Sei que adiante um dia vou morrer, de susto, de bala ou vício*
Na noite do dia 20 de novembro, feriado do Dia da Consciência Negra, estava voltando para minha casa, a bordo de uma moto BMW F 650GS 2008, como sempre fiz por mais de quatro décadas. Na porta da minha casa fui abordado por três elementos em duas motos, uma Yamaha Fazer 250 preta 2012 e uma Honda CG 150. Um deles desceu da garupa da Fazer, me apontou uma pistola automática 9 mm e começou a me ameaçar, perguntando se eu era policial, se a moto tinha alarme, essas coisas. Ele tentou tirar o meu capacete Shoei, mas como o fecho é de argolas, e não de engate rápido, ele não conseguia e um dos comparsas gritava “Deita ele, deita ele”. Na linguagem deles significa simplesmente “mata o cara, mata o cara”. Eu mesmo soltei as argolas e entreguei o capacete... foram embora!
Foram embora, levaram minha moto e deixaram um fantasma para trás: eu!
Foi o terceiro assalto a mão armada que sofri em um perímetro de pouco mais de um quilômetro. O primeiro foi no ano 2000 e os assaltantes, armados, eram profissionais e estavam tranqüilos. Não me ameaçaram e ainda deixaram ficar com o telefone celular, mas levaram a bateria. O segundo foi em 2008, quando uma turma em CGs me cercou e levou uma moto Yamaha MT-03 recém lançada. Também não ameaçaram, mas levaram minha mochila com os cartões compact flash e todo meu trabalho de dois dias como fotógrafo, inclusive com as fotos da moto roubada. E agora, em 2012 um novo assalto.
Pela matemática simples pode-se concluir que o período entre uma ação e outra está reduzindo pela metade, o que projeta uma vida infernal a partir de 2015 para mim. Se o mundo não acabar agora em 2012.
Ser assaltado é uma experiência que mexe com a vítima. E mexe naquilo que temos de mais dignificante que é a coragem. Nos dois primeiros não cheguei a ficar muito assustado, mas neste último foi literalmente apavorante, porque houve a ameaça real de morrer ali, na porta da minha casa. Em um segundo de lucidez joguei o sensor do portão eletrônico embaixo de uma caçamba de entulho, porque se o portão estivesse aberto seria desgraça na certa.
Depois da humilhante imagem de ver minha moto ir embora nas mãos de um marginal veio toda a depressão do mundo como se uma bigorna de 50 kg caísse sobre os ombros. Aquela sensação de impotência diante de uma ação tão violenta mexe com o ser humano. Não consegui – e ainda não consigo – sentir a revolta que a maioria sofre a ponto de pensar nas mais sanguinolentas vinganças. Só uma tristeza que parece não ter fim.
Estou pouco me lixando para a moto, que eu nem gostava tanto assim e estava coberta pelo seguro, mas pelo ato de banditismo que fui obrigado, mais uma vez, a assistir quieto e impassível. Fazer parte de uma rotina de violência deixa qualquer pessoa doente da alma.
Por vários dias pensei “e se o cara tivesse atirado?”. No momento do assalto cheguei mesmo a projetar a imagem, o barulho, a “picada” da bala entrando, a queda na pressão arterial, o desmaio, o sono profundo e o silêncio. Será que minha esposa teria ouvido o tiro? Será que eu morreria nos braços dela? O resgate chegaria a tempo? A bala atingiria alguma artéria? Algum órgão vital? A arma estava apontada pra minha barriga, o projétil poderia passar pela musculatura, perfurar o intestino, atingir a coluna e me deixar paraplégico. Ou varar o fígado e eu sangrar até a morte. E se o resgate chegasse tarde demais e eu morresse ali, na porta de casa.
Imaginei o desespero da minha esposa, segurando minha cabeça e sentindo o sangue quente e espesso escorrendo pelo corpo, pelas mãos, pelo chão. Ela não colocaria o dedo no buraco da bala para tamponar o ferimento porque não foi treinada para isso, mas se eu tivesse forças avisaria “tampone os furos!”. Aprendi isso no hospital.
