Sexta-feira, 18 de Agosto de 2017

Indian Motorcycle comemora o legado de Burt Munro em Bonneville

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Deserto de Bonneville e a Indian Scout atual. 

Quem me conhece e segue sabe que não sou um publicador de press-releases. Mas esse é inevitável por vários motivos: trata-se de um dos filmes mais icônicos sobre o amor pela moto já produzido; tem uma história que transcende o motociclismo e é uma lição de vida, tem fotos de qualidade e já veio bem escrito, tanto que não mexi uma vírgula. Obrigado Indian, por me presentear com esse material. 

A memória de Burt Munro ganhou mais uma notável referência no deserto de sal de Bonneville. O incansável piloto, imortalizado por Anthony Hopkins no filme “Desafiando os Limites” (The world’s fastest Indian), foi relembrado pelo seu sobrinho neto Lee Munro, que acelerou uma Indian Scout 2017 modificada exatamente 50 anos após o histórico recorde mundial em 1920.

O objetivo da primeira fábrica americana de motocicletas era abrir o 69ª. Bonneville Speed Week com um tributo a Burt. Reproduzir a cena principal do filme sob o céu do deserto de sal mais famoso do mundo e quebrar o recorde de Burt de 296 km/h. Lee impressionou a equipe alcançando os 299,99km/h.

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Lee Munro alcançou 299,99 km/h. 

Para tornar o tributo ainda mais inesquecível, a Indian Motorclycle exibiu o filme no mesmo lugar em que ele foi feito. O diretor do filme Roger Donaldson, o filho de Burt e seu sobrinho neto Lee se emocionaram conversando sobre o “making of”, sobre Munro e o impacto que suas conquistas tiveram sobre a Indian e sobre o motociclismo em geral.

"Eu vi o filme inúmeras vezes, mas assisti-lo com os participantes do Speed Week, a família Munro e o diretor do filme em Bonneville , foi uma experiência surreal", disse Reid Wilson, Diretor de Marketing da Indian Motorcycle. "Foi uma maneira especial de honrar Burt e cumprimentar os esforços de Lee Munro e nosso racing team “Spirit of Munro” nesse fim de semana". 

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Momento de emoção: ver o filme onde ele foi produzido. 

Desafiando os Limites

Apaixonado por velocidade, o neozelandês Burt Munro levou 40 anos para deixar sua Indian Scout 1920 Streamliner imbatível. Sem recursos, ele mesmo fabricava muitas peças e até as ferramentas de trabalho. Em 1967, ele conquistou o recorde mundial de velocidade em Bonneville na categoria de motos até 1.000 cm³, alcançando os 296km/h. 

Meio século depois, a moto chamada de “Spirit of Munro Scout” teve ajuda de uma equipe afiada de engenheiros e muita determinação de Lee.

Ele fez suas duas primeiras corridas num trecho curto de oito quilômetros, resultando em seu melhor desempenho no fim de semana com 307,83 Km/h (191,28 mph) e uma corrida não computada devido a um erro técnico do marcador de tempo. 

No dia seguinte, Lee e a equipe fizeram mudanças na motocicleta, resultando em 299,99 Km/h (186,41 mph) em sua única corrida no dia.

"Pilotar uma Indian Scout modificada no mesmo deserto de sal que o meu tio avô Burt pilotou será para sempre uma das minhas experiências mais queridas. Estou ansioso para futuras corridas com meus colegas de equipe e amigos da Indian Motorcycle", conta Lee. 

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Deserto de sal de Bonneville. 

Bonneville 

O cenário bucólico do grande lago de sal no Estado De Utah (EUA) é quebrado, durante o verão, quando suas águas rasas se evaporam e formam um imenso deserto. O branco, quase infinito, dá lugar a multidões e veículos de todos os tipos em busca das maiores velocidades em terra. 

Com uma pista principal de 12,874 km, anualmente é procurado por uma legião de aficionados por velocidade vindos do mundo todo. O evento principal é a Bonneville Speed Week, que acontece desde 1948, sempre no mês de agosto. Basta pagar uma pequena taxa e partir para a quebra de recordes e superação dos limites das máquinas. 

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Quinta-feira, 10 de Agosto de 2017

É uma BMW! Teste da BMW G 310R

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Suspensões bem calibradas para curvas. (Foto: Divulgação) 

Saiba como é a nova, pequena e estilosa BMW G 310R 

Antes de entrar no produto vamos dar uma olhada no cenário atual com relação a veículos motorizados. Não é novidade que os motores a combustão estão destinados a objetos de coleção. Todos os fabricantes estão cientes disso a ponto de investirem bilhões nos motores elétricos. Só que não trata apenas de eleger a queima de combustível fóssil como vilã, o futuro aponta para uma nova visão sobre a necessidade de veículos individuais. O que a BMW G 310R tem a ver com isso? 

Vamos ver outra cena. No ano passado levei minha filha mais velha (30 anos) para um evento de motociclistas. Comentário dela: “pai, mas só tem velho!”. Eu incluso, claro. Ela só externou outra coisa que a indústria de moto, especialmente as marcas BMW e Harley-Davidson já perceberam: essas marcas seculares atraem pessoas igualmente seculares. Por isso a HD correu para lançar uma 500cc e a BMW investiu um caminhão de Euros para criar e lançar esta 310: estão de olho no público jovem, porque além de fidelizar a marca desde cedo os jovens vivem mais.

