
(Primeiro abastecimento na Argentina e pulei fora! Sim, isso na minha boca é um cigarro, até comecei a fumar! Foto: Fred)
O dia da Marmota
É o título original de um filme que recebeu o nome de “O Feitiço do Tempo”, com Bill Murray e Andie MacDowell. O filme é uma fábula sobre o tempo e mostra um repórter do tempo em plena crise existencial que vai fazer a cobertura do primeiro dia de inverno e não consegue sair da cidade por causa de uma nevasca forte. Na manhã seguinte descobre que ficou preso no mesmo dia por um tempo que não se pode determinar.
Esta estória pode ser absurda e fictícia, mas eu vivi exatamente a mesma situação – e real – quando fui contratado para fazer um raid com o Renault Clio, saindo de São Paulo até Bariloche (Argentina), em 1997. Era a chegada da Renault no Brasil e precisavam divulgar o carro popular fabricado na Argentina.
Para mim a viagem teria um significado muito especial porque além de desempregado (pela enésima vez...) eu acabara de me separar da segunda mulher e minhas filhas estavam morando na Alemanha. Em suma, minha história de vida não poderia ser mais parecida com a do repórter do filme.
Os dois Clio estavam com placas e documentos da Argentina, mas dirigidos por dois dos mais brasileiros motoristas disponíveis (leia a íntegra da matéria abaixo). Depois de um dia de viagem pelo sul do Brasil chegamos à fronteira, na ponte que liga as cidades de Uruguaiana e Passo de Los Libres. Foi quando começou nosso drama. O fiscal da aduana veio com uma conversa das mais furadas de que carros argentinos não poderiam ser dirigidos por motoristas brasileiros. Se esta lei existe mesmo posso atestar que o Legislativo argentino é ainda mais tacanho que o brasileiro.
Era uma sexta-feira, final de tarde e os executivos da Renault brasileira e argentina já tinham caído fora de seus escritórios. Solução mesmo só na segunda-feira.
Lá fomos para um hotelzinho em Uruguaiana esperar passar o fim-de-semana mais longo da vida. Para nossa sorte podíamos atravessar para Passo de Los Libres (de los presos?) aproveitar os cassinos com suas crupiês de decotes muy generosos.
Segunda-feira, depois de dois dias sem muito o que fazer – enquanto o representante da Renault gastava horas no celular com a gerente de relações públicas para nos tirar de lá – fizemos as malas, o check-out, saímos do hotel e lá fomos para a aduana. Horas de chá de cadeira a conversa fiada os fiscais vieram com outra novidade: o carro tinha saído da Argentina, mas não tinha um documento de entrada no Brasil. Claro, os carros vieram de caminhão-cegonha e não rodando. Sem este documento era como se os carros fossem frutos de um contrabando!
Voltamos pro hotel... novo check-in e, não sei se de sacanagem ou coincidência, mas nos deram os mesmos quartos!
Antes de enfrentarmos mais uma noite de cassino, picanhas e decotes eu e meu inseparável amigo, fiel escudeiro, Fred, fomos gastar nossos traseiros na praça. Descobrimos algo totalmente inédito: os bancos da praça de Uruguaiana são levemente inclinados para baixo. O corpo escorre para fora, totalmente desconfortáveis! Com todo nosso tempo livre e a mente psicopata do Fred, engenheiro mecânico dos bons, achamos a resposta para o mistério dos bancos tortos. Era uma forma de evitar que bêbados e mendigos dormissem nos bancos!
Tivemos de colocar a teoria na prática, o que nos custou uma garrafa do mais vagabundo vinho da cidade e alguns tombos. O sistema realmente funciona, porque assim que o bebum entra em REM – rapid eyes moviment – o corpo relaxa e... pumba no chão! Desenvolvemos então o ABSU – anti bebum system de Uruguaiana. Trata-se de apenas um pedaço de espuma em forma de cunha para colocar ao lado do corpo encachaçado que trava o bebaço e evita quedas... O que tempo e mentes desocupadas são capazes de produzir!
Terça-feira, tínhamos a promessa da assessora da Renault que estava tudo resolvido e um documento teria sido enviado via fax diretamente para o chefe da aduana. Novo check-out, nos despedimos da recepcionista e carregamos as malas pelas ruas de novo até a aduana.