E o que viria depois? A polícia chegaria cheia de perguntas com aquela cara de quem soltou pum no elevador. Para os policiais era mais uma vítima de latrocínio. Mais uma ficha pra preencher, um corpo pra identificar, empacotar, colocar na gaveta, jogar no rabecão e mandar pro IML. Mais um.
Como seria esta noite? A notícia sairia nos telejornais? Colocariam minha foto tirada do Facebook, com um resumo tipo “jornalista especializado, 53 anos, casado, duas filhas bla, bla,bla”. Talvez entrassem com cena na porta do IML, entrevistariam algum amigo meu, que pediria mais ação da segurança pública. Alguém faria um depoimento emotivo acusando toda a cúpula da Secretaria de Segurança Pública, pedindo a cabeça do Alckimin, do Kassab e da Dilma. Enquanto meu corpo era preparado para o enterro depois da autópsia, que concluiria “morte provocada por hemorragia e falência dos órgãos, causada por projétil de arma de fogo”.
Não existe situação mais insólita na vida de uma pessoa do que escolher o caixão e a roupa que o morto vai usar. Já passei por isso e foi algo que espero não passar de novo. A gente olha para as caixas de madeira sem conseguir pensar em nada, enquanto o vendedor explica as qualidades de cada um: “este é de madeira MDF, mais barato; este é pinho maciço, com acabamento em veludo vermelho e alças de alumínio anodizado em prata; este é de peroba, com acabamento duplo, estofado, alças de aço dourado”, assim por diante, passando a lista de preço. E a gente não ouve nada, só fica pensando que diferença isso faz?
Quem faria isso pra mim? Na confusão ninguém lembraria que eu tenho um seguro de vida que cuida de tudo isso – e paga! Minha esposa, abalada, talvez em choque, lembraria, mas não saberia localizar minha “life planner” porque o celular foi junto com a minha vida. E ela já teve de escolher o caixão da mãe, por isso acho que não teria forças. O meu vizinho de infância, Daniel? Ele chegaria logo em seguida porque a “rádio-peão” espalharia a notícia pela rua com a velocidade a jato. Ele poderia assumir essa parte porque sabe ser frio quando precisa. Ou meu irmão mais velho, talvez? Ou Minha irmã mais velha? E a roupa? Escolheriam jeans, camisa e tênis, ou terno, calça e camisa sociais e sapato? Talvez houvesse uma discussão entre os “sociais” e os “casuais”, mas acabariam decidindo por algo mais casual, porque eu passei pela vida casualmente.
E minhas filhas? Como receberiam a notícia? Quem as ampararia? Não era a melhor época de perder o pai, no fim do ano, com o TCC pra apresentar, o aniversário chegando, natal, ano novo. Putz, estragaria o fim de ano das duas.
Sempre achei a relação pai-filho uma tremenda sacanagem da vida. Quando eu era pequeno meu pai contava a infância e juventude dele em Suzano, grande SP, e toda vez que a gente passava no rio Tietê ele falava “eu nadava e pescava neste rio”. Eu olhava pela janela do Gordini II pra aquele rio fétido e ficava morrendo de inveja por não ter conhecido meu pai na infância dele. Minha mãe falava como era pegar pêra, uva, goiaba, laranja e mexerica no pé pra levar de marmita na escola. E como meu avô criava, matava e preparava os animais sem qualquer remorso. Também tinha raiva de não ter conhecido minha mãe quando era menina.
Outra sacanagem de ser pai/filho é que depois os pais se vão e a gente fica sem ter pra quem contar as novidades. A condição de filho é uma tremenda farsa!!! A gente participa só de um período da vida de nossos pais. Tem amigo que convive por muito mais tempo!
Minhas filhas ficariam sem o pai precocemente. Como tocariam suas vidas? Elas receberiam o seguro? Daria para garantir por algum tempo, mas e depois? Elas continuariam em São Paulo, ou mudariam de cidade para fugir desse bangue-bangue urbano? Ser pai é levar a preocupação para a eternidade.
O que seria do futuro da minha mulher? Como seriam seus dias após o enterro? Quem cuidaria dela? Por ter uma vida marcada por grandes perdas talvez reagisse de forma mais pragmática. Mas se ela chora até assistindo Bambi, seria um dilúvio de lágrimas?