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Motor de 34 CV inclinado para trás. 

Só lamento que eu não tenha 18 anos hoje, porque essa BMW G 310R seria meu pesadelo de consumo. Tem um estilo muito bonito, tecnologia derivada das pistas de motocross, acabamento alemão, desempenho esportivo e o charme irresistível das três letras: B, M e W. Só achei estranho a ausência de algum modelo na cor azul, só tinha as opções branco e preto. 

Motor inovador

Vou começar pelo motor que é inédito no Brasil, pelo menos oferecido em série. Trata-se de um monocilindro de exatos 313 cm3, com duplo comando no cabeçote e quatro válvulas. Segue o cardápio dos modelos desta categoria: arrefecimento líquido, injeção eletrônica e potência de 34 CV a 9.500 RPM. Destaque para a potência específica de mais de 100 CV/litro para uma moto de apenas 158 kg (seco com 90% de gasolina). 

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A versão azul também está disponível. 

Ué, onde está o ineditismo? Na posição! Pena que o (fraco) material de divulgação da BMW Brasil não traz nenhuma imagem da moto desmontada nem do raio-x do motor, mas ele é invertido, ou seja, o cilindro é inclinado para trás, com a admissão colocada na frente e o escapamento atrás do cilindro, onde nas outras motos seria a injeção. 

Os benefícios desta configuração são:

- O sistema de alimentação fica mais linear, sem ângulos nem curvas, acelera o fluxo de admissão.

- Com o escapamento saindo direto para trás reduz o peso e o tamanho do tubo, além de tirar de perto do radiador. A curva do escapamento (ponto mais quente) não transfere calor para o radiador.

- Menor distância entre eixos. Com o cilindro inclinado para trás pode-se trabalhar com ângulo de esterço mais fechado (64,9º) e menor entre eixos (1.374mm) para a moto ficar mais maneável.

- Por outro lado ela poderia perder estabilidade em reta, mas isso foi compensado com uma balança traseira mais longa só possível graças ao motor invertido. Ah, a engenharia...

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Estilo inspirado na S 1000RR. 

Essa configuração não é novidade, já existe no motocross desde o final dos anos 90, mas é a primeira vez que aparece em uma moto de série aqui no Brasil e pode ser uma nova tendência por todas as vantagens apresentadas acima. 

Como é?

Outra boa notícia é que os alemães não são bestas. Eles sabem que este será um produto destinado a um público jovem, incluindo as mulheres, com todo tipo de biótipo. Por isso já oferecem três opções de banco com alturas diferentes (760mm, 785mm e 815mm). Para esta avaliação, as motos estavam com a opção intermediária, onde me encaixei perfeitamente com meus 1,70m. Este banco é uma peça única e a posição do garupa é um pouco mais alta. 

As pedaleiras são bem recuadas e assim que segurei as manoplas tive a certeza de estar em uma BMW: guidão largo, mas esterça pouco (como toda moto com radiador). Típica posição de guidão das motos BMW que lembra até a S 1000RR, modelo que serviu de base para o estilo dessa 310.

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Painel completo. 

Destaque para o painel digital de cristal líquido completo, com indicador de marchas (muito útil), luzes de advertência, conta-giros por barra, dois trips, luz de rotação máxima, nível de gasolina, média horária, autonomia etc. Os comandos seguem o padrão tradicional com um curioso botão da buzina. 

Ainda observando a posição de pilotagem, como toda roadster, não tem proteção aerodinâmica e apenas uma pequena carenagem acima do farol, só pra fazer graça mesmo. 

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Comandos tradicionais. 

Motor acionado e de cara percebe-se que é nervoso. A rotação de potência máxima está em 9.500 RPM e o motor cresce (e desce) rápido de giro, semelhante às motos de cross quatro tempos. Com a G 310R parada pode-se sentir a vibração encostando no tanque, nas alças do garupa ou mesmo nas pedaleiras, mas muito pouca vibração no guidão. E a explicação está nos coxins colocados nas castanhas de sustentação do guidão que realmente funcionam e eliminam boa parte dessa vibração. Não tem muito como fazer milagres em motores de um cilindro, mas até que se saíram muito bem. 

Embreagem macia acionada, primeira (de seis marchas) engatada de um câmbio muito macio e vamos ao teste de fato.

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Freios com ABS de duas vias. 

Curvas, curvas e mais curvas

O problema de testar motos em autódromos é que só conseguimos avaliar alguns dados. Felizmente é mais divertidos e deixamos a parte chata para o teste na rua e na estrada. A pista do Haras Tuiuti é bem travada e ainda colocaram duas chicanes para reduzir ainda mais a velocidade nas retas. Em compensação tem curva pra todo gosto de piloto. E se tem uma coisa que gosto muito é de curva! 

