Devido ao caráter viral que se tornou o meu texto "O tigre, o menino e o trânsito", inesperado e até assustador, confesso, estourou a capacidade de comentários no provedor português Sapo. Por isso abri esse espaço extra para responder os tópicos mais comentados, pedir desculpas por não me apresentar, contar um pouco da minha atividade de convidar os leitores a ler os outros textos e até meu livro.
Pela ordem de chamada!
Deixa eu me apresentar: meu nome de batismo é Geraldo Simões, mas fui desde o nascimento rebatizado com o apelido Tite, por recomendação do meu pai, porque achava simplesmente Geraldo um nome grande demais para um ser tão pequeno. Tenho 55 anos, sou jornalista desde os 20, motociclista desde os 12 e viciado em escrever desde a época das Olivetti Lettera 32. Fui fotógrafo, redator, editor, revisor, professor de Redação e Língua Portuguesa na Fundação Cásper Líbero e desde 1999 me dedico a ministrar cursos de pilotagem para motociclistas. Tenho duas filhas do primeiro casamento, ambas com dupla nacionalidade (brasileira e alemã), que viveram a experiência de morar na Alemanha. Por causa delas mudei totalmente o meu conceito sobre educação, ensino, respeito e amor.
Os pontos mais comentados do texto foram:
- Quem sou eu pra escrever com tanta propriedade? Está respondido lá em cima, mas queria dizer que não sou especialista em ensino, mas estudei muito o tema porque vi-me dando aula para alunos que tinham quase a minha idade, acompanhei muito de perto o vida escolar das minhas filhas, fui casado com uma professora especialista em educação infantil, tive uma família equilibrada e meus pais vivem até hoje. Agradeço aos especialistas que me escreveram corrigindo alguns aspectos e conceitos a respeito de educação e ensino e lamento não poder responder a todos.
A exemplo da maioria dos meus textos eu escrevi este em pouco mais de meia hora e não aprofundei em nenhum conceito específico, porque para meus leitores habituais esses temas são exaustivamente conhecidos.
- O julgamento: queria deixar muito bem explicado que em momento algum me ocorreu julgar, mas apenas usar o "acidente" como exemplo do comportamento humano. Mesmo assim me assustei com a reação quase natural de as pessoas julgarem e sentenciarem os envolvidos. Esta é uma faceta do comportamento moderno criado a partir do excesso de exposição às redes sociais: a necessidade quase vital de achar um culpado. Como jornalista, conheço a ética da profissão que nos impede de julgar até um réu confesso antes de um juiz proferir a sentença. Por isso você lê sempre nos jornais que Fulano é SUSPEITO de...
- Patriotismo x conhecimento: também fui alvo de algumas demonstrações de todo tipo de preconceito. Se eu citei em vários pontos a expressão "os brasileiros" é porque vivo aqui, convivo diariamente com brasileiros e estudo o comportamento de motoristas há mais de 30 anos. Gosto do Brasil, mas tenho muita ressalva com relação ao comportamento social dos brasileiros. Não morei no exterior, mas como jornalista já visitei mais de 30 países e participo regularmente de fóruns e trabalhos sobre mobilidade urbana, que tem como ponto crucial o comportamento humano. Os exemplos que dei sobre EUA e Áustria não me contaram, eu vi pessoalmente e foi apenas dois exemplos. Claro que em todo lugar do mundo existe gente mal intencionada, mas o que pretendo chamar a atenção é que no Brasil estes estão aumentando exponencialmente e temos de encontrar a raiz desse crescimento, combatê-la e reverter essa tendência. Para mim o foco principal é na formação do caráter, que é um conceito que vem de casa e não apenas da escola.
- Alguns comentários eu simplesmente rapei fora porque eram ofensivos, preconceituosos, sem-noção ou apenas tinham a intenção de causar polêmica. Fui chamado até de nazista!!!
- A Bíblia, Adão, Eva e a religião: não sou um religioso praticante, mas cresci em uma família católica. Na minha primeira faculdade estudei Teologia e gostei tanto que depois continuei por conta própria. Alguns teólogos mais experientes corrigiram o texto e agradeço a todos pela disposição. Aos fanáticos e mais exaltados queria lembrar que Adão e Eva não existiram, assim como Papai Noel e Saci Pererê, portanto não percam seus preciosos tempos comentando o que eles fizeram ou quiseram fazer porque a própria Bíblia é uma grande ficção e recebeu várias interpretações, foi escrita cheia de questionamentos éticos e se eu fosse o editor teria cortado pelo menos 70% de texto!
