez explique o que se passa quando alguém vive na beira do abismo:
“De quem é a escolha que representa o risco afinal? Não é da pessoa que resolve ir até lá? Vivemos em uma sociedade voltada para a culpa, que exige explicações e prestações de contas, indo atrás de bodes expiatórios se necessário. Se caminho pelas vias estreitas da vida, faço isso porque eu quero. Se essa beirada se rompe sob mim, aceito isso como conseqüência da minha escolha. Não posso culpar os outros pelo o que aconteceu. Tão pouco espero que aqueles que me acompanham por aquela passagem, caso me acompanhem, carreguem a culpa por minhas decisões. Eu faço uma escolha e vivo por ela, ou morro. A morte não é a intenção, mas é aceita como uma possibilidade em vista do risco da atividade.”
Por isso acho cada vez menos aceitável que os amigos e parentes das vítimas de um motociclista que se expôs conscientemente ao risco tentem tratar a fatalidade como uma tragédia, ou falta de sorte. É preciso voltar para o foco essencial: a responsabilidade de assumir o risco. Não há transferência de culpa quando se roda perto de 300 km/h em estradas. A vítima é o próprio algoz.
* Para ler as partes 1 e 2 deste artigo clique aqui e aqui
(E se eu continuar acelerando no final da reta, o que acontece???)
Velocidade vicia?
Na verdade, não é a velocidade, mas a sensação de prazer proporcionada pelo risco. É a tal endorfina, secretada pelo nosso organismo, encharca o cérebro e que provoca a sensação de bem estar. Ela é culpada pela maioria dos casos de dependência, seja por velocidade, exercício físico, cigarro, trabalho, álcool, drogas, sexo etc. Não existe racionalização capaz de bloquear essa sensação de prazer depois que se torna dependência. Vai exigir um longo período de “desintoxicação” com tratamento específico.
A coisa fica perigosa quando passa da dependência para a obsessão. Várias vezes tentei parar de correr, mas sempre batia aquela desculpa: “só mais uma temporada e pronto!”. Promessa tão difícil de cumprir quanto a última dose, o último cigarro etc. Só que não foi isso que me assustou durante a vida corrida. Muita gente acha que pilotos são loucos e problemáticos, até a psicóloga inglesa caiu nessa (A vida em Perigo, parte 1), mas na verdade é o inverso: pilotos são muito frios e calculistas. Precisam ser pragmáticos e com uma precisão cirúrgica. Pilotos loucos duram pouco.
Pouca gente tem ideia do que é correr em alta velocidade, dentro de um circuito, com outros pilotos em volta. É preciso um nível muito alto de concentração para não se deixar desligar pela repetição e ligar o “piloto automático”. Manter a concentração exige prática e exercícios meticulosos. Lembro de várias vezes, quando corria isolado, sem ninguém perto, que me pegava pensando no que eu faria depois da corrida, qual seria o prêmio, como seria o troféu, aonde eu gostaria de jantar etc. Isso, freando a mais 200 km/h, reduzindo marcha, e entrando na curva a 160 km/h. Quando me pegava desconcentrado levava um susto e voltava para a rotina do acelerar, frear, fazer curva, trocar marcha, frear, acelerar...
Mas não foi isso que me assustou nessa fase. O que me deixou preocupado foi a sede de velocidade pura. Várias vezes me peguei acelerando até o fim na reta com uma vontade interna muito grande de manter o acelerador todo aberto, mesmo com a placa de 200, 100 e 50 metros chegando. Esse pensamento assusta porque é o primeiro sintoma de perda dos limites diante do prazer. Um limite que instiga e embriaga como uma droga e que separa a vida da morte por uma linha muito frágil.
Uma coisa é buscar os limites, freando mais perto da curva e acelerando o mais cedo possível. Outra coisa é manter o acelerador aberto só pela tentação de imaginar o que vem depois. É como se depois do limite existisse um diabinho que ficava instigando “vem, continua acelerando pra ver que grande barato!”
Os filmes de motociclistas em alta velocidade na estrada, divulgados pela internet, mostram essa obsessão em estado puro. O piloto mantém o acelerador aberto até o fim do curso, mesmo em uma estrada cheia de carros, caminhões etc, atendendo ao apelo da voz interior, que pode ser o tal diabinho. É a perda de qualquer vestígio de sensatez diante do prazer por ter ultrapassado todos os limites. Isso vicia e o fim pode ser trágico.
Dois ótimos filmes ilustram o que acontece diante da perda dos limites. Um deles é o franco-japonês Império dos Sentidos, (Ai no kuriida). Equivocadamente classificado como filme pornográfico, na verdade foi uma crítica a um período no fim dos anos 30, quando o Japão estava obcecado pela militarização. O Japão tinha esperanças de se tornar uma potência militar, mas a participação na II Guerra Mundial desmoronou este plano, junto com a economia do país.
No filme, baseado em fatos reais, um casal, alheio à revolução política que o país vivia, entrou em uma perigosa relação de prazer sexual sem limites e no fim... bem como sei que muita gente não vai ver o filme, posso revelar o fim: o personagem masculino morre na tentativa de conseguir o máximo prazer, enquanto a mulher enlouquece.