Até 5.500 RPM o nível de vibração é bem aceitável, sentido muito mais nos pés do que nas mãos e muito pouco na bunda. Com o banco intermediário (765 mm) me encaixei tão bem que poderia rodar muito mais do que permitidos 30 minutos. É tão gostosa e estável que gastei muito slider do macacão e também a ponta das pedaleiras. Só me preocupou um pouco os pneus calibrados para uso na rua, que ficaram muito “duros” para pilotar na pista, em várias ocasiões a traseira quis se separar de mim, mas consegui trazê-la de volta na marra.

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O enorme escapamento com catalisador de 3 vias. 

Pode-se pilotá-la na estilo tradicional, com joelho no asfalto, ou no estilo supermotard, com o pé fora da pedaleira. Seja como for as duas formas garantem puro prazer em baixa cilindrada. Os pneus escolhidos são o Pirelli Diablo Rosso II, que conheço de outros carnavais e confio cegamente. Muito boa a escolha da medida 150 na traseira, sem exageros e muito desfrutável. Consegui chegar no limite graças justamente à sensação de confiança que esses pneus transmitem. 

Outro bom susto foi com os freios! Rapaz (ou moça), pense num freio que para até pensamento! A BMW G 310R vem equipada com ABS de duas vias perene, não comutável. Acho que poderia ter a opção de pelo menos desligar o traseiro porque faz falta uma derrapadinha de leve na entrada de curva para se adaptar ao estilo supermotard. Fiz várias simulações de frenagem desesperadoras e foi surpreendente porque as rodas não travam e a moto não torce. O imenso disco de freio (300 mm) são mordidos por pinças radiais, como se espera de uma esportiva com pedigree. Na traseira o freio também é a disco. 

Boa parte do equilíbrio vem do quadro tubular de treliça de aço (com balança de alumínio), mas as bengalas invertidas de 41 mm de diâmetro também contam muito. Na traseira a suspensão é monoamortecida com regulagem da carga da mola. Não mexi, mas para andar em pista poderia estar mais “dura”. A frente não afunda tanto na frenagem o que dá segurança para “alicatar” o freio com vontade.

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Muito fácil de levar o skate. 

Fiz dois testes de praxe. No primeiro engatei a sexta marcha e deixei a rotação cair até 2.000 RPM (a marcha lenta é a 1.700 RPM) e abri o acelerador até o talo. O motor falhou, pipocou e morreu. Foi um exagero, claro, mas a partir de 2.500 RPM o motor retoma com bastante energia. O câmbio de seis marchas tem a vantagem de manter uma rotação mais baixa em velocidade de cruzeiro na estrada, mas tem esse detalhe de precisar rotação para retomar a velocidade. Imagino que no uso urbano o câmbio deva ser bem solicitado. O lado bom é que o curso é pequeno e o acionamento bem macio e silencioso. 

Com seis marchas, a sexta é praticamente uma overdrive, com relação de 0,955:1, o que indica um baixo consumo. Não foi possível fazer o teste na pista, mas imagino que fique entre 25 e 30 km/litro dependendo da mão direita de quem pilota. 

O segundo teste foi o contrário, deixei a velocidade e rotação caírem em última marcha para ver até onde ela vai sem morrer: os mesmos 2.000 RPM, abaixo disso o motor apaga. 

Faltou apenas um pouco mais de reta para levantar o dado de rotação em velocidade de cruzeiro, vai ter de ficar para o próximo teste.

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Aprovada no teste de skatabilidade.  

E agora?

O mercado está bem ativo. Nesta categoria de 300cc tem boas opções como Kawasaki Z300 , Yamaha MT-03, KTM Duke 390 e agora a BMW G 310R. Colocada à venda por R$ 21.900 poderia incluir na lista a Honda CB 500F, que teve o preço revisto para R$ 23.900. Mas por ser dois cilindros e ter um comportamento mais civilizado, a Honda entra em outra categoria. Nem sempre o preço é o principal indicador de decisão. 

Difícil escolher entre elas porque são todas muito divertidas de pilotar. A BMW tem a mágica das três letras e um padrão de qualidade elevado e promete manutenção acessível. O modelo obedece o padrão globalizado de produção, montado em Manaus, com peças fabricadas pela indiana TVS, tudo com supervisão da matriz alemã. Como resultado temos um produto bem acabado mas com facilidade de reposição de peça. 

Acredito que o público alvo vá se dividir entre os admiradores da marca que tem a chance de alcançar o sonho de ter uma BMW, os atuais donos de motos na faixa de 250 e 300cc e até mesmo de não-motociclistas que estão chegando no mercado. Não tanto os jovens pós-adolescentes, mas sobretudo na faixa acima de 25 anos, já estabilizado que tem segurança para assumir um carnê. 

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Balança traseira de alumínio. 

É uma moto que atende bem o uso urbano (apesar do pouco esterço do guidão), tanto que um dos opcionais é o bagageiro para bauleto. Mas também permite viagens tranquilamente. A média declarada de consumo é na faixa de 28 km/litro, para um tanque de 11 litros, o que projeta uma autonomia média de 300 quilômetros. 

Como não poderia deixar, dois importantes itens nas minhas avaliações. O já consagrado IPM – Índice de Pegação de Mina (ou Mano) e a skatabilidade. Sem dúvida o IPM dela é alto, daria nota 9,0 para o público mais jovem, mas saiba escolher bem quem vai na garupa porque o PBT (peso máximo de carga, incluindo o veículo) é de 345 kg, ou seja, as pessoas + carga não podem passar de 187 kg. Portanto nada de levar secador de cabelo na viagem. 

