(Kart é uma lição de vida... corporativa!)
Ainda no mesmo capítulo “como ser piloto” chegou a vez de deixar o lado técnico e comentar sobre algo que é impossível de ensinar: a sensibilidade. Não, não se trata de uma teoria romântica sobre a sensibilidade humana, mas sim a capacidade de interpretar tudo que o veículo transmite ao piloto.
É muito manjada a frase “moto (ou carro) e piloto devem formar uma coisa só”. Mas como ensinar isso? É o tipo de sensação que não se ensina de forma didática, mas apenas na base da quilometragem percorrida. Demorou quase um ano de corridas, treinos e muita ralação para eu entender o significado dessa fusão de piloto com máquina. Posso resumir da seguinte forma: quando o veículo está 100% acertado dá a impressão de não haver nada entre o corpo e o asfalto. É meio esquisito de explicar, mas é como se o piloto flutuasse a dois centímetros do chão sem perceber a existência de um meio motorizado colado no traseiro.
Se alguma coisa não vai bem, se o veículo está instável, se os pneus não aderem, se a relação de marchas está errada, se a posição de pilotagem está desconfortável a sensação é de estar mancando. Como se alguma parte do corpo não funcionasse direito. Ou como se tivesse uma pedra no sapato.
Até desenvolver a capacidade de identificar cada elemento do veículo o piloto precisa treinar, treinar e... treinar MUITO! Quando o piloto pensa que tem total conhecimento da máquina surge um elemento novo para desequilibrar e colocar a cabeça em parafuso. Costumo dizer que um piloto novato precisa de um ano para entender o veículo e as técnicas de competição. O segundo ano para tirar proveito disso tudo e o terceiro ano para decidir se será, ou não, um bom piloto ou apenas mais um no grid de largada.
Na minha temporada de estréia no kart tive muita ajuda do meu professor Waltinho Travaglini e dos pilotos mais experientes, inclusive o Ayrton Senna, sempre disposto a ensinar e muito atencioso com os novatos. E sempre recorria aos mais experientes quando eu mesmo não conseguia desvendar algum problema.
Na metade da temporada de 1977, minha estréia, cheguei no kartódromo de Interlagos com meu kart exatamente igual à etapa anterior. Mesma pista, mesma condição de tempo, não precisava fazer nada, apenas acertar a carburação e treinar. No primeiro treino livre o kart estava muito instável. Saía de traseira, de frente e meus tempos de volta estavam dois segundos pior do que na corrida anterior. Fiquei desesperado porque não fazia sentido: não tinha mexido em nada entre uma corrida e outra, apenas lavei o kart e guardei!
Comecei uma série de ajustes na bitola dianteira, na manga de eixo, barra estabilizadora traseira, pressão de pneus e um mundo de coisa. Nada de melhorar o tempo! Pelo contrário, quanto mais mexia, mais piorava! Eu teria um intervalo de uma hora antes do treino classificatório. No kart a tomada de tempo é feita em apenas três voltas: o piloto tem uma volta para aquecer os pneus e duas para fazer a cronometragem.
Cheguei no Ayrton, como sempre, e pedi para ele me ajudar. Nem precisou mais de que dois segundos para dar o veredicto: pneus!
- Mas como? Esses pneus ainda não estão gastos! Protestei.
- Não estão gastos – ele respondeu – mas estão VELHOS!
Foi assim que descobri que pneus ficam não apenas gastos, mas também velhos!
Liguei para meu irmão mais velho e pedi para ele pegar o talão de cheque e correr pra Interlagos porque eu tinha menos de 40 minutos para comprar e trocar os pneus. Foi como o filme Missão Impossível! Fui na loja em frente ao autódromo, já com as quatro rodas debaixo do braço, pedi para montarem os pneus novos e ainda escolhi uma versão mais macia (naquela época tínhamos apenas três compostos: duro, médio e macio). Quando meu irmão chegou foi o tempo de pagar (com dinheiro dele, claro!) e correr pro box pra montar tudo no kart e sair para as voltas de classificação.
Mas tinha um erro fundamental: eu havia alterado todas as regulagens do kart e não dava tempo de voltar tudo como estava antes. Aliás, aqui vai uma dica: todo bom piloto preciso anotar cada alteração que faz e depois ser capaz de recuperar a regulagem anterior para não perder a referência.
Saí com os pneus novos e tive uma volta para tirar a cera do pneu, a segunda volta para aquecer e a última pra classificar. Fiz um temporal de 59 segundos, mas naquela época a minha categoria tinha 26 caras largando. Era uma briga de foice no elevador. Mesmo melhorando em quase seis segundos eu fiz o 10º tempo no grid.
Teria cerca de 20 minutos antes da largada e corri para voltar a regulagem do kart para a posição que estava antes do meu ataque de desespero. Graças ao procedimento de anotar tudo, consegui voltar as regulagens para a posição anterior e fui pra classificação.
Na corrida larguei bem, perdi muito tempo para ultrapassar os que estavam à minha
frente e terminei de novo em 4º lugar.
A partir desse dia aprendi mais uma lição: ser mais racional e menos emotivo. O bom piloto precisa analisar os problemas partindo do mais simples para o mais complexo, sempre! Como eu não conhecia as reações do pneu velho não sabia onde estava o problema. Se eu tivesse agido de forma racional e menos emocional não passaria por todo esse sufoco. Foi uma atitude irracional me desesperar e alterar o kart todo, já que era o mesmo kart que eu tinha corrida 15 dias antes e terminado em 4º lugar. A postura correta de um piloto racional é PENSAR antes de agir. Se o kart não entortou, não caiu, não foi usado desde a corrida anterior não haveria motivo para estar com problemas no CHASSI! O meu lado emocional foi mais forte e quase me custou uma corrida melancólica. Na corrida virei 58 segundos e poderia ter ficado em segundo se tivesse largado nas primeiras filas.
Essa lição foi para toda a vida. Hoje, sempre que estou diante de qualquer problema, seja profissional ou pessoal, procuro partir da solução mais simples para depois a mais complexa. Ninguém troca um disjuntor quando queima uma lâmpada, mas se começar a queimar TODAS as lâmpadas aí o problema pode estar na caixa de luz.
Pena que no mundo corporativo os executivos não copiam esse modelo de comportamento. Vejo gerentes e diretores buscando soluções complexas para problemas tão simples que dá vontade de chegar no cara e aconselhar:
- Meu amigo, comece a correr de kart, por favor!
(imagine 26 caras largando... eu sou o nº 17)