De fato, os carros estavam liberados, mas cadê os argentinos para dirigirem? Como??? Isso mesmo, continuavam exigindo motoristas com habilitação argentina para levar os carros. Eu queria saber como sobrevivem as locadoras argentinas! Aquilo só podia ser uma grande farsa para arrancar uma pequena fortuna em propina, o que nos recusávamos solenemente. Algumas ligações depois e dois motoristas estavam saindo de Bariloche para nos encontrar e dirigir os carros, pelo menos até a esquina da Argentina, porque depois eu assumiria aquele volante e nem Maradona me impediria de dirigir!
Voltamos pro hotel... Mesma recepcionista, mesmos quartos!
Mesma praça, mesmos gaúchos da fronteira, mesma picanha... que ficção p*** nenhuma, aquele filme do Bill Murray era real!
(O filme original, a vida imita a arte)
Quarta-feira e recebemos a ligação informando que os dois motoristas já estavam na aduana nos esperando. Mais um check-out, as minhas roupas já entravam sozinhas na mala, despedida da recepcionista e rumo à aduana.
Pela nossa Senhora da Fronteira, estava tudo resolvido!!! Encontramos os motoristas que mostraram os documentos aos fiscais e fomos liberados. Assim que entrei no carro senti um cheiro esquisito. Enquanto o hermano seguia dirigindo até Passo de Los Libres olhei pra sola do sapato na busca da origem de tal budum e... nada!
Quando chegamos no primeiro posto de gasolina pós-fronteira comentei com o Fred sobre o cheiro e ele me deu a pior notícia: era dos motoristas! Contrataram dois caminhoneiros que prestavam serviço a uma concessionária e os caras parecia que tinham viajado a pé. O cheiro era insuportável e tínhamos uns 2.500 km pela frente. Nem pela grana que estavam pagando, nem por toda depressão que eu estava sentindo – preferia hara-kiri! Liguei dali mesmo para o aeroporto de Uruguaiana e fiquei sabendo de um vôo que sairia na manhã do dia seguinte para São Paulo. Virei pro Fred e só comentei: “Está com saudades da pracinha de Uruguaiana?”
Voltamos pro hotel... mesmo quarto, mesma recepcionista, mesmo desespero...
Quinta-feira, último check-out, e nem tomamos café-da-manhã. Pulamos no táxi e partimos direto pro aeroporto e dali só fiquei tranqüilo quando vi São Paulo pela janelinha.
E depois ainda tem gente que duvida quando dizem que “a vida imita a arte”.
(Capa da revista Club Renault. Foto:Tite)
Pelo sul de Clio. Ou: como me tornei motorista*
Pleno inverno em São Paulo e fui chamado pelos meus colegas da Auto Esporte para uma importante missão: levar o recém lançado Renault Clio até Bariloche, na Argentina. Uau! Era a primeira vez que pilotaria para uma multinacional de automóveis e logo num raid-teste, justo eu, cuja especialidade sempre foi motocicletas. Sempre fui meio "alérgico" a automóveis. Eles me fazem enjoar desde criança. Sou um bípede, desses seres engraçados que vocês encontram nos elevadores, com um capacete pendurado no cotovelo, casaco de couro, colarinho sujo de ó1eo diesel e vivem por aí montados em duas rodas.
Aceitei o convite, junto com o jornalista Aírton Ponciano Voz (Jornal da Tarde), o engenheiro Alfredo "Fred" Lasalvia e Juliano Klein do departamento de marketing da Renault, (responsável pela estrutura leia-se e$trutura).
Na hora de jogar nossa bagagem no porta-malas cheguei a duvidar que coubesse aquela montoeira que se formou na calçada. Só o Juliano levou sua coleção de ternos e camisas de seda, sem falar nos mocassins do Spinelli. E eu nunca viajo sem meu travesseiro e o ursinho Ted! O Airton, em seu formato compacto, tinha uma maletinha mais esportiva e o Fred decidiu deixar em casa o estojo de tratamento capilar (o que economizou muito espaço). E não é que coube tudo! Os bancos de trás podem ser rebatidos para abrigar mais bagagem.
Na largada, em frente ao luxuoso edifício L'Arche, na Nova Faria Lima (em São Paulo), saímos encapotados, vestidos de Renault. Nos primeiros quilômetros na cidade já senti a maciez da direção eletro-hidráulica. Vidros elétricos! Que legal! Abrem e fecham só apertando botãozinho (como se sabe, motos não têm vidros, nem direção hidráulica). E o som! Gravei uma fita (fita???) especialmente para a viagem: Rolling Stones, Seal, Police, Marisa Monte, B.B. King, Elvis Presley e Led Zepellin para acordar.