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Mais skatabilidade do que isso só duas. (Foto: Bruno Guerrero/ALI) 

Já a skatabilidade é muito boa, porque mesmo na versão sem bagageiro consegui colocar meu skate apoiado nas alças, que tem pequenos cortes para ficar as aranhas (elásticos). Falando em skate, a campanha de lançamento da G 310R no Brasil foi criada usando skate como argumento. Eu já aprovei!

FICHA TÉCNICA

Motor

Tipo – monocilindro, arrefecido a líquido, DOHC, 4 válvulas

Cilindrada - 313 cc

Diâmetro/curso - 80/62 mm

Potência - 25/34 kW/CV a 9500 RPM

Torque - 28 Nm a 7500 RPM

Taxa de Compressão - 10,6:1

Alimentação – injeção eletrônica, borboletas mm 42, catalisador de 3 vias

Sistema elétrico

Alternador – 330W

Bateria -12/8 V/Ah

Farol - W H4 12 V 60/55 W

Câmbio – seis marchas, embreagem de discos múltiplos com banho de óleo

Transmissão – coroa, corrente (com O-rings) e pinhão; relação final: 3,083:1

Relação das marchas - I 3,000 II 2,063 III 1,588 IV 1,286 V 1,095 VI 0,955

Quadro - tubular de aço com sub-quadro traseiro aparafusado, balança traseira de alumínio

Suspensão dianteira – garfo telescópica invertida, Ø 41mm

Curso – 140 mm

Suspensão traseira – monoamortecedor sem link

Curso – 131 mm

Trail - 102,3mm

Distância entre eixos - 1374 mm

Ângulo da coluna da direção - 64,9º

Freio dianteiro - monodisco Ø 300 mm ABS

Freio traseiro - monodisco Ø 240 mm ABS

Roda dianteira - 3,0 x 17"

Roda traseira - 4,0 x 17"

Pneu dianteiro - 110/70 R 17

Pneu traseiro - 150/60 R 17

Comprimento total mm 1988

Largura total com retrovisores mm 896

Altura do assento – 760, 785 ou 815 mm

Peso seco - 158,5 kg

Peso bruto total – 345 kg

Tanque – 11 litros

Consumo de combustível (norma européia) – 30 km/litro

Velocidade máxima (declarada) – 145 km/h

 

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Segunda-feira, 7 de Agosto de 2017

Parque de diversões, um dia só de BMW.

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Se aparecer essa imagem no seu retrovisor saia da frente.

Como é ter mais de 1.000 cavalos à disposição 

Muita gente acha que jornalista especializado é antes de tudo um fanático. Sim, existe uma paixão permeando a profissão, mas existem os doentes, maníacos e fanáticos, assim como aqueles que apenas fazem do objeto da especialização estudo e admiração. É neste segundo perfil que me enquadro. 

Não sei quando comecei a gostar de carro. Acho mesmo que já nasceu comigo. Eu era dessas crianças que sabia o nome, modelo e detalhes dos carros só de bater o olho. Quando meu pai comprou o primeiro carro, um Gordini II, em 1965, eu tinha apenas seis anos e fiquei tão maluco que levantei no meio da noite e fui dormir no banco de trás, para desespero da minha mãe que acordou e encontrou uma cama vazia e nenhum filho. 

Mas essa paixão aos poucos foi dando lugar a uma admiração distante e hoje posso afirmar que não sou nem perto de um fanático. Só tem uma coisa que ainda faz meu sangue ferver: pilotar em autódromo! E quanto mais potente for o veículo, mais alucinógena é a viagem. 

Por isso passei dias de angústia quando recebi o convite da BMW para pilotar os novos modelos Mini John Cooper Works Countryman (231 CV), M240i (340 CV), M140i (340 CV) e X5M (575 CV). Para aumentar ainda mais meu desespero, depois de 45 dias sem cair uma gota d’água em SP, na manhã do teste caiu uma garoa fina, típica paulistana, que molha, mas não lava o asfalto. Sabe aquela sensação de esperar pelo Natal o ano inteiro e no dia de estrear a tão sonhada bicicleta nova chove? Foi assim que me senti. 

Um pouco antes da hora saiu um sol tímido que deixou a pista al denti, escorregando em alguns pontos, mas com partes secas. Segundo um dos pilotos que me acompanharia, a pista estava “divertida”. E como!

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Grudado no chão. 

Kartão

Por uma questão de estratégia, decidi começar pelo menos potente e ir subindo de cavalaria, como um bolero de Ravel. Assim, assumi o comando primeiro do Mini John Cooper Works Countryman All4. Já conhecia o Mini de outros testes, mas nunca tinha experimentado o Countryman. Aliás sempre torci o nariz para esse modelo por julgar que country não combina com o estilo urbano do pequeno. Mas temos de lembrar que no hemisfério norte a neve obriga a escolher carros com tração integral e vocação fora-de-estrada.

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Banco concha: acredite que é necessário. 