Meus pais, no crepúsculo das vidas, pós 80 anos, como resistiriam à notícia da perda do filho caçula? Será que resistiram? Perder um filho é levar uma rasteira da vida. É uma traição com a natureza dos acontecimentos. É uma inversão na ordem cronológica da história. Filhos nasceram para durar mais que os pais, punto e basta e não se atrevam a mudar isso!
É pra você, Geraldo
Confesso que passada uma semana desse “evento” continuo muito assustado, com uma pressão constante no peito e a sensação de que a qualquer momento vou chorar horas a fio até expurgar esse fantasma do Tite morto que está dentro de mim. Ando pela rua assustado como se aquela bala ainda estivesse por aí, querendo me acertar. O nome disso é stress pós-traumático. Na minha turma a gente chamava de cagaço mesmo. E a natural depressão apenas pela ideia da minha morte pode ser só uma gota perto do tsunami de dor e frustração que vem na sequência. Um tiro que pode mudar toda a história de vida de várias pessoas.
Menos daquelas que deveriam olhar por nós, os moradores. Logo depois do meu assalto o Secretário de Segurança Pública de São Paulo foi demitido. Sabe o que isso muda? Nada! Porque não foi o filho do governador que teve sua vida nas mãos de um marginal. Não foi o pai do comandante geral da polícia que foi ameaçado de morte aos gritos de “deita ele, deita ele”. Não foi o filho do Secretário de Segurança Pública que esteve na mira de uma pistola automática.
Vivemos em uma monarquia, na qual os reis e monarcas estão protegidos por seus exércitos e a plebe está entregue à insignificância de suas existências. O governador e sua família estão a salvo em carros blindados, seguranças armados e um esquema próprio pago por nós. Assim como a família de qualquer autoridade monárquica desse reino chamado Brasil.
Eu me desespero quando vejo o governador, meu xará Geraldo, aparecer na TV com dados estatísticos sobre a violência. Afirma que o número de assassinatos por mil habitantes diminuiu 6,5%. Que a violência geral caiu 15%. Com todo perdão da palavra, estou cagando para esses números, porque na hora que um marginal aperta o gatilho é 100% do nosso filho que morre. É 100% do nosso pai que vai embora. É 100% da uma história que escorre pelo ralo.
Meus vizinhos querem contratar vigilância privada, armada, para nossas ruas. Sou contra, porque isso facilita as coisas pro Estado e Município. Quando a população decide pagar pela vigilância a categoria política pode usar a verba da segurança pública em campanhas políticas e mensalões para garantir a permanência no poder. E sei que esse texto vai suscitar vários protestos contra os sistemas legislativo, judiciário e executivo, mas não adianta nada. Eu ligo a TV e descubro que um marginal preso por assassinato já tinha passagem pela polícia por latrocínio, roubo, receptação e tráfico de drogas. E COMO ESTE SUJEITO ESTAVA SOLTO??? De que adianta meus vizinhos instalarem câmeras de vigilância se isso só serve para saber que aquele bandido é o Manézinho, a comunidade de Ximboquinha e que vai ficar seis meses na cadeia! É apenas mais um assassino identificado. Essas câmeras só servem para que os pais vejam como seus filhos foram assassinados de forma covarde e cruel. Quantas imagens de assassinatos apareceram recentemente na TV? Prenderam alguém graças a elas?
Não dá mais para aceitar que minhas filhas estão dividindo espaço nas ruas com pessoas armadas, criminosas e assassinas! Não é aceitável que parado ao meu lado, no semáforo, esteja um cara que cumpriu pena por latrocínio e está solto, armado e pronto pra matar de novo. Não dá!
Geraldo, meu xará, desça do alto do seu trono de Rei do Estado de São Paulo e olhai por nós, os moradores, agora e não na hora de nossa morte. Porque seu eu morresse naquele assalto era 100% do meu sangue que seria creditado na tua conta!
* Parte da letra “Soy loco por ti America” de Caetano Veloso.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. A pequena grande Triumph:...
. Prostatite final – Amor e...
. Prostatite parte 10: a vo...
. Prostatite 9: uma separaç...
. Prostatite parte 7: Começ...
. Prostatite parte 6: a hor...
. Prostatite 5: Sex and the...
. Prostatite 4: você tem me...
. Prostatite 3: então, qual...