(Mandacaru, quando flora lá na serra... Foto: Tite)
Alguns anos atrás o Ricardo Ribeiro, na época assessor de imprensa da equipe Petrobras de Rally, me procurou com uma missão pra lá de honrosa: escrever uma história real que pudesse integrar o livro criado por ele e Klever Kolberg contando os bastidores dos ralis. Imediatamente lembrei de uma dúzia delas, afinal eu passara alguns 15 anos cobrindo rali, enduro e raids pelo Brasil e exterior.
Na primeira consulta do Ricardo eu tinha um bom espaço e decidi escolher duas histórias que ilustravam bem o que representava os bastidores das competições off-road, mas que não falava de motos, carros ou pilotos. Uma delas, a que foi publicada, foi uma cena que presenciei em Lima, no Peru, quando uma patricinha metida à besta tentou humilhar um fotógrafo local. A história é meio comprida e quem se interessar está no livro “Rali – abrindo os caminhos do Brasil” (mas acho que está esgotado).
Só pra resumir, um fotógrafo peruano, com uma máquina bem velha, roupas puídas e um velho chapéu fez as fotos do prólogo do Rally dos Incas, ampliou em formato 12x18 cm, preto&branco e foi no dia seguinte oferecer aos pilotos e equipes por algo como 10 dólares cada. Os pilotos verdadeiramente profissionais compraram, como fez o falecido e admirável Fabrizio Meoni. Outros nojentos não percebiam que aqueles 10 dólares eram o mínimo que podiam deixar a um cidadão que vivia num país caindo aos pedaços, violento e doente como era o Peru de 1989.
Foi a patricinha australiana que deu a maior mancada, primeiro pechinchando o valor e depois ironizando o fotógrafo, a máquina dele, as roupas e, claro, o país. Só que eu estava a meio metro ouvindo tudo em silêncio, até que minha alma latina explodiu, meti o dedo na cara dela e soltei o verbo no melhor estilo Viva Zapatta:
- Escuta aqui, gringa, você pode sacanear com essa gente, porque daqui 10 dias vai entrar num jato e voltar para seu país chique e rico, mas esse cara vai continuar aqui desse mesmo jeito, com essa mesma roupa, a mesma máquina fotográfica e a mesma falta de futuro. Então paga logo e não enche o saco!
Por motivos óbvios a história publicada no livro não foi exatamente nestes termos
A segunda história não foi publicada por falta de espaço, porque o livro recebeu um novo projeto gráfico e também seria biligue, o que custou um pouco de textos deletados. Não achei o original nessa bagunça que chamo de home-office, mas tenho uma teoria que tudo escrito pela segunda vez fica menor e melhor, então aqui vai a história, devidamente condensada e revisada.
Numa das primeiras edições do rali Piocerá (ou Cerapió) eu acompanhei os pilotos com uma moto cedida pelos organizadores. Acho que fui um dos primeiros jornalistas a cobrir enduros e ralis de dentro, passando pelos mesmos sufocos e perigos. Quando se tem 25 anos de idade e uma paixão doentia por motos esse emprego era tudo que um jornalista poderia sonhar: ser pago para se divertir (muito) e pilotar (mais ainda)! E ainda por cima podia correr junto com os outros pilotos sem gastar um centavo!
Eu já conhecia boa parte do Nordeste, mas como bom turista só a parte que faz fronteira com o oceano Atlântico. Nunca tinha mergulhado no sertão pra valer. Então foi um choque quando viajei pelo interior do Ceará e maior ainda do Piauí, na época o Estado mais pobre do Brasil. Todas as aulas de sociologia e antropologia pareceram conto da carochinha perto da realidade cruel da uma área tão seca que só cresce coisa com espinho.
Espinhos tão grandes que furavam os pneus das motos! Bendita hora que inventaram o protetor de mão nas motos de trilha, porque em determinados trechos tínhamos de passar tão perto dos mandacarus que um vacilo e a gente virava almofada de alfinete.
Em determinada altura olhei na planilha e estava escrito “Paisagem Lunar”. Não entendi até chegar na região mais abandonada que vi na vida. Uma aridez que nem Graciliano Ramos seria capaz de descrever. Nem a lua é tão vazia...
Depois de alguns litros de água de côco parei pra fazer um pipit-stop e quando estava lá, reduzindo um pouco da aridez da região, surgiram duas crianças. Do nada! Olhei em volta e não vi nenhuma casa. Seria miragem? Seres das profundezas?
- De onde vocês saíram? Perguntei.
- Daquela casa ali, ó! E apontaram para um vazio que confundia minha vista até que identifiquei uma casa de adobe e cobertura de palha.
Do alto da minha ignorância sulista não resisti a fazer a pergunta que deixaria meu professor de sociologia roxo:
- E do que vocês vivem? O que vocês comem?
Tava na cara que foi uma pergunta idiota, por isso eles baixaram os olhos e responderam um muxoxo misto de vergonha e resignação:
- Feijão, tapioca e farinha.
Já estava me odiando pela pergunta sem noção quando levei outro susto. Por trás de um enorme mandacaru saiu um senhor bem negro, bem velho e bem encurvado. Pôs-se de cócoras na beira da estrada pra ver as motos passarem e puxou assunto:
- É carreira?
“Carreira” é como alguns nordestinos chamam corrida.
- Sim, é uma carreira.
- E vem de onde?
- Teresina!
- E vão pra onde?
- Fortaleza!
- Ave Maria, mas é muito chão!
Ele perguntou, eu respondi e tudo voltou ao silêncio de antes, até que mais uma vez fiz uma pergunta típica sulista:
- Aqui é sempre seco assim?
O preto velho quase nem me olhou. Levantou com dificuldade, olhou aquela paisagem toda em volta e meio sorrindo respondeu:
- Nãããão, quando chove isso fica tuuuudo verde.
Quando ele disse “tuuuudo” fez questão de levar a mão de um lado a outro, como se varresse todo o infinito que só existia nos olhos dele, porque na minha visão não tinha uma folha verde num raio de muitos quilômetros.
Então fiz a mais idiota das perguntas:
- E quando vai chover?
Ainda sem me olhar e sem sorrir ele encerrou com aquela resignação de quem passa a vida esperando:
- Ah, meu filho, isso só Deus sabe...
Montei na moto e fui embora da “paisagem lunar”.
Em vários momentos da minha vida pensei nesse homem. Principalmente quando tudo parecia seco e sem vida. Várias vezes tive vontade de desistir, de jogar a toalha diante de dificuldades tão efêmeras. Quantas noites passei em claro ruminando problemas tão mesquinhos. Momentos que olhei para o horizonte sem nenhuma folha verde e a esperança escorria pelos meus dedos como água. Nessas horas é só lembrar daquele senhor, cuja única certeza da vida é a esperança.
Quando eu achava que encerraria o ano de 2009 numa seca de fazer inveja ao deserto do Kalahari, com perspectivas bem áridas veio a chuva e 2010 será o ano da colheita.
Pois espero que em 2010 vocês todos não abandonem a esperança. Porque quando chove fica tuuuudo verde! Se Deus quiser.
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