Ajustei a posição do banco – tudo mecânico – selecionei o modo Sport, com trocas pelas borboletas e soquei o pé no acelerador. Felizmente a equipe de instrutores capitaneada pelo Rodrigo Hanashiro já me conhece de outros carnavais. Alguns como Maurizio Sala e Renato Russo são meus amigos de infância e eles sabem que não sou do tipo que mete o carro no guard-rail, por isso deixaram até desligar os controles eletrônicos de tração e estabilidade. Naquela condição de pista era tudo que eu queria para sair de Interlagos com aquela sensação de corpo encharcado de endorfina. 

Não tem melhor forma de definir o que é este Mini do que DIVERTIDO! A pequena distância livre do solo (165 mm), eixos quase nas extremidades do carros (2.670mm de entre eixos), pequena altura (1.557 mm de altura) e rodas com off-set positivo, fazem este Mini se comportar na pista como se fosse um grande kart. A tração integral atua deixando mais carga no eixo dianteiro (80%), por isso, mesmo no limite, ele contorna as curvas bem neutro, mas no trecho de baixa velocidade (das curvas do Pinheirinho ao Bico de Pato) ele tem leve tendência a soltar a frente.

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Painel do Mini 

Usei o câmbio na posição Sport e as trocas de marcha são muito rápidas. Não é muito veloz de reta (máxima de 235 km/h) talvez pelo Cx muito alto (0,34) e o tipo de traseira que amarra um pouco em alta velocidade. Não dá para exigir muito de um motor 2.0 de quatro cilindros, turbo, mas pelo menos pude confirmar que num carro de apenas 1.555 kg motorzinho ainda proporcional diversão. 

Fiz apenas uma volta lançada porque só tinha uma unidade desse modelo e o evento ainda seguiria todo o fim de semana. Não valia a pena arriscar uma panca no meio do evento. Mas abusei do direito de fazer curvas no limite. Ainda bem que o banco é tipo concha, senão tinha parado no colo do instrutor.

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Chiquitito pelo cumplidor. 

Pequeno notável

Ainda na estratégia do menor para o maior, o segundo da lista foi o M140i. Confesso do fundo do coração que nunca curti muito o desenho desse BMW, por achar que tem muita frente para pouco carro. Afinal o cofre precisa abrigar um silencioso seis cilindros em linha e a ideia é levar duas pessoas mesmo, com um eventual pentelho no banco de trás. Basta ver que o porta-malas é quase uma frasqueira com capacidade para apenas 360 litros. 

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 140i: ideal para casal sem filhos.

Baixo (1.411mm), esse BMW para solteiros também é colado no asfalto, mas o que impressiona mesmo é o motor de funcionamento tão suave e silencioso que mal se percebe que está ligado. Também selecionei o modo Sport no câmbio e entrei na pista com meu velho amigo Renato Russo ao lado. Foi dele o spoiler: “nesse carro o motor é mais impressionante”. 

E é mesmo! Foi muito fácil passar nos boxes a 220 km/h (máxima limitada a 250 km/h) para depois sentir os freios para entrar no S do Senna. Só por curiosidade coloquei o câmbio (oito marchas) no moto Confort e ficou aquela coisa sem graça nenhuma. Divertido é trocar as marchas pelo paddleshift e escutar os estouros do escape nas reduções. 

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O motor tem 340 cavalos. 

Por ser tração traseira e motor dianteiro também tem tendência a sair de traseira nas curvas de alta e de frente nas de baixa velocidade. Nada assustador, porque os controles eletrônicos atuam o tempo todo e ajudam a manter o carro no asfalto e longe da grama! 

Sedãããã...

Sob o capô do M240i está o mesmo motor do 140, de seis cilindros, com os mesmos 340 cavalos, só que em uma carroceria maior e mais comprida (4.454 mm contra 4.324 mm do 140). Porém a distância entre eixos é a mesma (2.690mm) e quase não se nota diferença na pilotagem. Certamente o sedã seria mais rápido, pela carroceria mais fluida em termos de penetração, mas a velocidade dos dois modelos é limitada a 250 km/h por questões de segurança.

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Sedã nervosinho. 

A grande diferença nessa avaliação foi por conta do meu instrutor, Maurizio Sala, que conheço desde a adolescência e que para deixar tudo mais emocionante desligou o controle de tração, com uma advertência: “vai com calma”... 

E estava tudo calmo, apesar do piso bem traiçoeiro, até chegarmos na curva do S e a traseira desgarrar de uma vez. Controlei a derrapagem e dali em diante foi um festival de drift, principalmente nas curvas de baixa velocidade e na Subida do Café. Com meu coração quase saindo pela boca pedi para ligar tudo de volta. 

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Painel do 240i. 

Se tem uma coisa que aprendi nestes 35 anos como jornalista especializado é jamais destruir um veículo de teste! Além disso sou meio adepto da mesma linha ideológica do grande Bob Sharp: “não precisa mais do que duas ou três curvas para sentir um carro”. É a mais pura verdade. A experiência conta muito nessas horas. 

A maior diferença entre o 140 e o 240 está mesmo na carroceria e no porta-malas, que aceita 30 litros a mais do que na versão “curta” e o desenho mais formal do sedã. Em termos de desempenho e comportamento os dois são muito semelhantes, ou seja: puro prazer de pilotar! 