Outro exemplo é o filme Imensidão Azul (Deep Blue) que narra a competição entre dois amigos em um dos esportes mais radicais: o mergulho livre em profundidade. Para usar o português mais claro, o tesão pelo desafio leva o ser humano a uma atração fatal pela perda do limite. Durante a competição os dois principais concorrentes entram em uma disputa ensandecida para ver quem chegava mais fundo, em apnéia, diante do risco real e constante de um acidente fatal. Este filme não vou contar como termina, porque recomendo não só pela mensagem, mas pelas paisagens e ótima trilha sonora.
(Insensatez na rede: mas... e se a TUA velocidade matar alguém? vai continuar sorrindo?)
Uma vez li um artigo escrito por uma psicóloga que tentava desvendar o que atraía tantos jovens a correr de Fórmula 1. Era meados dos anos 80, uma época na qual os carros de F-1 eram tão rápidos quanto hoje, mas extremamente frágeis. Entre os anos 70 e 80 foi o período de maior fatalidade na categoria máxima do automobilismo e a mídia já começava a questionar se aquilo era verdadeiramente necessário. Pilotos campeões como Emerson Fittipaldi e Jackie Stewart afirmavam que já começavam a temporada cientes de que pelo menos três colegas não estariam vivos até o final do ano.
Lembro que o artigo, publicado em uma revista inglesa, relacionava algumas suposições, tais como a herança genética masculina. Segundo a autora, o homem sempre foi o responsável pelas atividades de risco da família desde os primórdios da civilização. Eram os homens, geralmente, que caçavam para alimentar, que lutavam em guerras para aumentar suas fronteiras, enfrentavam todo tipo de perigo para prover e manter a família. Quando chegou a era moderna, essa falta de uma atividade de risco empurrou os homens para os chamados “esportes radicais”, incluindo automobilismo, motociclismo, escaladas, surf, asa delta, pára-quedismo etc. Até faz algum sentido!
Mas a autora continuou: segundo ela os pilotos de F-1 eram também infantilizados, porque cresceram cultivando algum tipo de super-herói e acabavam buscando como ideal de vida a própria transformação em um herói. Isso Platão já tinha descrito quatro séculos antes de Cristo, ao afirmar que todo homem sonha ser herói. Não parou aí, segundo ela – que infelizmente não lembro o nome – ainda havia a questão da sexualidade reprimida, ou impotência disfarçada, porque o homem tem um prazer latente de mostrar que é mais potente que o outro. Na impossibilidade de matar o adversário, usava as competições motorizadas para mostrar seu status quo de viril. Inclusive ela chegava a comparar o jorro do champanhe a uma ejaculação masculina. Aí a doutora começou a pirar na batatinha e preferi não ler o resto.
(Fórmula 1 nos anos 70: muitas mortes em nome da paixão pela velocidade)
Lembrei deste artigo porque no período de um mês tive notícia de três motociclistas que morreram em condições semelhantes: correndo em altíssima velocidade na estrada com motos esportivas. Não poderia relatar como aconteceram os acidentes, porque isso não foi divulgado. É interessante como os motociclistas lidam com a morte de um colega. Até pouco tempo atrás este assunto era tabu, mas hoje com o aumento das ocorrências a morte passou a fazer parte das conversas. Porém, sempre como uma fatalidade, um azar.
A morte ainda não é tratada com o devido foco. Vejo na internet, especialmente nas redes sociais e de compartilhamento de vídeos, centenas de filmes com motociclistas em motos esportivas acelerando na estrada em velocidades bem acima de 250 km/h, expondo essa imagem como um troféu. Geralmente acompanhadas de comentários elogiosos à coragem ou à moto ou mesmo a qualidade do filme. Aí quando vem a notícia da morte de um destes motociclistas os comentários são sempre em tom de fatalidade, falta de sorte, mensagens aos familiares, manifestações de dores profundas, mas ninguém se pergunta: por que ele estava na estrada a mais de 250 km/h?
Não vou entrar na mesma vibe despirocada da psicóloga inglesa de tentar analisar estas atitudes sob o ponto de vista psicológico. Não tenho paciência nem PhD para isso. Mas posso tentar desvendar um pouco dessa necessidade quase vital por emoção e risco porque eu mesmo disputei competições motorizadas em várias categorias por 22 anos. Também já corri nas estradas e passei por vários sufocos que ninguém imagina.
(Também já fiz testes em estradas, mas parei em 1992. Depois disso só com a estrada fechada para fotos)
Quando finalmente os portos brasileiros foram abertos aos veículos importados, em 1992, chegaram as motos esportivas de alto desempenho e eu era piloto de teste. Lembro com extrema clareza do dia que decidi não fazer mais testes na estrada depois de levar um susto a 245 km/h, em uma estrada que parecia vazia até surgir uma Kombi do meio do mato. A partir deste dia passei a usar os dados oficiais dos fabricantes que já não eram bestas de declarar valores mascarados por causa dos órgãos de defesa do consumidor. Depois desta experiência defendi o fim dos testes em estrada, embora muitos jornalistas continuem praticando até hoje.
(Continua na próxima semana)
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