(Obra do Aleijadinho. Foto: Tite)
Amigos internautas. Sábia invenção que nos poupou de envelopar, selar e levar cartões até a agência do Correio. E mais, podemos nos dar o sabor de escrever além das frases feitas e prosaicas. Neste Natal lembrei de um livro alemão, onde o autor convidou vários escritores modernos para contarem uma história de natal. Algumas ficaram muito marcadas na minha memória e minha primeira idéia era simplesmente dar um copy/paste e resolver meu cartão de final de ano. Mas lembrei que há alguns anos eu vivi minha própria história de Natal e fui escarafunchar neste HD para resgatá-la. Aqui está ela, escrita em 1989. Espero não ter sido muito piegas e preparem o saquinho, porque é uma looooonga história.
E, para não fugir aos costumes:
Feliz Natal e um novo ano cheio de realizações
Tite
Uma história de Natal
É um hábito antigo nas empresas. Na véspera do Natal, o departamento de recursos humanos distribui brinquedos aos funcionários que têm filhos. Usando da mais complexa pedagogia e lógica, os filhos meninos ganham carrinhos ou bolas. Às meninas são reservadas bonecas, panelinhas, Barbies, Xuxas e outras. Na ocasião, eu já tinha as duas filhas, que foram contempladas com um conjunto formado por boneca mamãe, com bebêzinho, portanto duas bonecas em uma. De plástico.
Filhos de mães antroposóficas não brincam com coisas de plástico. Para os antropósofos são muito artificiais. Todos. Mães, filhos e plásticos. Não poderia jamais aparecer com aquele presente em casa, sob risco de ser esconjurado da doutrina antroposófica por toda eternidade. Era um problema a mais para resolver neste natal de 1988.
O outro problema ainda não tinha digerido a ponto de pensar numa solução. Poucos dias antes do Natal, fui convocado para uma reunião na Quatro Rodas, onde exercia o cargo de editor-assistente, para receber a notícia de minha demissão.
A primeira demissão é difícil de engolir. Principalmente quando foi anunciado o motivo:
- Seu texto não se encaixa no padrão Abril.
- Tudo bem, eu posso piorar, se preferirem.
Não entenderam a ironia e não preferiram. Recebi um bilhete azul, defenestrado, butato via, demitido. Não foi tão ruim. Recebi uma bela grana da indenização e comprei uma moto nova, que usaria para correr o campeonato Paulista em 89.
Mas e a boneca?
Saí do prédio da Abril, com a boneca no banco traseiro do carro. No primeiro semáforo dei com uma cena cada dia mais integrada ao cenário urbano: meninos de rua. Motoristas fecham a janela, outros dão uns trocados. Outros, criativos, dão balas (doces). Há os que gostariam de dar balas (de chumbo), mas não podem.
Na minha janela vieram duas meninas. Praticamente da idade das minhas filhas. A mais velha tinha os joelhos esfolados e sujos, cabelos longos e sujos, o rosto magro e sujo, a pele manchada e suja. O futuro incerto e sujo. A mais nova segurava a maior pela mão, como se fosse seu único porto seguro na Terra, seu píer, sua tábua de salvação. Ela obedecia a irmã mais velha como se fosse a diretora neste teatro insano que tem as ruas como cenário, os motoristas como platéia e a miséria como coxia. A pequena sugava uma chupeta e o nariz escorria a eterna coriza de quem vive muito perto dos escapamentos.
Não tinha nada para dar. Lembrei das bonecas.
Quando a mais velha pegou o pacote nas mãos sujas seus olhos se acenderam como duas luzes, fracas, mas brilhantes. A caixa tinha tampa transparente e podia-se ver as bonecas, com todo aquele colorido que enfeitam caixas de bonecas. Era um coup de theâtre naquela rotina de esmolas.
Não tive tempo de ver o resto. Tocaram a buzina da intolerância e fui embora.
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Em janeiro voltei à Abril para receber o que faltava da indenização. Caminhava pela calçada quando vi duas meninas vindo na minha direção. Estavam de mãos dadas. Eram elas. Sempre unidas por aquele cordão umbilical da verdadeira e incondicional fraternidade. Nas outras mãos traziam as bonecas. A mais velha ficou com a boneca maior. A pequena segurava o bebê boneca bem próximo ao rosto. Procurei não olhar muito, pois jamais imaginei que pudessem me identificar. A mais nova olhou-me bem nos olhos. Ela ficou olhando, olhando e depois de cruzarmos eu me virei e vi as duas paradas, olhando para mim. A pequena sorriu, tentando equilibrar a chupeta entre os dentes. Um sorriso contido, ingênuo. Um sorriso único, autêntico. A expressão da mais profunda gratidão que já recebi por um presente de Natal.
Nunca mais as vi.
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Esta é a segunda vez que escrevo esta história. A primeira ficou muito melhor, mais cheia de descrições, mais completa. Só que a perdi em algum HD qualquer e tive de reescrevê-la. Tudo bem.
Toda vez que me lembro daquela manhã, na calçada da Abril, me vem exatamente a mesma emoção, que começa no abdômen e espalha pelo corpo. Até hoje lembro daqueles quatro olhinhos e, principalmente, do sorriso cúmplice da menina menor. Ela sabia quem eu era. Você nem imagina como é emocionante ver brotar o brilho nos olhos de uma criança. Crianças de rua não se emocionam facilmente. Elas são empedernidas pela miséria. Aprenderam a controlar o desejo para não alimentar frustrações. São ingênuas e maliciosas. São autênticas. São carentes. De tudo: desde uma boneca, que para outra criança seria apenas mais uma, até comida, material mais essencial à existência do que qualquer brinquedo. Por isso a antroposofia funciona tão bem com crianças ricas. Elas já têm tudo, conseguem digerir um pouco de filosofia. Pobres não precisam filosofia. Precisam comida, roupa, carinho, brinquedo. Crianças pobres numa cidade como São Paulo precisam daquilo que filosofia nenhuma seria capaz de lhes oferecer: a infância.
Para estas crianças, escrevi:
Abandonadas
Olh’elas de novo nas ruas
rasgadas, suadas, nuas
Da vida só levam trocados,
pobres anjos abandonados
Queriam muito ser suas
juntar-se também às tuas
Casa só têm a esquina,
respiram ar-gasolina
E aqueles que devem escusas
voltam para suas reclusas
e dormem o sono-morfina.
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