SUV é a mãe!

Quem chamar o BMW X5M de SUV merece uma surra de gato morto até o bichano miar. OK, a carroceria lembra um SUV porque é alto, tem um porta-malas de 650 litros, parece um carro todo família, bem comportado, tem tração 4x4, mas pode parar por aí, porque o motor V-8 de 4.395 cm3 turbo despeja uma cavalaria de 575 CV. É muito motor, mesmo em um carro de 2.412 kg.

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Carro da família, mas é o papai que brinca. 

Mais impressionante que o motor é o comportamento na pista. Um carro alto (1.717 mm), com quase 20 cm de vão livre do solo poderia supor um efeito de rolagem acentuado nas curvas. Ah tá! 

Como o instrutor desse modelo não me conhecia ele me fez sair dos boxes no modo Confort e assim que saí soquei o pé no fundo do acelerador e senti um empurrão daqueles de colar as costas no banco. Logo depois de três curvas convenci o instrutor a liberar o modo Sport e começou a diversão.

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Joy Stick e um monte de botões. 

A segunda ótima impressão (depois do susto do motor) é o comportamento em curva como se fosse um carro pequeno. Não apresenta rolamento exagerado nas curvas, pelo contrário, o X5 quase nem inclina e fica grudado no chão, graças aos imensos pneus Pirelli (285/35 na frente e 325/30 atrás, tudo aro 21). 

Este BMW também tem velocidade limitada eletronicamente a 250 km/h que foi praticamente a velocidade que passei na frente dos boxes na volta lançada e bem antes da placa dos 100 metros meti o pé no freio para ver, desesperado, que deveria ter começado a frear bem antes. Achei que passaria reto no S do Senna, mas pra minha surpresa e tranquilidade montei com tudo no pedal do freio e consegui fazer as curvas do S sem espalhar pela grama. 

Mais uma vez o destaque vai para todos os controles eletrônicos de freio, estabilidade e tração. Se não fosse por essa eletrônica toda eu teria espatifado no muro interno da Curva do Lago. 

Posso afirmar que é o carro feito para a família, mas que deixa o papai bem feliz ao dirigir! 

Este evento tem como finalidade oferecer para convidados Vips a oportunidade de uma experiência única de pilotar em Interlagos, com segurança e emoção. Os jornalistas pegaram uma carona, mas não tiveram acesso aos mágicos M2 e M3, versões mais apimentadas. Como o mundo em quatro rodas não é meu cardápio principal, achei o evento fantástico e poderia passar horas pilotando sem me cansar. Pena que eram só duas voltas completas. Mas fiquei com a certeza de que os carros deste patamar estão tão avançados nos controles de pilotagem que precisa ser um grande palerma para se acidentar a bordo deles. 

Que venham mais BMW M Power Tour e que não deixem de me convidar!

 

publicado por motite às 22:56
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Quinta-feira, 3 de Agosto de 2017

Salão da esperança

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A Honda CBR 1000RR deve ser mostrada pela primeira vez no Salão.

Em plena crise mercado de duas rodas aposta no sucesso do Salão. 

Foi difícil resistir a tentação de usar o título “Salão da Crise”. Com tanta crise do setor esse título pode estar sendo usado por outro colega nesse momento. Mas a esperança é verdadeira, pelo menos foi essa a impressão que ficou logo após a apresentação oficial do Salão Duas Rodas 2017, que será realizado em São Paulo, de 14 a 19 de novembro, no São Paulo Expo. 

O novo espaço já passou por um teste de fogo ao sediar o Salão do Automóvel, no final de 2016. E agora espera receber cerca de 260.000 pessoas nos seis dias de evento. São 55.000 m2 de área com o conforto do ar-condicionado e facilidades como espaço gourmet e estacionamento muito perto.

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Novas CB 500 já foram mostradas antes da hora... 

Quando o visionário Caio Alcântara Machado criou o Salão do Automóvel nos anos 60, as montadoras guardavam os principais lançamentos do ano para serem apresentados no Salão. E foi assim por mais de quatro décadas até que o Salão do Automóvel perdeu muito glamour e o grande chamariz passou a ser veículos especiais. Recentemente quem visitava o Salão do Automóvel iria encontrar os mesmos carros expostos no estacionamento de qualquer shopping center. 

O mesmo fenômeno se repetiu com o Salão Duas Rodas. No começo era um corre-corre danado para ver as novidades, depois passou a ser apenas uma exposição do que já existia. Mas esse de 2017 promete resgatar a vocação de vitrine de novidades.

 

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Yamaha X Max 300 deve aparecer por aqui. 

Desta vez existe a promessa de que as coisas serão diferentes, pelo menos no mundo das motos. Espera-se que as montadoras apresentem lançamentos de fato, guardados a sete chaves e esperamos que isso se confirme. 

Para esse 14º Salão Duas Rodas já foram confirmadas as marcas: Dafra, Ducati, Haojue, Harley Davidson, Honda, Kawasaki, Kymco, Indian, Royal Enfield, Suzuki, Triumph e Yamaha. Além disso devem participar cerca de 400 marcas de produtos associados às motocicletas. 