Saindo de São Paulo, o frio foi diminuindo. Em Curitiba, PR, já estava quente suficiente para ligar o ar-condicionado. Moleza: som, direção hidráulica e ar-condicionado. Vai ser difícil voltar às motos...
Meu colega e piloto de testes, Otávio Sarmento já tinha comentado sobre a estabilidade e desempenho do Clio. De fato, nas curvas das estradinhas vicinais do Sul, pude sentir a boa estabilidade, fazendo curvas com muita segurança (puxa, como é fácil com quatro rodas), mesmo com pé cravado no acelerador. E quando apareciam os caminhões bastava apertar aquele pedalzinho da direita para o motor acordar os 74 cavalos e retomar com rapidez.
Como motociclista sempre desconfiei de automóveis, principalmente quando vejo o ar mau humorado dos motoristas ao abastecer. Por Isso, nos primeiros abastecimentos fiquei ali, de olho naqueles numerozinhos da calculadora do Juliano para saber o velho "quanto faz?". "Só isso?" foi meu comentário ao ver que fizemos 13 km/litro. Até que o engenheiro lembrou que se trata de um carro de 1.402 kg, ar-condicionado ligado e que viajávamos a modestos 160 km/h (que a polícia não nos ouça). Tá bom, me convenceu, é bem econômico para um veículo de quatro patas. Segundo Alfredo, com suas engenheirices, uma boa parcela de responsabilidade pela economia deste Clio é a aerodinâmica do desenho. A área frontal é de 1.86 m2 e o Cx de apenas 0.33, um dos mais baixos da categoria.
(Em Missões, RS. Foto: Tite)
Uruguaiana, meus amores, meus temores
A viagem foi seguindo, à base de churrasco, asfalto, acelerador e fotografias. A meta era chegar em Bariloche, lá na vizinha Argentina, berço dos dois Clio que viajávamos. Fizemos uma parada em Missões, região histórica no Rio Grande do Sul, com ruínas de uma importante parte de nossa história. Lá teria nascido uma civilização utópica, sem moedas, nem escravos, nem trabalhos forçados. Os jesuítas ensinavam aos índios a "cultura branca" e os guaranis aprenderam esculpir, pintar anjos, tocar instrumentos de corda e tudo seria lindo, não fosse a ganância da matriz, Espanha. Bem, se quiser saber mais, passe na locadora e pegue o belo filme Missões, com Robert de Niro. Imperdível.
Chegamos finalmente na fronteira. Uruguaiana é daquelas cidades fronteiriças dos. aquilo vira noa. Na hora de atravessar para Passo de Los Libres na Argentina o fiscal da aduana disse:
- No!
E nós perguntamos: “que passa?"
E eles:
- No passam!
E foi assim que ficamos seis dias na pródiga, aprazível e receptiva Uruguaiana, com sua vida noturna mais agitada que convento marista. Suas praças sonolentas, suas deliciosas picanhas e uma vontade louca de convidar o Alain Tissier, (diretor de marketing da Renault, autor da idéia do raid) para passar suas próximas férias em Uruguaiana, às margens do rio Uruguai, provando da trivial comida gaúcha, passeando pelas ruas tranqüilas e brigando em portunhol com todos os agentes alfandegários do Cone Sul.
O raid prosseguiu, graças ao espírito empreendedor do Juliano, renovado, depois das apaixonantes férias em Uruguaiana, até Bariloche. Pena que a neve já tinha derretido, mas a festa de lançamento do Clio foi um sucesso.
Quanto a mim, cada a vez que vou pegar a moto fico pensando no ar-condicionado, vidros elétricos, direção hidráulica, BB King, Marisa Monte. Ah, Marisa, que voz, que boca ...
(Clio RT: excelente relação custo x benefício. Foto:Tite)
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* Publicada originalmente na Revista Club Renault, nº1 – ano 1 - 1997
Apesar de a viagem ser patrocinada pela Renault eu realmente gostei do carro, com exclente relação custo-benefício e um motor muito resistente. Não pude comentar os pontos negativos, mas só mesmo o estilo que é mais feio do que bater na vó com a Bíblia. E quem comprou em 1997 pagou R$ 13.500, o que era competitivo pelos itens de série que oferecia.