Você confiaria nesse médico?
Não é de hoje que existem hoaxes
Acreditar em hoax, ou embuste, em inglês, não é privilégio dos frequentadores de redes sociais de hoje. Muito antes de Orkut e Facebook a gente chamava isso de mentira mesmo, ou lendas urbanas, como a loira do banheiro, as agulhas infectadas com vírus da AIDS em telefone público e outras inverossímeis como novela. No tempo dos meus pais a gente ouvia dizer que manga com leite era fatal e nunca demos a menor importância a tudo isso. Servia apenas para ter assunto nas rodas de amigos.
Algumas dessas lendas vinham acompanhadas de comprovação científica por doutores de instituições sempre de locais tão distantes quanto desconhecidos como a Universidade de Ciências Intestinais de Zirl, na Áustria.
Nos anos 80 a informação caminhava na velocidade dos jornais, rádios e TVs. Foi nessa época que uma amiga muito querida recebeu a notícia que estava com um enorme câncer no útero. Mesmo depois de retirar o útero as células já tinham espalhado e sua sobrevivência dependia de doses desumanas de químio e radioterapia.
Foi um choque para todos porque ela era uma espécie de líder da turma. A mais velha, mais bonita, inteligente e com um componente que mexia com a cabeça dos homens: pilotava aviões. Enquanto viajávamos de ônibus, carro ou moto para a Ilhabela, litoral norte de São Paulo, ela chegava de avião! Chique, sexy e refinada.
Ninguém queria acreditar que ela estivesse sofrendo daquela forma. A quimioterapia provocava enjôos cruéis e ela passava muito tempo comendo e vomitando. Aquilo acabava com a alegria de todo mundo.
Foi então que li na conceituada revista Veja uma notícia na editoria de Ciência que prometia mudar aquela situação. Pesquisadores de uma universidade no interior dos Estados Unidos descobriram que a maconha cortava o enjôo da quimioterapia e que essa experiência havia aberto a discussão pela aprovação do uso medicinal da maconha.
Liguei para um amigo, grande consumidor da planta boliviana, e contei da necessidade. Como a maioria dos homens da turma, ele era apaixonado pela nossa amiga doente e rapidamente reuniu os amigos mais chegados para providenciar o medicamento. Conseguiu uma quantidade absurda do remédio 100% natural. Entregou nas minhas mãos um pacote prensado que devia ter cerca de meio quilo.
- Não precisa tudo isso! argumentei
- Ah, não sabemos quanto tempo vai levar o tratamento e uma parte você usa para subornar médicos e enfermeiros! Esses caras são tudo doidão, dããã...
- Sei não, mas pela maresia que está no seu apartamento prefiro acreditar que minha vida não depende de tantos doidões.
Surgiu o impasse: quem transportaria o medicamento, entraria no controladíssimo Hospital dos Servidores Públicos e ministraria a dose à paciente? Foi quando todos os olhos se viraram para mim!
- Mas por que eu??? Protestei.
- Porque você é o único careta da turma e ninguém vai desconfiar! qualquer outro que entrar naquele hospital vai estar escrito na testa "sim eu fumo maconha, e daí"...
Tínhamos de arquitetar um plano para transportar, não ser pego pela polícia com meio quilo de maconha, entrar no hospital em dia e horário proibido às visitas, enrolar o medicamento, acender, fazer a paciente fumar, analisar os efeitos, sair e tudo isso sem ser preso. Coube a mim... como sempre!
Você desconfiaria dessa moto?
Primeiro desafio: transportar a mercadoria. Eu tinha uma Honda CB 400Four que era o meio de transporte mais indicado para a operação Cannabis es Medicum. Analisei a moto de eixo a eixo e não conseguia imaginar onde esconder o remédio. Abri o banco e quando olhei pro filtro de ar veio a resposta. O pacote tinha exatamente o tamanho do filtro de ar. Retirei a peça, entreguei pro meu amigo e coloquei o pacote de maconha na caixa do filtro de ar, com o cuidado de deixar espaço para o motor "respirar". Encaixou perfeitamente.
Segundo desfio: entrar no hospital. Eu já tinha trabalhado em hospital e sabia o grau de esculhambação de gente entrando e saindo. Conhecia bem aquela rotina. Peguei um jaleco branco, surrupiei a malinha de médica da minha irmã, com crachá e tudo, colei minha foto com um baita cabelo de cantor de rock e lá fui pro hospital.