Além das exposições, um dos atrativos será a enorme área de test-ride, na qual o público poderá se inscrever para testar motos de todos os tamanhos e potência. Por enquanto estão confirmados testes das marcas Yamaha, Kawasaki e Honda. 

Segundo Leandro Lara, diretor do evento, “este será o salão da experimentação, com atrações divididas nas categorias mobilidade urbana, lifestyle, paixão e liberdade. Entre as atividades propostas teremos estandes de customização e de tatuagem”. 

Prováveis lançamentos

Claro que ainda existe muita especulação, como sempre acontece antes de cada salão, espera-se que alguns lançamentos peguem o público de surpresa. Só para aguçar a curiosidade eu jogaria as fichas nos seguintes modelos. 

Yamaha – Fala-se muito na chegada de um scooter de 300cc para concorrer com a Honda SH 300, Kymco e Dafra Citycom. Trata-se de uma X-Max 300, com motor de um cilindro e 28 CV. O destaque é o espaço para dois capacetes sob o banco e o estilo bem moderno e esportivo. 

Outra moto esperada no estande da Yamaha é de uma possível MT-07 versão trail, com cara de Superténéré. É a forma de compensar a saída da versátil XT 660. 

Honda – Já a Honda antecipou a linha CB 500 antes do salão, porém garantiu que terá novidades para o evento. Uma delas pode ser a CBR 1000RR já lançada no Exterior, mas que ainda não pisou em solo brasileiro. Outras possibilidades são a chegada de uma 250cc trail para substituir a XRE 300, como já aconteceu com a nova Twister e uma possível volta da scooter Lead, mas com motor 125cc. Segundo Alfredo Guedes, gerente de relações Institucionais, “pode ir que vai ter muita novidade!”.

 

SalãoKymco.jpg

Kymco, empresa gigante de Taiwan. 

Kymco – Pode ser a chance de o público tomar contato com uma nova marca. Trata-se da Kymco (Kwang Yang Motor Co.), empresa sediada em Taiwan que começou como fornecedora de peças da Honda em 1963. A partir de 1970 passou a produzir scooters inteiros e se tornou fabricante de motos, scooters e quadriciclos. Foi lá que os motores BMW 450cc foram produzidos em 2008. Ela chega ao Brasil com uma linha de scooters que tem o Downtow 300i como carro chefe. 

Das demais marcas não consegui arrancar muitos segredos, mas posso garantir que vale a visita. Agora veja os preços dos ingressos. 

Kit fã (Ingresso e camiseta) – R$ 110,00

Easy Rider (Liberdade para escolher o dia da visita) – R$ 140,00

Passaporte (Direito a ir quantas vezes quiser ao evento) – R$ 170,00

Box Super Fã (Ingresso, estacionamento, credencial VIP e brindes das marcas participantes) – R$ 300,00

Avant Première (Ingresso para a noite de pré-estreia do Evento – inclui estacionamento) – R$ 500,00

Serviço

Salão Duas Rodas 2017:

13 de novembro – Avant Première: 18h às 23h

De 14 a 19 de novembro (terça-feira a sábado): 14h às 22h.

Dia 19 de novembro (domingo): 11h às 19h, com entrada até às 17h.

São Paulo Expo Exhibition & Convention Center (Rodovia dos Imigrantes, KM 1,5 – São Paulo/SP).

 

publicado por motite às 22:42
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Quarta-feira, 2 de Agosto de 2017

Os dias eram assados. Como era ser criança na ditadura

contador.jpg

Meu pai recebendo o certificado de Ciências Contábeis 

 

Durante a mini série global “Os Dias Eram Assim”, minha mulher (12 anos mais nova) me pegou de surpresa com uma pergunta: 

- Você se lembra dessa época? 

A época que se referiu foi de 1964, com o golpe de Estado, até 1985, com o processo de abertura política. O golpe foi precisamente no dia 1º de abril, poucos dias antes de eu completar cinco anos. Foi difícil buscar alguma coisa na minha memória que tivesse marcado essa época, mas lembro de uma cena que nunca mais saiu da minha cabeça. Como nós mudávamos muito de casa eu aprendi a contar o tempo pelo endereço e em 1965 morávamos no Brooklin Paulista, um novo bairro classe média de São Paulo.

rua california.jpg

Nossa casa e nosso Gordini em 1965. 

Um dia qualquer daquele ano meu pai voltou para casa antes do horário normal. Entrou em casa, na rua Califórnia 612, sentou em uma poltrona de courvin e desabou a chorar. Ver meu pai chorando foi um choque, porque era o meu modelo de herói e heróis não choram. Mas naquela tarde de 1965 ele chorava e nunca mais, até a morte dele, eu o vi chorar novamente. 

Quando me aproximei dele para saber o que tinha acontecido minha mãe me pegou no colo, com muito carinho e explicou: 

- Ele está com saudades do pai dele. 

Não conheci meu avô paterno. Ele era natural de Figueira da Foz, uma adorável cidade no litoral de Portugal, que fica na foz do rio Mondego e realmente tem figueiras em várias casas. Durante o período da florada pode-se sentir de longe o cheiro de figo. Mas depois da frutescência o cheiro fica azedo por causa dos figos podres, caídos e atropelados pelas calçadas. Como foi invadida pelos mouros desconfio que herdamos alguns pigmentos do norte da África. Meu avô era praticamente mulato e quando meu pai tomava muito sol virava um negrinho, como minha mãe o chamou por toda a vida. 