- A passividade das testemunhas: um dos itens mais comentados foi com relação ao rapaz que fez a filmagem e o motivo de ele não ter interrompido a ação do garoto, chamado a atenção etc. Bom, aqui mais uma vez eu chamo a atenção para a inversão de valores que estamos vivendo, especialmente no Brasil. Por que no Brasil? Primeiro vou contar como funcionava na Alemanha, durante a época que minhas filhas moraram lá. Cada cidadão adulto se preocupa consigo e com quem está em volta, seja no trânsito, na empresa, na escola etc. Se uma criança se coloca em risco, o adulto mais próximo intervém, independentemente da reação do pai ou tutor mais próximo. O mesmo ocorre com relação aos idosos, sempre tem alguém ajudando e orientando, mesmo quando ninguém pede ajuda. Eu vivi isso pessoalmente e posso atestar que esse comportamento é reflexo de uma história de 2.000 anos vida em sociedade. No Brasil a vida em sociedade existe há pouco mais de 100 anos, sendo que nos últimos 50 deu um salto quantitativo exponencial. Ainda engatinhamos nessa coisa de viver em sociedade e é natural que surjam problemas. Um deles é o egoísmo expresso nas atitudes mais simples e que aparece muito mais claramente no trânsito. Nos mais de 30 países que visitei - a trabalho - nunca vi um adesivo no carro com frases como "Deus deu a vida para que cada um cuide da sua"; ou "Este carro é meu, foi pago por mim e ninguém vai me dizer como dirigir(sic)". Estas frases explicam o que eu quis dizer com a deterioração da vida em sociedade.
Por isso eu entendo a reação das pessoas. Existe um medo natural de alguém simplesmente ser agredido se chamar atenção ou até usar a força para impedir que uma criança se acidente. Eu tenho certeza que esta seria a reação da maioria dos pais, por causa dessa inversão total de valores.
Em suma, nos países com uma longa história de relação social existe uma espécie de auto-regulamentação, um cuida do outro, e isso não é motivo de briga. Enquanto no Brasil uma simples advertência pode acabar em crime, porque não se admite a interferência externa. Já escrevi sobre isso aqui mesmo e uma simples busca por palavras-chave como paradigma, educação, trânsito pode resultar em vários textos sobre o tema.
Recentemente um ciclista filmou a reação agressiva de um motorista que estacionou de forma irregular na ciclovia. Foi um exemplo de como a convivência social está ruindo e isto tem um nome: sociopatia, uma reação quase doentia em relação à sociedade, como se o mundo todo conspirasse contra aquele indivíduo.
Muito conceito escrito naquele artigo foram citados superficialmente, claro, porque é uma coluna publicada em alguns sites e a internet hoje exige textos curtos (mais um resultado dos tempos atuais: ninguém tem saco de ler nada com mais de 5.000 caracteres). Não é uma tese de doutorado. Portanto não cobre aprofundamento deste ou daquele conceito. Neste blog - que teve 150.000 visitantes pela primeira vez! - tem mais de 1.000 artigos. Fique à vontade para pesquisar os temas, ler e discutir quanto quiser. Recomendo alguns:
http://motite.blogs.sapo.pt/o-medico-e-o-monstro-109333
http://motite.blogs.sapo.pt/a-criminalizacao-da-vitima-108940
http://motite.blogs.sapo.pt/106621.html
E se você gosta de moto e quiser adquirir meu livro O Mundo É Uma Roda, basta escrever para tite@speedmaster.com.br aqui mesmo tem várias crônicas do livro.
Obrigado pelos comentários
Tite
Escola não é a resposta para tudo!
A eterna luta para descobrir como melhorar a convivência no trânsito.
Ainda persiste o conceito equivocado que educação de trânsito dever ser matéria nas escolas desde o primeiro grau. Parece que a civilização moderna decidiu que a escola deve substituir toda ação educacional vinda da família e da sociedade. Como se colocar os filhos na escola resolvesse todos os problemas de formação, tanto intelectual quanto de caráter.
Em uma conversa sobre trânsito percebi que as pessoas ainda confundem conceitos elementares e isso pode explicar porque tanto se discute, mas nada muda. Portanto, antes de mais nada vamos rever alguns destes conceitos, pura e simplesmente no sentido científico e sem dar a mínima para o que se lê nas redes sociais, verdadeiras difusoras de preconceitos.
A começar pela Cultura – certamente é o conceito que gera a maior das confusões porque ganhou um significado distorcido. É comum ouvir nossas tias comentando “ah, fulano é uma pessoa cheia de cultura...” e assim o verbete “cultura” virou sinônimo de conhecimento, mas não é! Cultura é toda forma de expressão que uma sociedade lança mão para interpretar, mudar e se adaptar ao meio em que vive. Quando se fala em “cultura primitiva”, isso significa as pinturas rupestres, os utensílios, vestimenta etc. Hoje em dia cultura pode ser entendida como as manifestações artísticas, a moda, literatura, etc. Ou seja, não existe alguém com mais ou menos cultura do que ninguém! Cultura não é um conceito mensurável pelo sistema métrico. Até animais tem cultura!