No caminho senti que a moto estava falhando, mas atribuí ao pouco ar que estava chegando aos carburadores. Fui girando apenas um tiquinho do acelerador para não estourar o saco e a maconha entupir os quatro carburadores e seus giclês. Fiquei imaginando aquela erva toda entrando pro motor, sendo queimada junto com a gasolina e eu passando ao lado de um carro da polícia com a fumaça de maconha saindo pelo escapamento que nem um defumador. É claro que nessas horas a gente vê um carro de polícia a cada 50 metros.
Consegui chegar no estacionamento do hospital, coloquei o medicamento dentro da malinha de médico, coloquei o estetoscópio em volta do pescoço como fazem todos os médicos. Amarrei o cabelo pra trás e enchi de gumex pra parecer um doutor yuppie e não um traficante colombiano. Fiz o ar superior de médico e fui passando por todas as portarias com meu coração quase saindo pela boca.
Subi o elevador e fui andando pelos corredores rezando alto para nenhuma enfermeira me agarrar pelo braço e gritar "doutor é uma emergência, tem um paciente precisando um cateterismo agora!!!". Se alguma enfermeira me olhasse eu jogava o estetoscópio na cara dela e sairia correndo.
Com um tremendo alívio cheguei no quarto. Fechei a porta atrás de mim, ela me olhou, desatou numa crise de riso nervosa e perguntou:
- O que você fez com o seu cabelo???
Nem se deu conta que eu estava vestido de médico, com uma mala de médico cheia de maconha e um estetoscópio no pescoço.
- Vim te medicar... e pára de rir antes que entre alguém!
Obviamente que ela não sabia do plano Cannabis es Medicum, mas expliquei do se tratava, citando a reportagem da Veja e convenci a fazer o teste. Assim que joguei o pacote em cima da cama ela gritou, deu um pulo e me agarrou pelo pescoço. Uma aranha preta, enorme, saiu de dentro da maconha e nós dois subimos na outra cama, um agarrado no outro, um gritando pro outro:
- MATA ELA, MATA ELA!!!
Matei. E fui enrolar um baseado.
As portas de hospitais não tem chave. E aquele remédio exalava muita fumaça. Por isso escorei uma cadeira na porta, tampei todos os vãos com toalhas molhadas e entreguei o remédio na forma de um baseado. Seria nosso primeiro medicamento via oral em forma de fumaça. Não conseguíamos parar de rir um segundo o que tornava tudo mais difícil e demorado. Por garantia deixei o balde do lado. Ela acendeu, tragou, tossiu e... vomitou que nem um chafariz da piazza Navona.
- Aqueles filhos da puta de americanos queriam mesmo é legalizar a marijuana! Filosofei em voz alta.
Não funcionou. O enjôo foi pior ainda.
- Talvez se fizesse um chá? argumentei
A resposta dela foi outro jato no balde. Achei melhor não tocar mais no assunto.
Aproveitei que já estava ali, me ajeitei na cama do lado e cochilei, vestido de médico, com um baseado jazendo no cinzeiro.
Claro que nada é tão ruim que não possa piorar. Ainda mais comigo envolvido. Mal entrei em REM e a porta se abriu, a cadeira caiu e um médico de verdade entrou. Fingi que continuava dormindo e abri o olho bem pouquinho só pra ter a dimensão da tragédia.
- Quem é esse médico? Perguntou o médico verdadeiro, apontando pra mim, o falso.
- Ah, um amigo, ele deu plantão e capotou... respondeu minha santa amiga, enquanto empurrava o travesseiro pra cima do cinzeiro.
- Mas e essa cadeira, essa toalha...
- Voooosssshhhh!!!
Nada melhor para interromper um interrogatório do que um vomitão no chão!
Passado o susto, o médico de verdade saiu, me recuperei, peguei a malinha de médico e dei o fora antes que eu mesmo fosse internado para um cateterismo!
O resto do medicamento boliviano foi devidamente doado para os amigos, que aceitaram de imediato. Descobrimos pelo método mais empírico possível que maconha não tirava o enjôo da quimioterapia e minha amiga ainda vomitaria muito. Até morrer 18 meses depois aos 33 anos.
No dia do velório, assim que cheguei, encontrei os amigos que tiveram participação naquela operação Cannabis. Tentamos não lembrar detalhes para não correr o risco de uma gargalhada fora de hora. O irmão dela cobrou meu sumiço nos últimos meses. Inventei uma desculpa qualquer. Mas no fundo eu não queria admitir que evitei vê-la definhando, sofrendo, porque eu gostava muito dela. Era um misto de admiração, com respeito, amor, paixão, e eu guardava todo esse sentimento escondido, porque, tímido que sempre fui, nunca tive coragem de dizer para ninguém o quanto eu gostava dela. Foi então que abracei uma tia que me confessou:
- Nossa, Tite, ela gostava tanto de você!
Por nunca ter dito nada, continuei sem dizer nada.
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