Meus avós paternos saíram de Portugal depois da I Guerra, quando a Europa enfrentou uma grande crise econômica e a saída estava no “novo mundo”. Criados na tradição rural, os europeus chegaram ao Brasil para substituir a mão de obra escrava, mas com um pouco de dinheiro, conhecimento e experiência. E ainda com a condição de serem remunerados.

futebol.jpg

Futebol, a grande paixão do meu pai (à esquerda). 

Com os primeiros trocados que meus avós juntaram compraram um sítio em Suzano, cidade de tradição agrícola colada a São Paulo e deram início à tradição comerciante da família. Só que meu avô morreu muito jovem, com apenas 50 anos e meu pai e seus irmãos se viram obrigados a largar a escola para se dedicarem ao trabalho. 

Meu pai foi feirante, estampador, fez muitos bicos mas o que mais queria era estudar. Não se conformava apenas em trabalhar, queria se formar. E assim fez. Voltou a estudar na adolescência. Trabalhava de dia e estudava à noite. Dormia no trem entre Suzano, Mogi das Cruzes e Taubaté. Ele adorava contar a mesma história. Quando dormia no trem tinha um truque para não perder a estação. Em Suzano já funcionava a fábrica de papel – que existe até hoje e é uma potência no ramo – e que exalava um odor horrível, resultado dos rejeitos da celulose. Quando meu pai sentia o cheiro de enxofre acordava porque sabia que estava em Suzano. Até que uma noite alguém soltou um pum e ele desceu em Poá, uma estação antes! 

Depois de se formar técnico em contabilidade largou o trabalho nas fábricas e se dedicou aos números. Tinha uma capacidade fora do comum de fazer contas mentalmente sem uso de calculadora até pouco tempo antes de morrer aos 84 anos. Fazia os cálculos de alíquotas de impostos de aluguel sem uso de calculadora até o fim da vida. Desconfiado eu conferia na calculadora e estava tudo certo. 

Um dos grandes orgulhos do meu pai foi ter aprendido a fazer cálculos usando o soroban, o ábaco japonês. A região que compreende Suzano e Mogi das Cruzes faz parte do cinturão verde de São Paulo e produz grande parte dos hortifrutigranjeiros vendidos na capital. Os grandes responsáveis por essa produção são os imigrantes japoneses, que também vieram para o Brasil em busca de oportunidades e encontraram vastas e baratas áreas de terra. 

Com tantos japoneses e dekasseguis logo surgiu um banco América do Sul, criado pela comunidade japonesa e meu pai era um dos poucos ocidentais aceitos na equipe de contadores. Pois não é que ele vencia todas as competições de soroban! Os japoneses ficavam loucos em ver que um não-japonês era capaz de usar o ábaco com mais rapidez e eficiência. E foi essa habilidade que fez do meu pai uma máquina de calcular mental. Raramente eu o vi usando uma calculadora. 

Dono de uma ambição acima da média, depois de casado meu pai se mudou com minha mãe e meus irmãos para São Paulo, onde nasci em 17 de abril de 1959. Mas para homenagear a cidade natal, meus pais decidiram me registrar como nascido em Suzano. Sou um cidadão suzanense no papel e no coração, apesar de ter morado lá apenas três meses. 

Em São Paulo meu pai continuou trabalhando no Banco América do Sul e conseguiu realizar o grande sonho de entrar na faculdade Mackenzie, para cursar direito. Ele se formou em 1971 e eu fui na formatura. Vi meu pai receber o diploma de bacharel em Direito no mesmo palco que cinco décadas depois minha filha mais nova receberia de bacharel em Biologia. É o ciclo da vida dando voltas. 

De volta àquela tarde de 1965 lembro que fiquei triste pelo meu pai sentir saudades do pai dele. Nunca se falava do meu avô em casa, não tinha fotos dele porque naquela época não se faziam tantas fotos quanto hoje. Eu só sabia que ele era um “homem bom e generoso”. E foi com essa imagem, do meu pai chorando de saudades do pai dele que vivi, até saber o verdadeiro motivo do choro, quase 10 anos depois, contado acidentalmente por ele mesmo. 

Naqueles dias de 1965 agentes da polícia civil haviam invadido o escritório do meu pai e levado um dos colegas. E naquela tarde do choro ele fora anunciado como “desaparecido”. Esta é a única lembrança que tenho do período pós-golpe, até chegar à faculdade, em 1977 e tomar conhecimento do que realmente estava acontecendo com o Brasil. 

Durante minha infância, enquanto o Brasil fervia politicamente, meus dias eram assim: esfolados e encardidos. Minhas ocupações eram brincar na rua até escurecer, construir carrinhos de rolimã, colecionar miniaturas Matchbox, jogar bola, empinar pipa e ralar os joelhos tantas vezes que mal dava tempo de secar as casquinhas para ralar tudo de novo. Em suma, nesta época meus dias eram assados.

publicado por motite às 22:30
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