A confusão se dá com o conceito de “conhecimento”, que esse sim é individual e depende exclusivamente do interesse que cada um tem em saber mais sobre o mundo que o cerca. Mas que também independe da formação ou grau de instrução, como escrevem nas fichas cadastrais. Pode-se encontrar pessoas com uma enorme bagagem de conhecimento e que jamais sentaram em um banco de escola. Da mesma forma que conheço catedráticos incapazes de conhecer a realidade que está um centímetro ao lado do seu ramo de atividade.
A formação da personalidade também depende do conceito de Inteligência. É mais uma característica que causa a maior confusão, porque se confunde com cultura e conhecimento. A inteligência é a capacidade individual de resolver problemas. Tem uma grande carga genética, mas também sofre influência do meio onde se vive. A inteligência sim, pode ser medida por meio de testes, que determinam o quociente de inteligência, famoso Q.I. e pode ser melhorado por meio de exercícios. Da mesma forma que atletas melhoram o desempenho por meio de treinos, a inteligência também pode ser melhorada com o treinamento constante do pensamento.
Uma das formas de melhorar a inteligência é estudando e aí entra a formação. Esta sim está ligada ao tempo e a qualidade dedicada aos estudos, que pode ser o estudo formal, os cursos pós-graduação ou o interesse pessoal. Também pode aumentar com o estudo frequente. Os verdadeiros sábios não param de estudar. Outra das confusões conceituais que se pratica é substituir formação por educação.
O conceito de educação pode ter nada a ver com frequentar escolas. Falar em educação alimentar, por exemplo, não remete à ideia de uma escola de gastronomia. Educar é sinônimo de seguir uma orientação, um regime. Infelizmente tornou-se sinônimo de ensino a ponto de hoje existir um ministério da Educação, quando na verdade dever-se-ia chamar ministério do Ensino. É graças a essa confusão que hoje a sociedade acha mesmo que a escola é a resposta para todos os males existenciais. Violência é falta de escola. Trânsito agressivo é falta de escola. Desemprego é falta de escola. Corrupção é falta de escola. Mas não é!
Escola não resolve os problemas de falta de educação, porque educação, como dizia minha vó portuguesa, vem de berço. Educação se aprende em casa, no convívio social. Vou dar um exemplo bem simples: um dos meus vizinhos deixa os filhos a maior parte do dia com as empregadas domésticas, que tem histórias de vida, formação e a educação delas. Elas gritam diariamente uma com a outra e eu ouço claramente as crianças imitando esse comportamento entre elas. Que tipo de adultos estas crianças serão?
Quando se fala em trânsito, as autoridades tem uma dificuldade quase irracional em entender que não passa de um convívio social. Como tal, a convivência saudável dependerá muito mais dos conceitos de educação e inteligência do que ensino e formação. Então por que raios insistem em enfiar “educação de trânsito” no currículo escolar? É uma BURRICE! Decorar leis só vai resolver UMA das necessidades que é a formação, mas não desenvolve a EDUCAÇÃO! Essa quem promove são os pais e o convívio social.
Quem chuta a cabeça de uma pessoa desmaiada na arquibancada de um estádio de futebol não precisa de formação, precisa de reeducação social. Quem dirige embriagado não precisa decorar os artigos do Código Brasileiro de Trânsito, precisa de reeducação social. E quem vai promover essa reeducação social? Não será a escola, porque esta já nem dá conta de garantir a formação acadêmica e os professores perderam há muito tempo o status de admiráveis. A única forma de promover a reeducação social é valorizar o ser humano. É parar de incentivar personalidades pífias como ex-BBB e começar a enobrecer o caráter. É parar de divulgar os salários milionários de atletas semianalfabetos ou apresentadoras sexys e cobrar da sociedade a volta do ser humano ao pedestal de animal racional – e ser social.
É desanimador ver que as pessoas continuam dirigindo falando no celular, porque a sociedade deixou de se importar com o todo e o Homem voltou a ser o centro do universo. Enquanto os pais continuarem a entregar a educação dos filhos à escola e aos empregados, sem olhar o que acontece debaixo do próprio teto, vamos caminhar felizes rumo ao abismo social. E ainda tem gente que perde tempo em fóruns de “como melhorar o trânsito”... Parem de querer melhorar o trânsito e comecem a trabalhar para melhorar o ser humano!
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